segunda-feira, 26 de março de 2018














A BARCA
DA NOITE






Helenice Maria Reis Rocha







O GRITO DO NADA


Sobre o nada regateio os
meios dias
sapateando nos espinhos
das valas
Quando calas, me desvaneço
Tu, rosto sem face que
me espreita
Sou esse rosto sem rosto
que me observa
Indigno ser errante de
um erro sem nome
Batizo as estradas
com meus pé voantes
revolvendo terra
beijando o pó da
minha espera.








A RIMA

Joana não tem dentes
Maria espera um noivo
Clarinha está doente
Joaquina não tem parentes
Julinha baila nas avenidas
e João ficou demente
Entre tantos desatinos
o que mais me assombra
também me desafia
Entre tantos rumos só
um me desatina:
como atravessar o
trapézio equilibrando
a rima?





O ÓCIO


Despetalar o ócio
esse o ofício de
quem cria
informando o rumo de
um trabalho sem preço
Desmascarar o ofício
esse o rumo de quem
oferta sua cria no
altar da consumição
Desamarrar os rumos
esse o gosto de
quem sentencia o
doce exercício de
vaticinar as horas
Desarmar a verve
esse o dever de quem
arruma palavras em
verso
explicitando a vida.






A FUGA


De outro tanto a outrossim
escapei da lábia de Caim
Não caí no poço fundo
da amargura
Arquitetei bem a fuga
No lado obscuro
da armadilha finquei minha geração
plantei meus dias vazios
dormi sem preocupação.
Na cova do desenredo
enterrei as sementes do
medo e gritei por
precaução.







A PASSAGEM


O adro da igreja se desmancha
no ar
As reuniões de família
são trituradas no pó da
lembrança
Dança minha intacta intuição
do fim na garganta
A poesia toda me consome
Sem nome, perambulo pelas ruelas
do tempo.
Onde, os talheres do almoço
O passo miúdo de Belinha?
O canto da mãe?
No âmago do esquecimento
que tudo passa
Até as risadas dos colegiais.








TIA EDITH


A voz da prima me comove
A Maria do Carmo veio visitar
Edith Reis e ela morreu
A vida vai e vem como as
gangorras nos parques
Nem o câncer permanece
A voz da prima me demove.
Não vou mais chorar os meus
mortos
elas não voltam
mas espreitam o meu fim.












O ESCARRO


Eu queria uma doença
venérea
não posso, sou moça casta
Nem o pó dos espelhos
me deseja.
Só a tosse me namora
Eu queria a vida em tempo
record, com toda a sua nudez
descarada.
Entre a benção e a
maldição escolho a
longa ausência que me
bendiz e o escarro.










A GRIPE


A gripe, a gripe, a gripe
que não é espanhola e
vem sem adereço me
sucumbe
Sou toda abismos e
catarro
As praças e as ruas
me expulsam
ao coro da minha tosse
Me afundo, me abundo
numa cama de colossos
esperando passar a gripe
Uma ausência de síntese
me constrange.











O VERSO


Cada porção de verso
é uma sentença e
isso me aborrece
Me inunda a falta de
juízo correndo solta
nas ruas
Tenho o vício de contar
as pandorgas e de
sentar de cócoras
Sou uma poeta cerebrina
e vejo a cidade com
palavras escolhidas
mas a cidade não me vê
e isso é bom.










A CIDADELA


No meio de uma praça
invisível armei a minha
cidadela
Nela não entravam os
funcionários do rei ou
as damas da corte
Ninguém via as flores ao
redor do muro invisível
indizível teorema de
paz indecifrado
cilada de lobos
refúgio de mansos.














O VAZIO


O vazio que habita em
mim é visitado por
um passarinho
cantante parcela de vida
e sol desdenhando meu
rumo sem ninho
essa falta de jeito esculpindo
mazelas em nesgas de nada
O vazio que habita em
mim é rasgado de valas
onde caem os cadáveres dos
meus sonhos.











O AVISO


Vim de algures sem trazer
bagagem
tateando alhures os portos
da viagem.
Quem tem sono tem
sombra cobrindo a carne
adormecendo a medula
em colo manso
Tenho do meu sonho a memória
de um grito
e da passagem, um aviso.












A FALTA


Neguei, neguei a esmola
adormeci a memória e
mastiguei a carne em
dentes mansos
Não sou a ferida do mundo
espero a muito tempo um
beijo e não tenho.
Deus sabe a falta que
me falta e ainda me
lança fardos.
Neguei, mas um dia eu
dou,
com calma e honrarias
aquilo que te falta.














SENTENÇAS


De onde vem o grito que
me batiza a pele
Quem é o cordeiro que
me banha as vísceras
O que é o susto que me
deixa alerta
Espero respostas, encontro
sentenças.















VIDA NUA


Lendo a rua descreio da
aventura de viver
As pedras escrevem o
barulho seco de passos nus
assinando os paralelepípedos
de rumos.
Os bons e os maus humores
batizam essas ruas
Viver é algo mais que rasgá-las
compassos de vida nua.
















A BOBA

Um branco vertical
molha o meu verbo
Verve! Verve! Para que
serves diante da loucura
das crianças?
Um branco horizontal atravessa
o meu verso
Verve! Verve! a quem serves
senão aos loucos?
Sou a horizontal e a vertical
dos bobos.














O RISO E O GRITO


O riso que o meu gesto
esconde não anuncia as
manhãs
riso tímido de quem
galga montes a passo
miúdo
Desconfio do vendaval
das espécies
A redistribuição de
rendas? Duvido
Mas amo o latido dos cães
e o grito dos meninos.












VENERANDA FACE


Endereço ao certo e
ao já sabido o meu
escárnio
enquanto as religiões
me consomem
Sei da dúvida
da solidez do verso
da fome
Comando meu escarro e
beijo minhas fontes
na face dos que
me antecederam.











NATAL

Meu olhar desata rios
nutrindo carícias
Desamarro a respiração dos
dias amando o tempo
lento, voando sobre o
carmim das horas
Oro, é natal
Isabela exulta
o natal foi na casa dela
o cristal das falas me embala
O alecrim do verbo
batiza as salas
e as crianças nas
ruas gemem
como Belinha quando
está só.






CHUVA


Enfim a chuva declarando
água
lavando as pedras
Afirmo a minha profissão
de fé na chuva abençoando
os charcos
Batizo os sapatos de
pura água
e o dia transcorre
sem nome
A terra lança cheiros
de pós abissais
por quase nada.












LA LUNA


A lua engole a noite
A noite se deita
sobre a rua acariciando
a pele dos amantes
A língua da noite
lambe os passantes
e grita o silêncio do
açoite
murmurando mel nas
alcovas
Minas conspira.










AS ÁGUAS


Uma procissão de águas
desaba nos desbarrancados
soterrando gritos
açoitando os negócios
imobiliários

Água, barro e carne batizam
a terra
fecundando o fim

As pedras gritam especulando
o olhar agudo da dor
A Litania dos mortos
se cala gemendo

A cidade acolhe.












PALAVRAS


De todas as palavras
malditas a que mais
me acolhe mobiliza
o verbo
O verso não canta, corta
gritando sentidos
O verbo não fala, cala
amarrando gemidos.
















AS HORAS

Amo a doçura dos loucos
a mansidão dos velhos
o tecido das falas
Amo o lado obscuro das salas
os acordos inconfessáveis
o absurdo das valas
Amo o impossível de amar
nas encruzilhadas dos rumos
Amo o desvairado rumor das horas.
















