sábado, 31 de agosto de 2013

Luciano,Diretor de Teatro

Blog de Luciano Oliveira: diretor, professor e produtor de teatro Blog de Luciano Oliveira: diretor, professor e produtor de teatro Site para discussões e postagens sobre práticas teatrais, sobre artes e culturas brasileiras, edições de fotos e de vídeos, além de publicações de artigos científicos e de trabalhos acadêmicos. SOBRE MIM… ABOUT ME… Navegação de Posts « » ANTROPOFAGIA, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E NACIONALISMO NO COBRA NORATO DO GIRAMUNDO TEATRO DE BONECOS Imagem 1: Honorato mestiço: boneco do espetáculo Cobra Norato. Fonte: Imagem disponível no Dvd GIRAMUNDO Teatro de Bonecos. Belo Horizonte: C/Arte Projetos Culturais, 2001. Cd-rom, 1 unidade física. Imagem 2 — Honorato índio: boneco do espetáculo Cobra Norato. Fonte: Imagem disponível no Dvd GIRAMUNDO Teatro de Bonecos. Belo Horizonte: C/Arte Projetos Culturais, 2001. Cd-rom, 1 unidade física. Imagem 3 – Saci-Pererê do Cobra Norato: boneco de balcão, com cerca de 50 centímetros. Fonte: Imagem disponível no Dvd GIRAMUNDO Teatro de Bonecos. Belo Horizonte: C/Arte Projetos Culturais, 2001. Cd-rom, 1 unidade física. Imagem 4 – “Casal de bailarinos de cerâmica” dançando na festança: bonecos do espetáculo Cobra Norato. Fonte: Imagem disponível no Dvd GIRAMUNDO Teatro de Bonecos. Belo Horizonte: C/Arte Projetos Culturais, 2001. Cd-rom, 1 unidade física. Luciano Flávio de Oliveira[1] — lucianodiretor@gmail.com Artigo apresentado no Simpósio Internacional de História: Cultura e Identidades, da ANPUH-GO/UFG (Faculdade de História). Simpósio Temático 19: Performances Culturais: Memórias e Representações da Cultura: Festas, Performances, Música, Teatro… RESUMO: Objetiva-se, com esse artigo, apontar, analisar e confrontar — com os processos de criação dos bonecos de Cobra Norato, montagem de 1979 do Giramundo Teatro de Bonecos — algumas categorias conceituais caras à História e à História Cultural. A saber: representação e identidade cultural, antropofagia, imaginação social, nacionalismo e mestiçagem. Para tanto, observar-se-á como o grupo mineiro se apropriou das cores nacionais, das linhas, dos regionalismos, dos causos e histórias, e, ademais, da iconografia de criaturas da cultura popular brasileira para a construção estética e plástica de alguns bonecos dessa montagem. Palavras-chave: Representações culturais. Processos criativos. Bonecos. ABSTRACT: The objective of this article is point, examine and confront — with the processes of creating of the puppets of “Cobra Norato”, assembly of 1979 of the “Giramundo Puppet Theater”— some conceptual categories faces to the history and cultural history. Namely: representation and cultural identity, anthropophagy, social imagination, nationalism and racial miscegenation. To this end, will be observed how the Giramundo group appropriated of the national colors, of the lines, of the regionalism, of the tales and stories, and, moreover, of the iconography of creatures of Brazilian popular culture for the aesthetics construction and plastic of some puppets of this assembly. Keywords: Cultural representations. Creative processes. Puppets. Breve ode ao Giramundo e ao Cobra Norato Foi criado na pequena Lagoa Santa, região da conurbarda Belo Horizonte, nos idos da década de 1960, pelas mãos e pincéis dos artistas plásticos Álvaro Apocalypse, Teresinha Veloso e Maria do Carmo Vivacqua Martins. Nas suas quase quatro décadas de vida, o Giramundo Teatro de Bonecos vem consolidando-se como um dos grupos de referência na representação da brasilidade — sentimento de amor ao Brasil — e do intenso colorido nacional. Nesse sentido, valendo-se das mais diversas técnicas e linguagens do Teatro de Animação[2], o grupo montou 33 espetáculos, muitos deles com temáticas patrióticas, dentre estes, Cobra Norato, em 1979, baseado no