Marcas da Oralidade:Estudo Comparativo entre Cobra Norato,Macunaíma e Martim Cererê

MARCAS DA ORALIDADE: ESTUDO COMPARATIVO
ENTRE COBRA NORATO, MACUNAÍMA E MARTIM CERERÊ
Helenice Maria Reis Rocha
Procurei, neste estudo, confrontar diferentes marcas de oralidade no sentido de mostrar
como estas marcas são retraduzidas no espaço da poesia e ficção modernista. Por marcas de
oralidade estou considerando os mitos indígenas que são usados e retraduzidos no espaço do
corpus literário analisado. Trata-se de dar a perceber o sentido que tem essa retradução no espaço
da oralidade e de que maneira essas obras se aproximam ou se afastam dos seus diferentes. Ou
seja: trata-se de evidenciar em que medida a lógica da oralidade transparece no universo da
cultura branca, letrada. Para tal, confrontei, Martim Cererê, Macunaíma e Cobra Norato, no
sentido de flagrar semelhanças e diferenças no interior do próprio projeto modernista. Perceber
semelhanças e diferenças é marcar a face identificadora desse projeto na sua repetição do mesmo
e na sua alteridade. São três grandes obras que se dizem de si e do Brasil e que muitas vezes
recorrem a um mesmo imaginário.
Com relação a Cobra Norato e Macunaíma, a construção do discurso é bem parecida. Em
Macunaíma, a noção de um herói sem nenhum caráter nos remete ao herói de Cobra Norato, que
se desveste de qualquer brio, mata a Cobra e veste a sua pele para satisfazer o próprio desejo:
casar com a filha da rainha Luzia. Este ato de traição é um desvestimento do próprio caráter que
obedece tão somente à lógica do desejo. As peripécias de Macunaíma, nas quais fica patente a
ausência de qualquer caráter se relacionam com as peripécias do herói travestido em cobra na
medida em que, para satisfazer o próprio desejo, vale-se de qualquer coisa: a traição, a burla e
tudo o mais que possibilitar a realização desse intento. Aliás, muito em consonância com os
ciclos de bichos das narrativas orais nas quais o que prevalece não é um ato moral, mas a astúcia.
Se pensarmos no fabulário europeu, podemos tomar como exemplo Pedro Malasarte, no qual a ética
também é eclipsada pelas peripécias do herói.
Também Macunaíma é marcado pela lógica do desejo. Um desejo libertário que se
expressa através da busca de um objeto mágico, a muiraquitã. Tanto em Macunaíma quanto em
Cobra Norato se observa uma queda do sublime ao grotesco. Então temos no poema de Bopp
uma floresta de “hálito podre”, por exemplo. Vejamos outras situações nas quais esta queda do
“limpo” ao “sujo”, do “belo” ao “feio”, se dá: “O mangue de cara feia vem caminhando com a
gente”. 1
Como se vê, não se trata da visão de uma floresta maravilhosa. “Essa é a floresta de
hálito podre parindo cobras”. 2
Aí está uma ruptura com o ideário europeu dos viajantes, que idealizaram as florestas em
nome da necessidade de uma propaganda que garantisse a colonização. Em um diálogo com as
árvores, o herói diz a elas:
– Vocês tem que afogar o homem na sombra
A floresta é inimiga do homem
– Ai! Ai! Nós somos escravas do rio. 3
– numa clara alusão ao caráter hostil da floresta, ou seja, uma queda do maravilhoso no hostil, do
sublime no grotesco. Esse descenso à terra também é observável em Macunaíma. É o que Eneida
Maria de Souza chama de “Discurso Escatológico”, através do qual o herói, Macunaíma, é
flagrado em situações de sujeira e de mau-cheiro. Essa sujeira aparece, em Macunaíma, num
contexto em que o fogo sexual é evocado. Em Cobra Norato é apenas uma queda. O discurso de
ausência de caráter, típico do imaginário brasileiro e de uma dialética da malandragem que, tal