O PÓ


Transpirar o pó como
quem sabe do barro a face
construindo sobre a terra
o andar dessa morada
de carne que habito
Hei de voltar ao pó
exalando o tempo
mascarando o fim
Hoje as ruas me fecundam
a pele em ventres novos
Com pássaros na garganta
grito os começos
e sigo.










A CENA


A sentença que esse verso
encena não anuncia o fim
Trapézio de silêncios ao
rumor das falas olha calada
as arestas do verbo
Sou um manso teorema de
um começo sem nome
Batizo os pássaros
e tenho fome.
















A MINHA CARNE


A carne que me batiza
não desatavia as manhãs
Antes anuncia enigmas
proferindo alto os nomes
das profanações
Difamei o sagrado rumo
das horas
Informei o sacro ofício
dos rumos
Prossigo, selvagem.











LADEIRAS


As ladeiras clamam músculos
para a alegria das subidas
Na descida todo santo ajuda
Declino das ruas como quem
profere avisos
e sigo
Quem não tem nada, tem
ruas
e o mudo olor das tardes.

















BEM-TE-VI


Cansei das vozes e
das falas
Prefiro o mudo augúrio
dos meus cantos
e prefiguro a sorte, calada
Nada me anuncia alvíssaras
além do pio do bem-te-vi
no meio do dia.















PASSOS


Não sei quem me alinha
os passos
Só ando em caminhos
estranhos
tirando das vísceras meus
dardos
lançando ao vento meus
gritos
Não sei quem me embala os
abalos
Só sei que clamo.














A ORIGEM


Na origem o balanço
dos começos declara o
silêncio

Vejo o ondulado das
ruas, namoro o desenho
das pedras sobre os
pés
Não tenho nada
Só o início e o fim
dos meus dias.














INTRÓITO


Danço com o meu verso
triste uma valsa
e esse par insólito
me consola
Sinto através dos dias
uma falta e essa
ausência me denuncia
Os dias seguem esse
mudo intróito.















O ARSENAL


Um arsenal de silêncio
invade minhas entranhas
A paz vem das
vísceras onde o mudo
caminho do grito se instala
Um desfile de avisos se
cala na minha garganta
Tenho a palavra e o
presságio.

















O FIM


Trafego ruínas como quem
dobra sinos
O que foi, foi
sabendo ao silêncio e
ao fim
Tão consoladores os fins
O que não tem fim
não dá descanso.
















A TRAVESSIA DAS FALAS


Fala Aparecida!
Amo sua voz e seu gemido
Fala Maria!
Amo seu riso proscrito
Fala Luísa!
Amo seu grito
Fala Joana!
Amo sua gana
Fala mulher!
Procura quem te quer
que a vida urge!















O BATISMO DAS FALAS


Os rios que correm nas
falas não deságuam no mar
antes sussurram mansos
nos sulcos da palavra
ou gritam nos cernes das
pedras furando o duro
equilíbrio pétreo
O batismo das falas
não tem nome.
















FESTA


Esqueci as asperezas
e proclamei o meu
dia de festa
Nas janelas, flores
nas ruas, amores
Não conheço as dores do
parto e já abençôo a
agonia
No dia do juízo estarei
alerta.














O CONVITE


Assombrei o tempo
com fantasmas simpáticos
Desvelei o outro lado
da sombra dançando
no umbral dos vivos
Os mortos nos sorriem
desdenhosos nos cantos
esquivos da lembrança
Canto o dia fatal
que virá como um
convite.














SACRO OFÍCIO


Me escondi no altar
das feras em dia de
sacro ofício
Ninguém me achou,
nem parentes nem amigos
O dia e a hora da devoração
despetalam o futuro proscrevendo
ritos
A hora do vôo nem sempre
desvela o grito.

















O GRITO DO SILÊNCIO


Um cordeiro desesperado
urra o sacro ofício dos
santos
e essa dor calada
dos sacrificados
ecoa pelos quatro
cantos.













OFERTÓRIO


Construindo a voz dos
famintos de toda espécie
esculpo parcelas de gritos
Nas entrelinhas do meu
verso livre
gritam os que nunca tiveram
amor
gritam os que nunca tiveram
parentes
gritam também os que
tiveram
e os que têm fome
Eis o meu ofertório de gritos.












AS CRIANÇAS


A aragem do cio frutifica
os campos
Os quintais cantam nas
quimeras imaginadas
Hoje, o urro mudo das
crianças batiza as ruas

O inominado permanece
irreconhecível no cimento
cru. Não tem certidão de
nascimento
É natal.















O REAL E O NADA


O eu lírico é um
mentiroso que finge
delicadezas
Quem é e não é baila
em ásperas estradas
descaminhando entre
o real e o nada.
















MEU RISO


Quero da calma a medula
o matiz mesmo do silêncio
mas amo o grito das
ruas
o gemido solitário dos
sinos
os risos

Vejo o dia como quem
planta gritos
e rio o meu riso
sereno de loba.














AGORA

Tudo está para amadurecer
O verde dos tempos planta
raízes nas ruas
tudo está por acontecer
O que não veio, virá nú
revivendo as manhãs
tudo é agora
quando a vida nem batizou
as horas
e os minutos não têm nome.















O SILÊNCIO DO TEMPO


Vejo as raízes das
horas
olho
O tempo molha as
avenidas mudo
sempre mudo porque
nós é que falamos
O tempo fecunda os
destinos e
olha, calado.













OS DESCAMINHOS DO TEMPO


Aquela rua era como
um vão sem rumo
Os velhos abençoavam mansos
suas pedras
As crianças acreditavam
nela
Aquela rua era como uma
vala sem bruma
As mulheres caminhavam nela
Os homens as acompanhavam
Aquela rua corre perdida
os descaminhos do tempo.













UM VERSO MANSO


Esculpi um verso manso
nas curvas das estradas
Nem os fortes derrotam
a mansidão de um verso
Enganei o perigo e me
entreguei inerme ao pacto
inocente com as manhãs
A calma viração das manhãs
abençoa o desfile dos dias.

















PETRÔNIO E O MAR


O mar mora dentro de
mim
Nas minhas veias navegam
peixes e dançam piabas
Atravesso as montanhas de
Minas cheia de mar
como o Petrônio Bax
e rezo.

















O SONO DAS CRIANÇAS


O lírico despertar dos
meus gritos acorda
o sono das crianças
Grito como as mães
cantam
A epiderme desse canto
desliza pelos cantos
da minha ausência.
















MARIA !


Maria, porque te fizestes
tão mansa dentre as
mulheres!
Pari com dor, ofendi aos
santos, pequei!
É tanto o meu amor
que a santidade não
cabe nele
Perdoa Maria.

















GLÓRIAS PASSADAS

Lavei as pedras da
rua do meu amado
Benzi seus beijos inflamados
Bendisse suas mazelas
Hoje, calço minhas chinelas
e danço na soleira da
porta as glórias do
amor que vivi
em sonho.















O GOZO


O gozo não tem hora
nem pressa
Quem tem dos dias a
memória do gozo
tem também a glória de
ser livre
Mastigo os minutos como quem
bendiz as horas
e bendigo também
a assinatura dos segundos.














MAZELAS


Tatuei minhas mazelas
de santas aspirações
O riso do meu desejo visitou
minhas entranhas
Minhas vísceras apontam
para o nada onde nem o
punhal ou a carícia
se encontram
A vida apunha-la
minhas relíquias
ferindo fantasmas
que encontrei.