poema homônimo do modernista Raul Bopp (1898-1984). Em razão disso, Álvaro Apocalypse (1937-2003), diretor da montagem, utilizou esse enigmático poema quase que em sua forma integral, fazendo com que a montagem, do mesmo modo que a obra de Bopp, figurasse elementos[3] conformadores de uma cultura “genuinamente tupiniquim”. Desta feita, no processo de transposição de linguagens (da linguagem literária para a linguagem cênica) da obra de Bopp, Apocalypse fez determinadas alterações no texto original. Vejam-se algumas delas: distribuição dos versos às personagens elaboradas a partir do poema “boppiano”; supressão de alguns termos; enxertos e deslocamentos de linhas de uma estrofe para outra; transformação de certos versos em músicas; acréscimo de rubricas com indicações de entrada e saída das personagens (bonecos); repetições de interjeições; adaptações de palavras, como, por exemplo, de “vira-mundo” (BOPP, 2009:18) para “gira-mundo” (APOCALYPSE, 197?.:19); dentre outras. Entretanto, acredita-se que essas modificações não alteraram o sentido, a poética e nem a importância do poema modernista. Não obstante, esse mineiro de Ouro Fino, chamado por alguns de Álvaro ou somente “Alvo”, sempre buscou valorizar e preservar as manifestações culturais populares e também o folclore[4] do Brasil e de Minas Gerais. Para tanto, a todo tempo, ele misturava — com os seus vastos pincéis e com os seus olhares afinados de criador teatral — “o verde, o amarelo, o branco e o azul”, concebendo belamente os espetáculos e os bonecos do Giramundo. Logo, do mesmo modo que os modernos de 1922, ele também buscou os tons da “Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!”. Então, por debaixo de um arco-íris de quatro cores nasceu o Cobra Norato: a obra mais renomada do grupo, a mais premiada e considerada um marco na história do teatro de bonecos do Brasil, ocorrendo nela a introdução de motivos africanos e indígenas. Assim, são várias as intenções da peça: produzir um espetáculo de bonecos “essencialmente” brasileiro, comemorar os 50 anos do Manifesto Antropofágico[5] e homenagear o autor do Rio Grande do Sul. O Giramundo, segundo Apocalypse[6], trabalhou com uma “forma nacional”, ou seja, formas simples e indígenas, portanto, com bonecos de origens brasileiras. Quanto ao Cobra Norato, poema emblemático da primeira fase do modernismo[7] brasileiro, “escrito [por volta de 1921 por Bopp] sobre o substrato de relatos míticos populares e de conhecimento geral” (ROCHA, 2000:10), perpassado constantemente por vozes, sussurros, lembranças, andanças, superstições, crendices e por fantasias da Amazônia, “terras de um Sem-fim”, diz-se que ele descreve a trajetória de um herói mestiço[8], travestido na pele de uma cobra amazonense, em busca da branca européia de olhos azuis, a filha da Rainha Luzia, que habita as lonjuras da suposta civilizada, industrializada e evoluída Belém do Pará. Assim, o objetivo de Honorato parece ser, simplesmente, o de se casar. Ademais, isso sugeriria a união entre a “barbárie” brasileira e a civilização européia. Herói e narrador, Honorato é um boneco que veio à luz a partir da confluência das três etnias que dão origem aos brasileiros: o índio, o europeu e o africano. O protagonista representaria o próprio poeta gaúcho vestido de pele de cobra, que, com seu companheiro de andanças, o Tatu, atravessa “[florestas] de hálito podre e parindo cobras (…), raízes desdentadas [que] mastigam lodo (…) [e] beiras de um encharcadiço, um plasma visguento (…)” (BOPP, 2009:09 e 11) em busca de sua amada, a filha da Rainha Luzia. Do mito, Cobra Norato ou Honorato, pode-se relatar, de acordo com Cascudo (2002:292-293), que é um mito serpentário pertencente ao rico folclore amazônico, no qual se incluem várias lendas. Uma delas diz que uma Cunhã foi engravidada por uma Boiúna (uma espécie de boto), tendo