1 BOPP, Raul. Cobra Norato e outros poemas. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 171.
2 BOPP, 1976. p. 182.
3 BOPP, 1976. p. 153.
como enunciada em Antônio Cândido, parece apontar também para a
literatura oral, inclusive no fabulário europeu, se pensarmos no caso de Pedro Malasarte. A par de
uma literatura oral moralista, existe uma escatológica e transgressiva que parece ser válvula de
escape aos desejos populares. Novamente a lógica do desejo comandando as ações. No capítulo
“Vei, a Sol”
O traço escatológico acha-se presente desde o princípio do capítulo quando o herói, vítima
da ação do urubu, torna-se sujo e mal-cheiroso. A estrela da manhã e a lua se recusam a
levá-lo ao céu, sob o pretexto do mau-cheiro que exala.4
O discurso escatológico substitui o moralismo próprio das narrativas orais populares do
fabulário europeu pela lógica do desejo, da obtenção do prazer e da satisfação pessoal. Essa é
também uma vertente das narrativas orais populares se pensarmos, como já se disse, nas
narrativas dos ciclos de bichos nas quais os heróis se desvestem de qualquer nobreza, de qualquer
“limpeza”, no mais das vezes para sobreviver ou para a obtenção de algum tipo de prazer. Em
Martim Cererê, apesar da freqüente referência ao relato-mítico indígena, a narratividade
estrutura-se sobre os feitos sublimes dos heróis bandeirantes. Perde-se a versão escatológica e
ganha-se um tom épico, que tem também muita relação com a literatura modernista. Essa vertente
da oralidade (o discurso escatológico) está ligada à feira, à praça pública, às ruas, ao que é oral e
popular. Segundo Eneida,
A escatologia é um dos temas mais explorados nos textos ditos populares, sejam eles
literários ou para-literátorios, caracterizados por uma linguagem que zomba as
manifestações próprias do discurso oficial. 5
Podemos dizer que Cobra Norato está a meio caminho do discurso escatológico, uma
vez que usa os recursos dessa escatologia saindo da excelsitude do simbolismo, experimentado
4 SOUSA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso: jogo e linguagem em Macunaíma. Belo Horizonte: UFMG,
1988. p. 39.
5 SOUZA, 1988. p. 38.
também por Raul Bopp, para uma visão que aproxima a floresta de um locus horrendus muito
distante da noção de mirabilia.
A procura da muiraquitã em Macunaíma, da mulher desejada em Cobra Norato, nos
aproxima também da noção de busca de um elo que pode ser personificado como algo perdido (e
isso é mais claro no texto de Mário Andrade), que nos remete à idéia do paraíso perdido do relato
bíblico. O relato bíblico tem a marca da oralidade, uma vez que vem sendo transmitido através da
fala há séculos, apesar de ter sido escrito e se transformado em palavra sagrada. É uma palavra
que tem também a marca da oralidade.
Outra característica que nos remete à oralidade é o uso dos meios mágicos para a
salvação do herói. Como sabemos, os mitos advindos do universo oral pressupõem uma saída do
lugar de origem, uma série de peripécias, nas quais os recursos mágicos da salvação do herói
entram em cena e há uma glorificação em função dos feitos de coragem e bravura.
De acordo com Haroldo de Campos,
Na seqüência padrão do “conto de magia” proppiano, aparecem (...) os “doadores” ou
“provedores”, cuja função é fornecer um “meio”, geralmente “mágico” ministrando assim
ajuda ao herói para a obtenção da desejada reparação do dano”.6
Em Macunaíma podemos observar essa função em várias situações. Na seqüê ncia em
que Macunaíma vai pela primeira vez à casa do gigante Piaimã e sofre um dano terrível,
chegando inclusive à morte, aparece como recurso mágico um irmão feiticeiro, Maanape, que o
reconduz à vida. Vejamos:
O herói picado em vinte vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta fervendo. Maanape
catou os pedacinhos e os ossos e estendeu tudo no cimento pra refrescar. Quando
esfriaram a sarará Cambgique derramou por cima o sangue sugado.