A TATUAGEM DA ESPERANÇA


Insisto inclemente
na esperança
Entrego ao pó
das ruas o gemido
dos loucos
exijo respostas
A gargalhada do destino
me espreita
e me deita na cama
dos desesperados
Levanto
e rio mais alto.












ANCESTRALIDADE


Meus ancestrais gozam
de boa lembrança
só não saem das tumbas
porque não têm hábito
O balé dos mortos ainda
não despedaçou meus
ritos
Brinco o despetalar dos
dias como quem
inventa gritos.
Meus ancestrais, sólidos na
lembrança, riem.












A ARQUEOLOGIA DO VERBO


A arqueologia de
um verbo mutante
atravessa meus ossos
como um catavento
movimenta sentidos
Assim perfurada reviro
meu siso
Vejo
clarividente mutação dos
começos em chuvas de
radicais
As palavras e seus fins
inventam malícias.














MEUS OSSOS


Os ossos que a minha
carne sustenta balançam
os chamados da paz
agüentam as provas que
essa carne exige
engendram passos
sobrevivem.

















A SEIVA DOS DIAS


Rabiscando nadas no tempo
a poesia finge sentido
Eu queria mesmo é ver
os primos
comer pão recheado
enganar o juízo
Escrevendo cicatrizes em
valas a poesia vive
ao abrigo
e a vida escorre na
seiva dos dias.












DEUSES


O diabo não me engana
porque tenho parentes e
amigos que me enganam
mais
Uns dizem: Tens talento
outros; nem tanto
mas o meu secreto
poder de confundir
meus fardos
enfurece os deuses que
bendigo.

















O PIVETE


Sou poeta, quem há
de negar?
O lírico rumor das
esquinas me chama
Vou, sou poeta
e o pivete me assalta.

















AMOR DELIRANTE


O suor fino da chuva
transborda a secura
da tarde
Antes só a saudade
apunhalava a dor
Hoje, deliro as folhas
de uma ausência
O amor não veio
amo, sem resposta.
















OS PASSOS


Os passos do silêncio
caminham sobre meu
entendimento
deixam pegadas limpas,
mas cruéis
Sou esse longo momento
de espera
quando alguém diz não
e eu ouço, sim.
















DESAFIO


Lanço aos céus um
desafio
saber o que há de
mim em ti e o
que há de ti em mim
Lanço aos milênios
uma provocação
saber o que há de amor
em nós
além do fim anunciado.














O SENTIMENTO DAS HORAS


Estou livre e não
sinto as horas
As pandorgas sujam
o céu e me consolam
Tenho pena de mim,
de ti, dessa distância
que nos condena ao fim
e deploro
Nada sei de amor
e às vezes, imploro.














LINHA DO HORIZONTE


Dançando sobre a linha
do horizonte vejo os dois
lados do mundo
Posso cair a qualquer
instante num abismo
bem fundo
Esse, o engenho do
artista
Se erguer do abismo
num trapézio
imaginário.














O SUL DO CORPO


Seivar a urgência de carícias
alimentando a paisagem
da ternura
A usura dos amantes é
a economia da ternura
A seiva subindo a
paisagem do corpo como
mãos que beijam
O sul do corpo em
festa.















O ESCONDERIJO DO ANJO


Uma esperança suada
dança nas avenidas
canta no grito dos pregões
chove no choro das crianças
O ano se esconde no fim
ao longe os aviões
arranham o céu
alvíssaras.

















A FALA DO SILÊNCIO


A paz das ruelas
atravessa meus cernes
Sou aquela que espera
o companheiro na noite
espreitando o rumor da
madrugada
Sou a fala do silêncio
beijando o murmúrio das
estradas.
















A CARNE DO GRITO


A carne do grito apodrece
nas trincheiras
Onde descansa a pele
da criança nua atravessando
meus rins?
No olhar das ruas
Excruciantes ruas de
espasmos cruéis.

















A PALMA


A palma da alma
bóia na trilha dos
caudais
Um caudal de
avisos risca a palma
Um caudal de risos
rabisca a alma.



















A UTOPIA


Desornada face de
uma idade sem lugar
a utopia sussurra
saídas dos túneis
da esperança
O balanço dos fins
não tem preço
O sorriso dos pássaros
guarda as entradas.
















GRITOS DE VÉSPERAS


Viscerais gritos das
vésperas
clamando os mansos
para o festim das bodas
pedindo aos fortes para
deporem as armas
Vesperais gritos de
ontem
os que vão nascer
vos saúdam.















O SALÁRIO


O salário dessa parca
vida me constrange
Vejo no sono dos esquecidos
a inocência dos anjos
e isso me entorta os
juízos que me restam
Não sou presença na
memória
dor ou riso.












OS ANOS


A realeza dos anos
descansa aqui, na minha
mão
jorrarão pássaros da
minha verve
Terei descanso
porque não dei aos
vermes o festim da devoração
vim de ontem, atesto hoje
meu sinal de presença
amanhã, quem sabe,
as esquinas batizarão
a minha carne
a tarde sussurrará
a minha ausência
a toa.






O POEMA


A carnação do poema
se faz verbo em flor
Toda a dor desse
entreato se consuma
na palavra
Falo do amor
da sua ausência
em mim, em ti
no clamor do tempo
Canto as ruas, nuas
ou bem ou mal
canto
Canto a palavra em
semente e cor
Canto o grito em
semente e dor.








O PÃO


O pão que me acolhe
não floriu o meu sangue,
antes me esvaziou as
veias
Veio do pedido exangue
em dias de horror
As portas que me espreitam
a face me recusam
o abraço
antes se calam, inermes
Conheci o eito e
deito-me ao relento
conheço um lençol negro
de estrelas me
abençoando o peito.












PACTO DE SOL


Os domingos e as praças
comungam a hóstia
do silêncio e não
precisam do cordeiro
O corpo do sacrifício
é uma ausência
Nada grita além dos
chamados dos meninos
Os domingos e as
praças se abraçam
Pacto fatal de sol e tarde.

















DESPEDIDA


Adeus poesia
Vou prá bem longe
onde os homens não
rezam ou recitam
só amam.












Í N D I C E


O GRITO DO NADA ............................................................................ 1
A RIMA ................................................................................................ 2
O ÓCIO ................................................................................................ 3
A FUGA ................................................................................................ 4
A PASSAGEM ...................................................................................... 5
TIA EDITH ............................................................................................ 6
O ESCARRO ........................................................................................ 7
A GRIPE ............................................................................................... 8
O VERSO ............................................................................................. 9
A CIDADELA ........................................................................................ 10
O VAZIO ............................................................................................... 11
O AVISO ............................................................................................... 12
A FALTA ............................................................................................... 13
SENTENÇAS ....................................................................................... 14
VIDA NUA ............................................................................................ 15
A BOBA ................................................................................................ 16
O RISO E O GRITO ............................................................................. 17
VENERANDA FACE ............................................................................ 18
NATAL .................................................................................................. 19
CHUVA ................................................................................................. 20
LALUNA ............................................................................................... 21
AS ÁGUAS ........................................................................................... 22
PALAVRAS .......................................................................................... 23
AS HORAS ........................................................................................... 24
O PÓ ..................................................................................................... 25
A CENA ................................................................................................ 26
A MINHA CARNE ................................................................................. 27
LADEIRAS ............................................................................................ 28
BEM-TE-VI ........................................................................................... 29
PASSOS ............................................................................................... 30
A ORIGEM ........................................................................................... 31