então dois filhos: Honorato e Maria Caninana. Incentivada por um pajé, a mãe joga as duas pobres crianças à margem do rio Tocantins onde elas foram encantadas, transformando-se em cobras. Maria Caninana era má e provocava naufrágios. Por outro lado, Honorato era bom e viu-se obrigado a matar a irmã. Como penitência, ele, à noite, passou a transformar-se num rapaz bonito e sedutor, deixando a sua pele à margem do rio. Conta-se ainda que um soldado do Tocantins conseguiu a façanha de “desencantar” o Honorato, pingando leite na boca da cobra e sangrando a sua cabeça. Daí, ele nunca mais se transformou numa serpente. Por sua vez, no espetáculo do Giramundo, o Honorato é representado de três maneiras: ora como uma cobra; outrora como meio homem, meio cobra; e, finalmente, como um homem. Além disso, o espetáculo Cobra Norato possui também outras representações que povoam o nosso imaginário[9]. Ele traz, por exemplo, figurações de canções, danças, lendas — como a da Cobra Grande, da Boiúna e da Cobra de Óbidos —, mitos — como o do Saci-Pererê —, crenças religiosas e regionalismos ― quais as cerâmicas[10] do Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais. Em síntese, o Giramundo materializa diversos elementos e criaturas da cultura nacional e do folclore mineiro. Dessa forma, esse espetáculo sobrepassaria o poema de Bopp, elencando temas regionais — de Minas — que não são contemplados nessa obra modernista. Por fim, pretende-se, com este artigo, notar como o grupo Giramundo se apropriou dessas figurações e representações para a construção estética e plástica de dois bonecos “Honorato”, de um “Saci-Pererê” e de um “Casal de bailarinos de cerâmica”. Para tanto, propõe-se, em seguida, uma análise iconográfica de cada um desses bonecos. Honorato: branco, mestiço ou índio? Primeiramente, antes de se iniciar a análise do boneco Honorato, faz-se necessária a definição do termo mestiçagem. Para Canclini, a palavra pode designar as fusões raciais ou étnicas de um indivíduo ou de uma cultura: A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. (…) Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem tanto no sentido biológico — produção de fenótipos a partir de cruzamentos genéticos — como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com os originários das sociedades americanas (CANCLINI, 2008:XXVII). Desse modo, dentre as diversas representações do boneco Honorato, realizadas pelo Giramundo, encontra-se um mestiço, como nota-se na imagem 1. Adiante, a síntese dos materiais com os quais ele foi construído: madeira, tecidos, tintas e massa corrida. Depois, quanto a sua iconografia, tem-se: a) quase a totalidade do seu corpo é composto por madeira; b) as mãos, os pés, o pescoço e o peito do boneco são recobertos por uma tinta de cor quase que esbranquiçada, porém, ela não é branca; c) os seus cabelos, castanhos escuros, denotam uma aparência crespa; d) no seu rosto, notam-se olhos pretos estilizados, tipo orientais, com pálpebras esverdeadas (alusão aos olhos verdes europeus?), bochechas e bocas avermelhadas e, ademais, barbas de um tom verde claro; e) o pescoço é ornamentado por um colar, tipo africano, de madeirinhas verticais marrons; f) por ser um boneco de balcão[11], Honorato possui, dentro de um sulco em suas costas, um mecanismo — espécie de barra de madeira e metal, somada a um gatilho — que faz movimentar a boca e outras partes flexíveis do seu corpo; g) finalmente, as partes ocas internas — “os órgãos, músculos e ligamentos” — desta figura, parecem ser preenchidas por minúsculas partículas de elétrons, armazenadas em forma de uma espécie de energia potencial, e à espera de uma “coisa-mente” — o manipulador — que as despertem, produzindo assim, trabalho, ou melhor, diferentes movimentos e ações no interior da representação teatral a qual se integra como personagem. Assim, a