Então Maanape embrulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas de bananeira, jogou
o embrulho num sapiquá e tocou pra pensão.
6 CAMPOS, Haroldo de. Morfologia de Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 165.
Lá chegando botou o cesto de pé assoprou fumo nele e Macunaíma veio saindo meio
pamonha ainda, muito desmerecido, do meio das folhas. Maanape deu guaraná pro mano e
ele ficou taludo outra vez. Espalhou os mosquitos e perguntou:
– O que foi que sucedeu para mim?7
Vários exemplos dessa natureza se sucedem em Macunaíma, não apenas no sentido da
salvação mas no da danação também. Quando quer danar alguém o herói usa e abusa de recursos
mágicos. Em Cobra Norato, quando o herói veste a pele da cobra, a pele ganha o caráter de um
recurso mágico com vistas à obtenção de um desejo. A pele, tal qual o objeto mágico, visa a
proteger o corpo das agressões do meio e a garantir a integridade da pessoa que a possui. Ao
vestir uma pele alheia o herói de Cobra Norato se investe de um recurso externo (tal como o
objeto mágico) para se proteger. E essa atitude que tem também algo de ritual não vem investida de
um sentido moral, já que, para alcançar êxito, o herói tem que matar o dono original dessa pele.
Assim como em Macunaíma, as ações não são investidas de um tom moral. Já se
estabeleceu uma ponte entre o discurso amoral, escatológico e as narrativas dos ciclos de bichos,
típicos da oralidade. Podemos estabelecer a marca da oralidade, não apenas em termos de uma
estratégia narrativa, mas nos termos também da matéria cultural que serve de elaboração dessas
obras, no caso o relato mítico.
No caso de Cobra Norato e de Macunaíma, vêm ambas investidas de um apelo
fortíssimo à oralidade, quer seja por causa do relato mítico, quer seja por causa dos falares que
perpassam essas obras.
O escatológico no discurso parece indicar o que já se disse ser a humanidade dos mitos,
dado que o que se busca perceber nesses relatos é a condição humana nos seus momentos de luta
pela sobrevivência, de luta contra a adversidade.
7 ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.p. 34.
Em Martim Cererê, a referência a esse substrato cultural que é o relato mítico é
constante. O mito do aparecimento da noite, compilado entre outros por Câmara Cascudo, por
Couto de Magalhães e por Sílvio Romero, é evocado no poema “Sem noite, não”. 8 O mito da
cobra grande, aparece no poema “A cobra grande”. 9 A simples recorrência a esses mitos já
aproxima Martim Cererê tanto de Cobra Norato quanto de Macunaíma. Além disso, o livro é
marcado por uma brasilidade que por si só já nos remete a narrativas como Cobra Norato e
Macunaíma. A diferença é que o tom irônico e malicioso, tanto de Macunaíma quanto de Cobra
Norato é substituído por uma grandiloqüência que valoriza os feitos de um outro tipo de herói. Os
heróis bandeirantes são o tempo todo glorificados num tom, no mais das vezes, épico. A ausência
do conflito, dos antagonismos, faz pressupor um texto parafrásico, não marcado pelo sinal da
diferença, se constituindo assim numa repetição dos textos oficiais. Os modernistas se
posicionaram muitas vezes como os messias da modernidade e isso muitas vezes desembocou em
atitudes acríticas como essa de Cassiano Ricardo, que não enxergou o caráter de exploração das
riquezas do Brasil que as entradas e bandeiras levaram a efeito. Oswald de Andrade foi um pouco
mais crítico quando os chamou de “pés de ferro”, ou seja, exploradores brutais.
8 RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. Rio de Janeiro: EDVFFI Antares, 1987. p. 20.
9 RICARDO, 1987. p. 30.

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