INTRÓITO ............................................................................................ 32
O ARSENAL ......................................................................................... 33
O FIM .................................................................................................... 34
A TRAVESSIA DAS FALAS .................................................................. 35
O BATISMO DAS FALAS ..................................................................... 36
FESTA .................................................................................................. 37
O CONVITE .......................................................................................... 38
SACRO OFÍCIO .................................................................................... 39
O GRITO DO SILÊNCIO ...................................................................... 40
OFERTÓRIO ........................................................................................ 41
AS CRIANÇAS ..................................................................................... 42
O REAL E O NADA .............................................................................. 43
MEU RISO ............................................................................................ 44
AGORA ................................................................................................. 45
O SILÊNCIO DO TEMPO ..................................................................... 46
OS DESCAMINHOS DO TEMPO ......................................................... 47
UM VERSO MANSO ............................................................................. 48
PETRÔNIO E O MAR ........................................................................... 49
O SONO DAS CRIANÇAS .................................................................... 50
MARIA ! ................................................................................................. 51
GLÓRIAS PASSADAS .......................................................................... 52
O GOZO ................................................................................................ 53
MAZELAS ............................................................................................. 54
A TATUAGEM DA ESPERANÇA ......................................................... 55
ANCESTRALIDADE ............................................................................. 56
A ARQUEOLOGIA DO VERBO ........................................................... 57
MEUS OSSOS ..................................................................................... 58
A SEIVA DOS DIAS ............................................................................. 59
DEUSES ............................................................................................... 60
O PIVETE ............................................................................................. 61
AMOR DELIRANTE ............................................................................. 62
OS PASSOS ........................................................................................ 63
DESAFIO .............................................................................................. 64


O SENTIMENTO DAS HORAS ............................................................ 65
LINHA DO HORIZONTE ...................................................................... 66
O SUL DO CORPO .............................................................................. 67
O ESCONDERIJO DO ANJO .............................................................. 68
A FALA DO SILÊNCIO ......................................................................... 69
A CARNE DO GRITO ........................................................................... 70
A PALMA .............................................................................................. 71
A UTOPIA ............................................................................................ 72
GRITOS DE VÉSPERAS ..................................................................... 73
O SALÁRIO .......................................................................................... 74
OS ANOS ............................................................................................. 75
O POEMA ............................................................................................. 76
O PÃO .................................................................................................. 77
PACTO DE SOL ................................................................................... 78
DESPEDIDA ......................................................................................... 79


















A TRAMA
DO VERBO











Helenice Maria Reis Rocha








O NOME DE DEUS



O nome de Deus
baila em meus
lábios como ladainha em
dia de procissão
minha menstruação me
consome
sinal de algum filho temporão
quisera Deus
um filho purificado nas febres
e nas incertezas
artista
médico ou dentista
um filho
vadio ou trapezista
para desestabilizar as
convicções dos sábios.










BOA NOITE

Boa noite boa
meus cuidados
que já vou rapidamente
p’raquela estrela distante
que se vê da janela
nos veremos brevemente
meus cuidados
naquela estrela luzente
pouco antes do meu coração
pifar
quando esperávamos aquela
nave, olhando o céu.













MINHA MÃE


Minha mãe
você soa suave
em silêncio
e sangrando
canta
a gota de sangue
de todo poema.
















RITUAL


Pronuncio sempre a minha origem
esquecida entre as vírgulas do
percurso

Toco nesgas de caminhos turvos
esperando o batismo das horas
em ondas curtas
O tempo cavalga as frestas dos minutos
navega a estrada das
esperas

Enquanto isso
tomo a palavra
perfilo o verbo
entre os descontentes
sacerdotes do aço.







A VIAGEM DA PALAVRA


Risca a página feito bala
a palavra
Rasga a fala feito faca
a palavra
No entanto em si não vale nada
Nada mais do que risco
Tensão entre grito e vala
perda e sorte falada
Engenharia de silêncio
Descuido da voz
Quando não cala.










ESPERANÇA


Clara, clara, clara
água, água, água
vaza, vaza, vaza
mágoa, mágoa, mágoa

Belo, belo, belo
fero, fero, fero
tempo, tempo, tempo
vento, vento, vento.









TEMPO


Escorrendo feito água
o tempo aqui veleja entre
os dedos
como navegante frio
acertando quando erra
o destino de chegada
Mas o tempo não chega
nunca
E a vida permanece parada
suspensa no trapézio
de uma idéia que não é nada.








VOZ

Dedos de voz
rasgam o compasso da fala
Pára a voragem do som
no meio das palavras
quando as tiras das
palavras defloram sentidos
tensos
Sentidos lentos escorrem pelos
vãos da fala
A frugalidade dos favores
se faz bala
a intensidade dos fragores
se faz vala
Tudo o mais é risco
Todo o verbo é nada.









NOITE

A Lua, a mãe da noite
abre as pernas brancas para
o Sol parindo a tarde
furando o grito da graúna
abrindo o silêncio da sorte
Formiguinha grita
Quem, quem, quem, quem
A rua abre o ventre para o Sol.












A FESTA DO SOL


O Sol salgou o mar
multidão de peixes saudou
virou procissão de sal e água
Boto gritou: Vem cá, vem cá
Tupinambá responde:
Não vou, não vou
O Sol caiu em pingos sobre
o mar.











NOITEANDO


A luz do céu apagou
noiteou
Curumã saiu de dentro
da escuridão.













DANÇA LELÊ


Jaboti saiu da toca
dança Lelê
Não tem água p’rá bebê
dança Lelê
A onça encantou o rio
dança Lelê
Quer comer Jaboti
dança Lelê.









MEU AMADO

Com um arco-íris atravessando
as palavras
balanço os cílios
meu amado vem
voando entre carmins de lábios
sobre o meu corpo
vem
gemendo entre cetins, entre com
passos
vem
meu amado é manso
e calado
é Derrida e cerrado
poesia e gerais
meu amado é professor e menino
profanador
profissional
menino
não sabe o que faz.








E ESSE AMOR ...


Versos de um amor muito
bailam soltos no limbo das palavras
Versos de um amor limpo
chegam mansos sobre o olor
das páginas
As águas desse amor tão simples
invadem retinas e falas
As mágoas desse amor singelo
embalam o coração das feras.











CLÁUDIO TANNUS


Areais voam em
constelações de grãos
chovendo sobre o tempo
soterrando o que foi um dia,
vida
Faço trilhas no lençol e canto
reconto pegadas
Te encontro
no futuro
beijando vísceras.










ENTÃO ...


Solarte
Manhã reluzente paz
amarelinhando o dia lindo
nascente noutro lado da rua
eu nua
flácida e crua
destoando este bom gosto
estarte.












CIDADE


Estrelas nuas chovem febris
sobre os passeios
rios de risos correm febris nas
avenidas
antigas baladas se fazem ouvir
em bairros distantes
a noite, a cidade,
os mendigos, o açoite.









VENHA


Veias de mel soltam sua
íris louca
Os seus olhos doces
me engolindo toda
contra isso nada podem os lucros,
os grandes negócios
os acordos turvos
Os seus pelos roçam minha pele
fraca
minha carne lassa
meus sentidos roucos
beijo o ar à tua espera
Tua vinda é um vôo de avião
em dia de sol.