idéia do Honorato completo e que existiria como plano na mente do seu artista bonequeiro e/ou projetista, parecia ser a de um boneco brasileiro, mestiço e representante de uma suposta desordem nacional. Por outro lado, a próxima figura do Honorato se dá pela aproximação de sua iconografia com a de um indígena brasileiro, como pode ser visto na segunda imagem. Dessa forma, o Giramundo parecia ir em busca de uma identidade nacional perdida. Ou melhor: esquecida por causa do progresso e dos meios modernos de comunicação, que desintegram o patrimônio da nação e fazem os povos perderem suas identidades culturais[12]. Ainda sobre a identidade, cita-se mais uma vez Canclini, que diz que ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena, celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos (CANCLINI, 2008:190). Dessa forma, como “signos de identidade” (CANCLINI, 2008:234) têm-se a língua, a vestimenta e o sistema de cargos religiosos. Não obstante, ocorre que a língua falada do Honorato índio, por causa de sua aculturação, também é o português, apresentando um leve sotaque mineiro, que os ouvidos mais atentos podem reparar quando escutam a trilha sonora da peça. Quanto à indumentária desse boneco, também manipulado pela técnica de balcão, observa-se que é constituída por figuras geométricas pintadas de cores marrons, brancas e negras. Ademais, as suas mãos e os seus pés são recobertos por tiras de barbantes de algodão. Além disso, brincos constituídos por penas brancas e azuis e, também por sementes vegetais vermelhas, amarelas e rosas colorem as suas falsas orelhas. Logo, um pequeno colar de madeirinhas marrons ornamenta o seu pescoço. Por outro lado, diferentemente do Honorato mestiço, os seus cabelos são uma massa de tinta compacta e negra, fato que parece aproximar ainda mais a iconografia desse boneco à de um índio da Amazônia brasileira. Entretanto, a exceção fica por conta da cor de sua pele, que também é branca. Daí pergunta-se: seria essa uma forma de embranquecimento do índio, por parte do Giramundo, ou somente um fato não notado pelo grupo? Finalmente, quanto à sua religião, atente-se que é recheada de danças folclóricas e de crendices e, também, de superstições populares, como nota-se na passagem seguinte: COBRA NORATO: Ai pai-do-mato Quem me quebrou com mau olhado e virou o meu rasto no chão? Ando já com os olhos murchos de tanto procurar a filha da rainha Luzia (APOCALYPSE, 197?.:06). Saci-Pererê, de onde vem: da África, da América ou da Europa? Antes de qualquer coisa, algumas palavras sobre as origens do Saci-Pererê: o mito parece ter surgido, no Brasil, no final do século XVIII ou meados do século XIX, pois “os cronistas [do período] colonial não o mencionam” (CASCUDO, 2000:794). Durante a escravidão, as amas-secas e os caboclos velhos assustavam as crianças com os relatos das suas travessuras. Desde então, ele encontra-se profundamente enraizado no imaginário dos brasileiros, sendo sua história propagada por todo o país. Existem muitas lendas em torno dessa figura. Algumas, por exemplo, tentam explicar a existência de uma só perna no pequeno ligeiro. Uma das mais interessantes diz que, antes de se tornar um Saci, um escravo teria perdido o membro lutando capoeira. Sobre o mesmo assunto, Anastasia (2002:382) cita o escritor Olívio Jekupé, afirmando que uma entidade indígena foi transformada no Saci-Pererê pelos africanos que a mesclaram com Ossaim, negro de uma perna só, filho pequenino de Oxalá e Iemanjá, orixá das folhas, da magia e da cura. Por outro lado, o nome Saci — “o olho doente” (CASCUDO, 2002:127) ­— é encontrado desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, porém o mito não é o mesmo em todas as regiões brasileiras, como em São Paulo, onde usa um boné vermelho no lugar da carapuça e habita os brejos. Entretanto, o Saci-Pererê pequenino, de uma perna só, de pele e cabelos pretos, usando na cabeça um barrete vermelho e mágico e fumando um cachimbo, seria mais comum no folclore do Sul[13] do Brasil, não havendo, portanto, o Saci-Pererê no Norte nem no Nordeste. Ademais, o Saci brasileiro possui características parecidas com alguns mitos de outros países. Chamado de “Yacy Yateré” (ANASTASIA, 2002:128) no Paraguai e na Argentina, é, muitas vezes, encontrado como um anãozinho vermelho de duas pernas, nu, de cabelos dourados (em alguns momentos com barba), usando um chapéu de palha na cabeça e trazendo uma varinha mágica ou bastão de ouro em suas mãos. Logo, em muito estas representações lembram o Saci nacional, porém nenhuma delas é tão parecida quanto a do Fradinho da Mão Furada português, que, além da carapuça vermelha e a mão furada, tem um jeito muito peculiar de invadir os quartos: ele entra pelo buraco da fechadura da porta e escarrancha-se em cima das pessoas que dormem com a barriga para cima, provocando nelas enormes pesadelos. Depois de causar pesadelos nos dorminhocos, ele revira as gavetas dos armários e dos guarda-roupas, deixando o quarto todo bagunçado. Por fim, Cascudo (2002:131) refere-se a Elfos, Gobelins, Lamias, Pulpicans, Trolls, etc., todos eles seres míticos europeus que possuem características ou comportamentos semelhantes ao esperto e misterioso Saci-Pererê. Ser mestiço habitante das florestas, dos redemoinhos e das margens dos rios, nascido em “sacizeiros” (LOBATO, 2005:18), inimigo do sol e filho das trevas, originário de lendas indígenas, principalmente dos Tupis-Guaranis, misturadas com crendices e superstições africanas e mitos europeus, o Saci não é bom, nem mau. Daí, o mito pode ser também interpretado como sendo o senhor das matas, principalmente do sertão, como curandeiro e como símbolo da liberdade, por portar uma carapuça vermelha semelhante ao Pileus romano, que, na Roma Antiga, identificava os escravos livres. Em seguida, descritas essas representações, cabe agora discutir os assuntos propriamente relacionados à figuração desse mito no espetáculo Cobra Norato. Antes disso, porém, faz-se necessária uma pequena análise da categoria representação. Num sentido mais abrangente, podemos dizer que o homem produz representações para conferir sentido ao real, sendo que “essa construção do sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas” (PESAVENTO, 2004:43). Dentre as várias formas por meio das quais as representações acontecem, podemos citar as que ocorrem no teatro de bonecos, como é o caso do grupo mineiro, que figura em seus espetáculos imagens de deuses, mitos, lendas e de elementos da flora e da fauna brasileira. Enfim, mais dois exemplos de representações: conforme Paiva (2002:50) a romã ou o cacho de uvas são símbolos da fertilidade associados à Virgem Maria, e, de acordo com Anastasia (2002:389), o Saci-Pererê pode representar o sertanejo e o sertão; e as suas diabruras, os elementos desestabilizadores e incontroláveis do cotidiano sertanejo. Assim, o Saci-Pererê, do Cobra Norato, pode ser visto como a (re)figuração do Saci que se encontra presente figurativamente no imaginário do brasileiro: um menininho negro, nu, perneta, astuto e com um cachimbo na boca. Mestiço, ele aparece bem rapidamente neste espetáculo, inclusive não tendo nenhuma fala. Sua função, na peça, seria a de aludir ao mito dentro do folclore da região norte do Brasil e a mistura de etnias, como podemos notar na sua composição: ele utiliza um lenço vermelho (europeu?) no lugar do tradicional barrete e traz, no pescoço, um denso colar dourado (africano?). Por fim, é importante salientar que Bopp não faz menção, em seu poema, ao Saci-Pererê. Dessa forma, a representação do mito na peça do Giramundo é uma licença poética do grupo. Adiante, descreve-se a rápida participação da personagem na montagem: Honorato, em