CANTIGA DE UM GUERRILHEIRO


Amei feliz um dia
as estradas dos gozos temporãos
As Américas cortaram minha carne
espalhando os pedaços por todos os
porões.
Minhas vísceras gritam fecundando
a terra, abundando o campo
de flores que virá
Amei ao relento, nas trincheiras
nuas, escondido dos canhões.
Beijo os pássaros que caem
e os animais que lambem
o túnel aberto em meu coração.











AIUOEEÊ

Curupira saiu do mato
gritou
aiuoeeê
Roubou comida de onça
voltou p’ro mato outra vez.












MEU VENTRE


Olhos de fogo engolem o sangue
de meu ventre aberto
banhando as oscilações dos
pregões da bolsa
entre especulações e gemidos
caminho alerta
fugindo ao veneno dos negócios certos
Mundo-serpentário de homens
máquina
explícitos vampiros da
nudez da humanidade.







O OUTRO

Através de uma fenda
desvendo planetários
fabulação de mundos vários
recordando um atávico exílio
de outros nós
Vejo entre frestas
ruas e pessoas
sorvendo febris carbonos
carboidratos
entre serpentários de homens-aço
Haveremos de dar a mão
a algum ser errante
vindo de uma outra estrela
um outro que de tão outro se
faça muitos
e de tão muitos
se faça nós.







PROVA DOS NOVE

Quero o amigo distante
o que não foi e
o que não virá
Quero o cumprimento do amante
o que não tive e o que não terei
Quero dançar um instante
nos braços de um anjo sedentário
Quero o tempo de um viajante
como sentinela
da alegria que chegará.












AS FACES DO VENTO


Cães de vento mordem as faces do ar
Mãos de sonho fabulam desenhos
de giz
As faces do ar são gravadas a giz.











HOSPITAL


Pétalas de pedra choram
sobre paredes brancas
Lanças de carmim perfuram
corpos parados
O hospital
O quarto
A dor floresce meus sentidos
Sinto, sem maquinação
O Aço do carmim me faz
pra sempre
P’rá todo sempre
Tudo que sente renasce, talvez.












ANTROPOFAGIA


Eram três caravelazinhas
Santa Maria
Pinta e Nina
E a carne branca de Portugal.













OS SINOS


A voz dos sinos me constrange
não vejo graça nem tino
a não ser aqueles que balançam
gangorrados por meninos
a fala dos sinos me desatina
quando eles insistem em anunciar
os mortos ou os feriados
Santos dias de fornicação.











BREVE POEMA


Não vou fazer um poema longo
que seja breve como as más-respostas
e tenso
Nem tão pouco quero um poema belo
que seja triste como as mulheres pobres
e fero
mas há de ter a violência de crianças
nuas.
Há de ter o olor das lágrimas nas ruas.










A FESTA

anéis de voz viajam o espaço
a sala cheia
as veias da vida escorrem
a janela aberta
Um olhar de água batiza
minha displicência
A mulher do lado
Um beijo de aço comprime o
meu sorriso escasso
Meu namorado.
A festa uma seiva de
reverências.










DEVORAÇÃO


Um mar seco percorre o nordeste
escorrendo um agrilhão de agruras
vastidão de secura parada
corroendo os homens nas estradas
Um menino seco espeta para o céu
num Libelo áspero
corroendo ternos e gravatas.









LÁGRIMA


A equação da lágrima
me confunde
viajando solitária sobre o meu
rosto
Ninguém viu, ninguém vê
esta trilha em linha reta
descendo humilde
para a minha boca
salgando os meus lábios
secos.








VOLTA


Sorvo a noite como um sonho vivo
perpassando meus sentidos
penetrando lenta o cárcere do
meu corpo
Vôo e volto
o mesmo ponto antigo
as horas bailando os meus passos
abraçando os meus risos
Hei de ir como quem despede
para voltar mais leve
sem aviso.








OLOR DO TEMPO


A cada dia o seu cuidado
A cada dia uma palavra
em ritmo de sarabanda
em ritmo de Tarantela
esculpida em renda fina
como enxoval de donzela
Um dia eu fujo e deixo as palavras
p’ra trás
Com seus vícios e traições
com suas estranhas mazelas.









VIDA


Terei dias de realeza
em tempos de devoração
a geografia dos anos
ao alcance da minha mão
Serei confidente do vento
do meu fado, Tecelã
Sinto as veias do meu corpo
como quem canta um hino
Vida, vem, fica comigo
Serei cúmplice, serei sizo
Serei sua mais fiel equação.








ANTÔNIO


Quero a coragem do erro
A hora incerta
que antecede o dia
Quero a voragem do cio
o esquecimento de todos os avisos
do escasso Juízo a medula
quero também a profecia sua
amigo, amante ou confidente
que em uma tarde cristal
me sentencia.








DANÇA


O dançarino das vagas me
chama
é tarde, não vou
Entre espelhos de ondas
me perco
não sinto os dedos
da água
me calo
O dançarino das vagas proclama
é noite, não vou
entre nuvens de ondas, me
abalo
não sei
entre corcovos de água, declaro
não sou.




HOJE



Hoje não serei gorda
receberei cumprimentos
pela minha fidalguia
ganharei flores na esquina
Terei um amante
pontual
Hoje não serei antiga
Terei passos de gazela
e espasmos de perdida
Hoje não serei feia
compreenderei os mistérios
gozosos e os meus deveres de
filha
Hoje não serei fria
Darei o calor do meu corpo
Ao vendedor da esquina
E como a princesa que baila
bailarei altiva e lassa
entre olhares espantados
e a desaprovação das tias.



ANUNCIAÇÃO


Será enganosa a exaltação do dia?
Que venha a manhã solar
com uma euforia vespertina
com pássaros varando as esperas
e gente riscando avenidas
que venha a manhã, exata
com todas as anunciações
atravessando todas as
distâncias
que existem entre os
corações
Que venham todas as manhãs
com respingos de sono e risos
com pão e café na mesa
Apesar de todos os avisos
Apesar do meu passo incerto.








CHEGANÇA


O tempo chega em passos densos
como tristeza de filha
entrando na pele
Mais parece apito de trem ou
praga de velha
coisas tão comuns e vesperais
Chega tão naturalmente
que parece alguém da família
e nos leva.











CHANCE


A fina equação do verbo
conduz antigas Litanias
que o tempo das palavras seduz
Diante dos altares me curvo
última testemunha de rezares
únicos
Espero em Deus a chance da
Alegria
na vez e hora das epifanias.









HOLOCAUSTO


A prata envelhecida dos castelos
sumiu
O que resta são as vísceras dos
reis
Nas margens avulsas os sinos
dançam
o balé sem imagem de
antigos sons
A arca das imagens sacras foi
violada
Abutres andam nos quintais
onde as princesinhas cantam
dias reais.







BRUXEDO


Suam pétalas viris
nos embornais
São as flores que carrego
no meu peito murcho
desidratadas pelo sangue
das virgens
em dia de defloração
Como as bruxas me vicio em
doces aberrações
Perdida no cio
faço os meus convites, exorto as
minhas evocações
Da Terra sobe o olor que
me dá poder.








VENTO


Feito agulhas varando o ar
o vento fere várzeas
levando as águas
abrindo lamentos
sob a tarde clara
Feito fúrias levantando o tempo
o vento pede, afronta e recua
arrastando o medo
declarando luta.










ECO


Sinto o eco do vento
dentro, dentro, dentro
Sinto o aço do centro
lento, lento, lento
Solto o ar do lamento
penso, penso, penso
Bailo o gesto do canto
denso, denso, denso.