sua saga, necessitando atravessar a floresta, pede licença ao Curupira[14], deixando-lhe um pedaço de fumo. Então, quem surge rapidinho para pegar e fugir com a oferenda é o esperto do Saci-Pererê, desaparecendo, em seguida, no meio da escuridão. Para concluir, observa-se que, em Cobra Norato, o Saci é robusto, lembrando um adulto baixinho que se recusou a crescer, qual o Peter Pan do escritor escocês James Matthew Barrie (1860-1937). Suas características físicas parecem fazer dele o mais africano de todos os sacis[15] do Giramundo, cujo rosto possui traços semelhantes a algumas máscaras ritualísticas desse continente. Regionalismo: a presença de Minas num contexto nacionalista. Em Minas Gerais, de acordo com Martins (1991:69), o artesanato existe desde os tempos de capitania, início do século XVIII, notadamente no mobiliário e em outras utilidades domésticas, bem como em acabamentos de igrejas e residências e peças destinadas ao culto; assim como nas máscaras utilizadas nas representações durante os festejos da Semana Santa e da Folias de Reis. Desta feita, fortemente presente no Vale do rio Jequitinhonha e no Vale do rio São Francisco, ambos em Minas, principalmente em cidades como Caraí, Itaobim, Taiobeiras, Pedra Azul, Salinas, Montes Claros e Januária, a cerâmica mantém viva a tradição do artesanato mineiro, constituindo-se como elemento identitário e patrimonial dos povos e comunidades locais. Além disso, por ter recebido uma influência indígena marcante, ademais dos portugueses e dos africanos, pode-se dizer que ela traz também, em suas formas, a memória dos antepassados que habitaram essas regiões. Aliás, com todo esmero em preservar as habilidades adquiridas e que foram passando de pai para filho — por diferentes gerações — os artífices, no processo de moldar as cerâmicas, continuam a usar fornos a lenha, a técnica dos roletes (cobrinhas), além de placas e ferramentas primitivas. Também foi mantida a técnica de se extrair — da argila encontrada nas muitas jazidas da região — os pigmentos naturais usados na pintura. Desse modo, quanto à modelagem das personagens de cerâmica do Cobra Norato, cabe lembrar que o Giramundo, possivelmente, tenha se preocupado com a inserção desse elemento — presente na cultura popular mineira, ou seja, cultura de caráter regional — dentro de uma atmosfera e de um contexto da cultura nacional. Assim, nessa obra, como, por exemplo, na animada cena da festança que acontece na residência do “Casal de bailarinos”, além da cerâmica, notam-se representações de outros elementos da cultura popular e do folclore que, também, podem ser encontradas no cotidiano do sertão de Minas Gerais. A saber: canções e ritmos da moda de viola; crendices e superstições; personagens com sotaques caipiras; e, por fim, objetos que lembram o interior pobre das casas sertanejas, como uma cumbuquinha de barro posta ao lado de um litro de cachaça, ambos decorando uma mesinha de madeira coberta por um gracioso forrinho de mesa. Com o fito de conclusão, apresenta-se a festança: a bailarina, com cabelo engomado, corpo perfumado e sobrancelhas feitas, vem chegando com um vestidinho tipo chita estampado. Pendendo das suas orelhas, brincos grandes e densos, cujos desenhos combinam com as estampas de flores do vestido. E mais, sapatinhos leves e baixos para o fácil bailar. Assim parece ser o traçado de uma jovem dona de casa, do norte seco e infértil de Minas. Receptiva, simpática e boa cozinheira, desde cedo, deixou pronto o tutu, o arroz, a couve e o torresmo, para bem aproveitar, ao lado do seu marido ou prometido, o grande baile da noitezinha quente. Também cheiroso e de banho tomado, com a cara maciinha pela barba cortada, o bailarino chega alinhado: camisa de gola com gravata, calça de linho com cinto de couro polido — arranjando com os sapatos marrons reluzentes. Porta em sua cabeça um chapéu de pele curtida, em acordo com a gravata, com o cinto, com os punhos e com os preciosos sapatos engraxados. Daí chega, então, Cobra Norato e o seu companheiro de andanças: COBRA NORATO – (fora): A festa parece animada, compadre. TATU: Vamos virar gente pra entrar? COBRA NORATO: Então vamos. COBRA NORATO GENTE: Boa-noite. DONO DA CASA: Bua-nuite. (…) Se for de bem pode entrar. COBRA NORATO [GENTE]: Então peço licença para quebrar um verso pra dona da casa… COBRA NORATO [GENTE] (cantando): Angelim folha miúda que foi que te entristeceu? FIGURANTES (dançando): Tarumã. COBRA NORATO [GENTE]: Flor de Titi murchou logo nas margens do igarapé. FIGURANTES: Tarumã (…) COBRA NORATO [GENTE]: Puxe mais um chorado na viola, compadre. DONO DA CASA: Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança. COBRA NORATO [GENTE](CANTANDO): Tajá da folha comprida não pia perto de mim. TODOS: Tajá (…) COBRA NORATO [GENTE]: Tajá que traz mau agoiro não pia perto de mim. TODOS: Tajá (…). (APOCALYPSE, 197?.:37-40). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Ana Maria. Teatro de Animação. São Caetano do Sul: FAPESP (Ateliê Editorial), 1997. AMARAL, Aracy A. Brasil: Del Modernismo a la Abstracción, 1910-1950. In: CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; trad. da introdução Gênese Andrade. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. ANASTASIA, Carla Maria Junho. Saci-Pererê: uma alegoria mestiça do sertão. In: PAIVA, E. F. ANASTASIA; C. M. J. (orgs.) O Trabalho Mestiço: Maneiras de Pensar e Formas de Viver – Séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002. APOCALYPSE, Álvaro. Cobra Norato: roteiro de luz (197?). Belo Horizonte: Museu Giramundo, 2009. BOPP, Raul. Cobra Norato. Ilustrações de Poty. 26. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; trad. da introdução Gênese Andrade. 4. ed. 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Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. ____________________ NOTAS: [1] Mestrando em Teatro pela UDESC; Especialista em História da Cultura e da Arte pela UFMG; Bacharel em Artes Cênicas — habilitação em Direção Teatral — pela UFOP. [2] Conforme Amaral (1997:15), Teatro de Animação ou Teatro de Formas Animadas é um gênero teatral que inclui bonecos, máscaras, objetos, formas e sombras. [3] Elementos que foram largamente defendidos, frente à invasão da cultura européia, pelos artistas “antropófagos” da Semana de Arte Moderna de 1922. [4] Segundo Megale (2003:21-22), o folclore do Brasil pode manifestar-se na sabedoria popular (medicina rústica), nas representações (autos e mamulengos), na música (cantigas de roda, modinhas e dorme-nenês), na dança (frevo, maxixe, Congada e Folia de Reis), nas práticas diversas (festas religiosas, candomblés e umbanda), nos mitos e lendas (Saci-Pererê, Lobisomem, Mula-sem-cabeça), etc. [5] O Manifesto Antropofágico foi escrito por Oswald de Andrade (1890-1954) e publicado em maio de 1928, no 1º número da Revista de Antropofagia. O movimento antropofágico brasileiro tinha por objetivo a deglutição/incorporação transformada e abrasileirada — sem mimetização — das influências européias (a cultura do outro externo) e afrodescendentes (a cultura do outro interno). [6] Cf. o depoimento de Álvaro Apocalypse no site http://www.giramundo.org/teatro/cobra.html. [7] “O modernismo, [no Brasil], se conjuga com o interesse por conhecer e definir o brasileiro. [Porém], os modernismos, [em geral], beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo francesa; de outro, ‘um nativismo que se evidencia na inspiração e busca de nossas raízes (também nos anos vinte começam as investigações do nosso folclore)’” (AMARAL, 1985:270-281. Apud CANCLINI, 2008:79). [8] De acordo com Paiva (2002:54), mestiço é um termo utilizado para designar os mulatos, pardos, cabras e caboclos brasileiros. Um