FERNANDA


Linha de voz
Lâmina ardente em tempo
de manhã
canta a melodia das esperas
Todas as velhas artesanias da
fala se reúnem em assembléia
Fernanda Montenegro
recita Fedra
e isto basta.









A EXATIDÃO DAS ESPERAS


Pão sem bruma
sobre a mesa baça
no teorema da manhã
de ontem
Mão sem lume
sobre a pele fraca
acendendo fontes
do amor que ficou
Vão sem rumo
em nesga de estrada
escondendo espasmos
inventando falas.








FALAS


Falas são rios serpenteando
estradas
como túneis sem fundo
rasgando a terra
na voz das velhas
e das ciganas
Em cada esquina uma vela
em cada vão de rocha um
despacho
O riso do pajé, a sentença
Um choro de criança
uma saudade.






SILÊNCIO

Um silêncio seco
na excelência da noite
se desvela
como sentença nua
ou grito sem voz
Algozes mudos se revezam
fechando a porta da manhã
torturando feras
que me habitam o peito aberto
Um grito bêbado corta a noite.
O ônibus passa
habitantes de uma odisséia vencida
homens e mulheres
riscam
avenidas mortas
em horas inertes
nos desvãos da cidade.








AS PALAVRAS


Um fio de nada
me mobiliza
aragem de pássaros no cio
Um brilho na vala me seduz
a dança dos abismos me arrasa
sonho amavios
recolho falas
estiletes e feridas de percurso
na minha bela viagem
de alvíssaras
na antiga voragem
das palavras.









MADRUGAGEM


Sinto o relume
da manhã e me embriago
fabulando filetes de sol e ar
mas a noite me abraça
e absorta
me entrego
pacto fatal
de murmúrio e sombra
amanhã será a espera
hoje a noite me espreita
como um tigre na janela.








SAUDADE


Tua ausência é um feixe sem lenha
filete de um fogo frio
que nunca vem
Uma distância longa nos percorre
escorrendo como seiva em
nossos umbrais
Sedentos somos de palavras mornas
aquecendo lentas os
nossos portais
esquecidos vamos buscar
retalhos de nossos passos
em algum fio de vento.








TRISTES SEREIAS


As dunas ondeiam os caminhos
mansos
nas praias
onde chegam os cansados cantos
das sereias mortas das cidades
Navegavam lixos e refugos
meias de rendas entre a
sífilis e a noite.
Sexo seguro? Acoite
Amor tranqüilo, quimera
Grandes negócios, amores turvos
no carrossel das águas
Carne e risco
da AIDS, lembrança e soluço
Antes, só a saudade.










AS PALAVRAS


O mármore das palavras
está no silêncio
no entre
nos caminhos de través
quando tudo cala
por já ter dito
por já ser nada.









POYESIS

O anel da nossa aliança virou
sal
sobrevivemos ao olhar
da medusa
nosso sangue fecundou sentenças
O Testemunho da nossa confiança
varou ânsias
Hoje, somos fraca lembrança
Olho p’ra trás e ouço a
minha mãe cantando.
síntese do nosso gemido
sentença de esfinge
Seremos muitos, amanhã
Nós, poetas
Sagração de murmúrios que
cantam
o solo árido das palavras.





TARDE

Grãos de silêncio
caem sobre o fim da tarde
arde um viver difuso sobre os
meus olhos cansados
vida vazada em prestações de
vinagre e mel
Filetes de grito
cortam o silêncio da tarde
ardem ferindo a surdez
dos passantes
São crianças que brincam
na praça
sob a ferocidade das massas
e as botas dos soldados.








POESIA


Poesia é um balanço de corpo
Um trem riscando o vento
peixe-boi que fala
riso, lamento
poesia é um momento de gozo
embarcação em movimento
uma gangorra no ar
o aconchego de dentro
arquejo de mulher amando
poesia é comida na mesa
povo dividindo o pão
coração leve, alento.









PAIXÃO INÚTIL


Um mendigo desabotoa a minha dor
Amo este estrangeiro que pede
país selvagem do meu esquecimento
de mim
andarilho indomável das
minhas mais secretas andanças
Amo este estranho, ora aqui,
ora ali, flaneur sem máscaras
das nossas esquinas
e não posso nada.










AVENIDAS


Serpentinas de luz
os faróis e os neons
riscam as avenidas
equação de noite e Lua
Velocidade e risco
vertigem e chão
Tomara o coração das avenidas
fosse calma nua
sem pressa vã
ou carne crua e ignição.








MEU PAI


Uma saudade do que não virá
enche um instante
barca de vento navegando as águas
da tarde
Um cachorro late
Todos os meus medos se esvaem
Conspirando murmúrios e lamentos
uma sentida nota musical pisa
os desvão da memória
Leve, suavemente
meu pai tosse,
a garganta de todos os artistas,
tuberculose
o tempo volta
ele toca
como os anjos cantam.













DESCANÇO


grito dentro
riso lento
cata vento
rima tempo.














SENTIDOS


Sinto o vento
e o seu longo lamento
vento, vento, vento
eco, eco, eco
Sua voz antiga soa,
soa, soa, soa
dentro, dentro, dentro.











SAUDADE

papai,
barroco
frágil e terrível
Toda a doçura num segundo
do seu berro, do seu não
eu mamo
pátria da música
em um sopro
Som, sussurro e sangue
sopro de vida
meu sofrido vislumbre.







SEREIA


Branca Luna
Barca nua
navegando o céu
em noite escura

Mansa bruma
onda, espuma
dançando leve
sobre areia crua

Sereia clara
cantando, rara
sobre o mar
Brisa breve
bailando célebre
sobre o céu.










NÓS

Uma linha em branco atravessa
a garganta do mundo
ferindo o fundo de antigas epifanias
É a memória muda de incontáveis
histórias sangrando lentas sobre
uma ausência
Somos o resto de uma trama
a sobra de um passado, caminhando
sobre nostalgias e saudades sem
remédio
Somos o resto do tempo.










VOZ

A carne da voz é o outro lado
da palavra
o avesso da memória
a deiscência das coisas nuas
objeto da vivência crua
que norteia as realidades pagãs
A floração da fala
fecunda a carne da palavra
matiz de sons vários
A humana concreção do som
a magia do dizível instala.








AMANHÃ

Anel de aço
o barulho do mundo
envolve os meus sentidos
lassos
laço de ferro a me enlouquecer
Não sei das guerras
das fomes e das falas
Sei do meu gesto dúbio
de alguma caridade pouca
do meu afago
da minha ânsia louca
de um amor avaro
a me atormentar
Sonho um mundo outro
onde as crianças vivam
e os homens bons possam
algum sonho raro.






ÁRVORES


Folhas de anil
voam sobre a Terra mansa
A paisagem toda na minha
retina arde
O que era esperável se desfigura
Um carnaval de astros dançam nos
céus
A linha do horizonte se perfilha,
dura
A agonia das espécies é um vendaval
A terra canta um brilho santo de
estrelas
Mãos duras sangram árvores
no final.








MINHA MÃE


Cavalinho azul do
meu sonho de criança
Carrega a meiga voz da
minha mãe
meu consolo de infância
Cavalgando o vento
me traz aquele alento
de canto de sereia
de tempo de quebranto.










PROGRESSO


A árvore respira folículos de serpente
gemente
estende os galhos áridos aos céus
A fábrica solta gases
A vida chora
implora uma segunda vez
As vísceras de um viver de todo
antigo se presentificam
Os pássaros de antes cantavam
Hoje cantam gases, de um tempo
de todo assinalado
tatuado de progresso.









MARIA

Sou uma Maria qualquer
barro
humus
pó de terra
Danço de chinelinha nos pés
Tenho dente de ouro
e olhos de vento
Sei da curva das estradas
da poeira de sol
do tempo.








ÁFRICA


Cavaleiros do mar
navegando águas de tempo-noite
retirando das águas o lamento
do açoite
antigos africanos voltam
dos porões dos navios
Cavaleiros do ar
navegando tempos de mar-noite
gingando volteios de sangue
e soluço
antigos africanos choram
Cavaleiros do vento
correndo, voando, nos
matos adentro
antigos quilombolas
gemem.





DESEJO

Asas de carmim
lambem minha pele rouca
varrem minha vida pouca
de um amor sempre adiado

Boca de alecrim
beija a minha pele lassa
cicia segredos lascivos
e passa

O meu desejo, pássaros sem
canto sobre os meus pelos
dança, avança, recua e se abraça
sobre o meu corpo.













SOUL


Queria ser como Betti Boop
Dançar sob um céu de desenho
animado
Cantar um blue
Sorrir de lado
numa tarde de Domingo
sem sol.











TESSITURA


O silêncio tece
as ânsias desnudas
na concha da noite
Entre a chuva e o estio
o cio e a voragem
permanece entre frestas
de sol ou frio
penetra as janelas das memórias
mudas
fruta-tear em viração
madura.










O VERBO


O matiz da pedra
modela a palavra exata
O verbo – Lua
O verbo – água
O verbo – vento
O verbo – mágoa
O verbo anímico da palavra – fala.












SENTIMENTO DO TEMPO


Batom em sorriso murcho
o tempo das esperas passou
e aquela alegria pagã bate continência
em estradas nuas
murchas de um carnaval
sem fantasia
Vou morrer, como vivi, sem nada
além dessa crônica louca
de amores vadios.










SENTIMENTO


Como cabelos em um pássaro raro
um amor tardio sempre traz amavio
Como ritmo em um passo lento
um amor temporão sempre
traz novidade
A idade do sentimento é a face azul
da espera
que do tão azul se faz quimera
como as palavras de um poema
sem cor.











O TAL

Amor de chocolate
adoçando donzelas
ele passa, cheio de graça
pelas telas da tevê.
Ele é o tal
Cristal filtrando versos e diversos
areia fina escorrendo entre
as mãos.
Ele passa, cheio de graça
e não é mais que um tempo.









RISCO


A civilização balança numa
gangorra
ora lenta, ora lassa
e quase voa pelos ares
o tempo todo
Antigas vozes ecoam reivindicando
presença em janelas baças
em murmúrios roucos
Antigas ausências ressoam
em tempos crassos
em compassos loucos.









O ÍNDIO

Pincel de estrelas
colorindo pedras
um irmão da terra
tinge o pó transverso
com tintas de guerra,
com tintas de entranhas
com tintas de paz
e de danças velhas
Pincel de estrelas
colorindo estradas
um índio nu
mistérios engendra.









O VÔO


Um vôo sem asas
rasga o ar mudo
riscando um sentimento manso
de ausência de palavras
Sob silêncio
me resguardo
quando vozes loucas temam
em vociferar o banal
Vôo sem armas
de pássaros sem voz.








A SERPENTE

Através de um vidro piscante
o olhar da serpente encanta
a rua
paralisando crianças nuas
e ninguém vê
O olhar da serpente é um
anúncio brilhante
vendendo homens em papel
crepom

Serpenteando sobre a cidade
arma o bote e a cilada
sobre quem passa e não vê

Parece um grande negócio
vendendo o país inteiro
Engole crianças nuas
seduz a quem quer que queira.





OS SENTIDOS DA ÁGUA


Línguas de água molham as bordas
do meu verbo manso
Nessa liquidez de fala descanso
sem mágoas ou remorsos absurdos
A vida escorre sem barreira
ou filtro
escoando esquiva entre armadilhas
vis
Os meus amigos sabem dessa fala
sem esquinas ou paradas
entre uma lágrima ou riso.









AS RUAS

As ruas são rios
serpenteando as cidades
As ruas são cobras
anunciando venenos
As ruas são fios
interligando sensações
as ruas são os cabelos dos mares
Quisera um sentimento do mundo
fora dele
A mundanidade toda no meu quarto
Meu coração, o coração do mundo,
As ruas, filetes de homens-ebulição.
Meu coração,
um coração no mundo.








BUSCA


Em busca de algum encanto
peregrino
as esquálidas veias do mundo
A vida em banho-maria
Um corte
cirúrgico
Trama tecida em
sal e fel
atualiza
um tempo sem nome.










OS MENINOS


Astronautas do asfalto
meninos naufragam
entre luzes de neon
atravessando mares borrascosos
de pernas e braços, bolsos e paletós
aterrizando em botinas armadas
de homens-marrons.
Navegam ares de estrelas de Hélio, zonzos, sob a fabulação
das riquezas e dos destinos, astronautas do crack e dos
homens de gravata,
reféns dos uniformes marrons.











ANJO TORTO


O rosto de um anjo torto
ninguém conserta
Nem todos os alertas
Nem todos os comandos
Nem todos os deuses nus no
mesmo pátio
O rosto de um anjo torto
Só as crianças enxergam.









PALMO DE TERRA


As cidades do ar sobre pairam
as moradias
representantes de tudo o que
já foi um dia
casarões, sobrados
casebres, velhas pedras
na tumba-concreto de
novas liturgias
A liturgia dos lucros e das
mais-valias
Mais valia o quintal barrento
de uma velha lavadeira ou
o casarão antigo da esquina
Tumbas-espigões brotam do
asfalto onde jaz o palmo
de Terra do nascituro.





PORTE DE FÉ


Deus meu, me perdoe as taras
e a virtude duvidosa
a péssima fachada
e a cara marcada
de barro e
corte, já não tenho
mais a alma de princesa
de outros dias
No entanto, amo o pai, o filho
e o espírito santo, com a
mesma confiança
rasgada, com a viceralidade das
perdidas e a elegância das
loucas.





NÃO SEI


Morna viração das ruas
paz
fim de tarde de Domingo
meus livros espalhados
sobre o chão
O momento entre um minuto
e um segundo é uma sentença
o tempo de um tiro
ou de um afago
Âmago das raízes e das coisas
cálice de aconchegos e incertezas
um passado sem rosto se presentifica
Que fui eu no teorema do que
serei?
bela ou fera, amante ou proscrita?
já não sou e não sei










AMOR


Nos dizeres do meu amado
as minhas faces transmutam
Nem ele me ama tanto assim
nem tanto eu camaleoa
Fera louca em áspero feroz mundo
de tantas faces a que mais
me entranha
é esse amor nem tanto
que tanta falta me faz
é esse amor que de um tanto
o mundo todo me traz.







PONTO DE VISTA


Vidas chovem sobre paralelepípedos
Paixões desenfreadas dançam bamboleando o
asfalto frio das avenidas
O arrasador dos corações fuma um Carlton
sob a luz dos cristais.
Tudo é banal como um sabonete barato.
Crianças semi-nuas roubam
roupas nos varais
morrem varadas por fugazes
metais
nas marquises, nos parques,
na capital, no mar, no ar
Tudo o que é sólido se
desmancha no ar
A fatalidade é vendida em
suaves prestações.