bom exemplo da mestiçagem racial do Brasil seria a figura do importante artista do Barroco Mineiro, o Antônio Francisco Lisboa ― Aleijadinho ―, filho de um construtor português e de uma escrava negra. Finalmente, para o mesmo autor, “o gênio e o ethos nacionais eram mestiços” (Id.:79). [9] Conforme Pesavento (2004:43), o imaginário seria um sistema de idéias, de sentimentos e de imagens — representações coletivas — que estão profundamente enraizadas na maneira de ser, de agir e de pensar das pessoas. [10] Matéria prima pela qual foram confeccionados os bonecos “Bailarinos”. [11] Bonecos de balcão são aqueles — geralmente — manipulados num balcão ou superfície plana. [12] Conforme Hall (2006:08), identidades culturais são aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. Assim, um bom exemplo para a identidade cultural seriam as diversas expressões sócio-linguísticas do português brasileiro, que caracterizariam cada Estado e região. Vejam-se algumas, de acordo com Horta (2000:39, 91, 131, 175 e 209): “‘uai’ (interjeição que vale para tudo) e ‘trem’ (coisa), para os mineiros; ‘ser pidonho’ (estar sempre pedindo as coisas), para os paulistas; ‘até curi’ (até logo), para os amazonenses; ‘damo’ (homem solteirão que gosta de farra), para alguns nordestinos; ‘lê com lê, cré com cré’ (cada um igual ao outro), no Centro-Oeste; e, por fim, ‘caráter’ (rosto, fisionomia), para os catarinenses”. [13] Neste caso, a referência de Câmara Cascudo ao sul do Brasil parece incluir os estados das regiões Sudeste, Centro-oeste e Sul. [14] Conforme Cascudo (2002:133), o Saci em sua subida para o norte do Brasil, foi assimilando os elementos que pertenciam ao Curupira, como, por exemplo, parar a perseguição a alguém para desatar nós. [15] O mito do Saci aparece figurado em mais quatro espetáculos do grupo mineiro. A saber: “Saci Pererê” (1973), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002). Curtir Carregando... 21 out Publicado em 21/10/2009 às 11:55. Arquivado em 1 e marcado Antropofagia, Belo Horizonte, Bonecos, Giramundo, identidade, mestiçagem, nacionalismo, Teatro. Guarde o link permanente. Seguir quaisquer comentários aqui com o feed RSS para este post. Procurar Mais Antigo: Multiplicidade de vozes e discursos na obra Pinocchio do Giramundo Teatro de Bonecos Mais Novo: Ópera La Traviata, Belo Horizonte, maio de 2010. 8 comentários sobre “ANTROPOFAGIA, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E NACIONALISMO NO COBRA NORATO DO GIRAMUNDO TEATRO DE BONECOS” Jordan Vieira de Oliveira em 21/10/2009 às 21:23 disse: Parabéns. É sempre bom propagar a cultura mineira e nacional. Comentar ↓ Jorge em 22/10/2009 às 17:54 disse: Gostei bastante de suas matérias….parabens Comentar ↓ lucianodiretor em 24/02/2011 às 20:11 disse: Obrigado, Jorge. Abraços desde Belo Horizonte. Luciano Comentar ↓ lorena em 17/11/2010 às 16:55 disse: booooooooooooooooooooooooom d + Comentar ↓ lucianodiretor em 24/02/2011 às 20:11 disse: Muito obrigado. Comentar ↓ Pingback: Os números de 2010 « Blog de Luciano Oliveira, diretor, professor e produtor de teatro Guilherme - Unimontes MG em 24/02/2011 às 20:01 disse: Parabéns não somente por este mas tbm pelo mestrado.. Seus trabalhos tem me ajudado e muito no desenvolver de minha pesquisa!!! ate algum dia!!! Sucesso… Comentar ↓ lucianodiretor em 24/02/2011 às 20:11 disse: Obrigado, Guilherme. Fico feliz em saber que os meus escritos podem contribuir, de alguma maneira, para os trabalhos de outros pesquisadores. Sucesso para você!!! Luciano Comentar ↓ Deixe uma resposta Escreva o seu comentário aqui... Blog no WordPress.com. The AutoFocus Theme. Seguir Seguir “Blog de Luciano Oliveira: diretor, professor e produtor de teatro” Obtenha todo post novo entregue na sua caixa de entrada. Tecnologia WordPress.com

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