ESPERA


Acossada
em uma fenda do desejo
arquejo plumas de
felina
espero a hora
o dia, o salto do batom
o urro do prazer sonhado
ao prazer vivido
a dor do gozo pressentido
me estraçalha.










SALTO NO ESCURO


Uma loba no escuro
o meu amado assedio
com garras de veludo
marco seu corpo vadio
como fera sangrando
caminho pelas transversais
do cio
varando todas as paralelas
rasgando o meu amor arredio.












ELE

Meu amado
é um menino selvagem
e dissimulado
como os tigres em dia
de viragem
me assusta
me desanima
como os pássaros em
perda de plumagem.








SONS E FALAS


A cor da voz voa
no matiz oscilante dos
espetáculos
O político tonitroa
O cantor escoa e geme
A voz da cor
canta
no matiz oscilante dos quadros
e tão canto e tão timbre se faz
que voa
nas mão daquele artista pobre
O ser de uma penetra o de outra
uma vez que a cor é uma voz
que cala
e a voz é uma cor que soa.







O ATOR


Gentileza de tigre
arranhando as estranhas
do tempo
ofendendo fibras do espaço.
o mago das avenidas passa
travestido de palhaço
de anjo
ou simplesmente de homem
O ator
este ser p’ra sempre multiface
transmuta no asfalto
acompanhando a troupe
do teatro
Teatro das ruas
Teatro dos corações.










PAPEL

Estranho papel
resto de tudo e de todos
bolsa de objetos vários
recados p’ra empregada
endereço do bombeiro
bricolage de retalhos
restos de vida.
Cartas anônimas
bilhetes rápidos
Se eu fosse papel estaria
amassada em algum canto.











UM OUTRO TEMPO


Tatuagem de batom as
vezes dói
como forte presença em
dia distante
Antes era a grande ausência
antes do verbo, antes da origem
Hoje, depois do primeiro pecado
a gente vive
risos e taças
saudades virgens.








HORAS


A paz de um lençol voando
no varal
percorre a tarde
Arde no ar uma fogueirinha de
folhas secas
Antigos carrinhos de rolimã riscam o
passeio da rua da memória
papagaios no ar,
cerol,
Meu irmão brinca
antes era assim
O balanço das horas não tinha
nem endereço.







A TRANSIÇÃO DA VOZ


Voz muda
retumbando no silêncio
Música surda
soando no ar
Fala cega
assombrando tempo
de velhas confabulações
as asperezas de percursso
viajam riscando nossas filosofias
feito tesouras dilacerando sedas
ou bonecos varados de alfinetes
Magia negra de duvidoso resultado
balançando o cerne de
inúteis inocências.







CANSAÇO


Estou livre de amores vãos
Falsas ternuras
sentimentos inúteis ainda
me seduzem
aliás como tudo o que
não tem direção
Vou de déu em déu
pelas transversais do
destino
Tudo o que me acontece
é por acaso
sentença de uma
felicidade sem nome
cansaço das denominações.






MINHA AMADA


O tempo voa como folhas
de papel ao vento
dentro dos minutos e das
horas
não tenho pressa nem demora
nem a devoração das esperas
me paralisa
minha mãe ouve minha poesia
com a humildade das gueixas
sem queixa
sofre de dores severas na
espinha
e canta.







TEOREMA


O vinho não batiza a
noite
assim como o nome não
mostra a face do dono
A voz não anuncia a fonte
assim como a fala não
detém a bala
A espera não escondo a fera
assim como a faca não detém
o salto
A noite, espreita o açoite
assim como a manhã
anuncia o dia.






NO MAIS, PALAVRAS


palavras são árvores
ricocheteando o papel
confete multicolorido
chovendo sobre
mar de verbo
amar as palavras é despi-las dos galhos
desfolhando folha a folha
os seus desvãos
amar as palavras
é descolorir confetes
buscando passo a passo
os sentidos vãos

palavras são compassos densos
ressoando ambíguas
sobre o papel branco.







A VELHA ESPERA


Doendo como pétala falsa esse
amor insistente,
inclemente que nem carnegão
exposto
Eu queria as asperezas da raiz
a incerteza da liberdade
e amor, p’ra valer
Talvez, polindo um pouco as
velhas pratas
vejamos esse caminho poeirento
clarear as matas
dos nossos corações
cruentos.









O AÇOITE


A noite
o frio
a vala
o rio
o susto
o grito
a fala
o riso
a ponte
a fonte
a morte
a Lua.








O SERTÃO


O sertão é um balanço lento
ondulando numa tarde nua
crua equação de emergências
sentenciando decisões tardias
momento de silêncio na noite
quando a passarada dorme
O sertão é um fogo-fátuo
anunciando o gargalhar dos
mortos
vela acesa na estrada
emboscada
a vida por um fio.








CONHEÇO


Mãos de pérolas
acaricio meu corpo
Loba sem garras
jogada na noite
sei de todos os nãos
de toda ausência de carícias
Conheço a rejeição gentil
e a grotesca
Conheço meu corpo
como quem baila em esferas
Sou toda mãos
Sou toda esperas.









PLUMAS


As plumas da voz
são para as princesas
eu, prefiro cristais e pedras
modulando o meu berro
solerte
Na hora da viração desperto,
espreito felina, espero
o doce desfile dos tigres
que lamberão minha ferida
aberta.











BRILHO


Minha mãe,
minha poesia
minha solidão
minha vida vadia
valeu bem um porre,
ou alguma alegoria
ou talvez um êxtase do nada
a saudade de alguma ausência
venham trazer aquela voz distante
Teorema de um antes
brilhando num dia de sol.









TAMBATAJÁ


Violo o papel
com letra e tinta
carneiros de letras
cantam uma voz antiga
enfeitando uma palavra
ancestral
Os índios choram em fileiras
nas matas o amor do Tambatajá que fugiu
A noite dança na taba
o andar da índia ferida na lida,
Ondas de voz
invadem o bailado da noite cantando o amor do Tambatajá que fugiu



Í N D I C E


O NOME DE DEUS ..................................................................................... 1
BOA NOITE ................................................................................................. 2
MINHA MÃE ................................................................................................. 3
RITUAL ......................................................................................................... 4
A VIAGEM DA PALAVRA ............................................................................ 5
ESPERANÇA ............................................................................................... 6
TEMPO ........................................................................................................ 7
VOZ ............................................................................................................. 8
NOITE ........................................................................................................ 9
A FESTA DO SOL ..................................................................................... 10
NOITEANDO ............................................................................................. 11
DANÇA LELÊ ............................................................................................. 12
MEU AMADO ............................................................................................. 13
E ESSE AMOR ... ..................................................................................... 14
CLÁUDIO TANNUS ................................................................................... 15
ENTÃO ... .................................................................................................. 16
CIDADE ...................................................................................................... 17
VENHA ....................................................................................................... 18
CANTIGA DE UM GUERRILHEIRO .......................................................... 19
AIUOEEÊ ................................................................................................... 20
MEU VENTRE ........................................................................................... 21
O OUTRO .................................................................................................. 22
PROVA DOS NOVE .................................................................................. 23
AS FACES DO VENTO ............................................................................. 24
HOSPITAL ................................................................................................. 25
ANTROPOFAGIA ..................................................................................... 26
OS SINOS ................................................................................................. 27
BREVE POEMA ....................................................................................... 28
A FESTA .................................................................................................... 29
DEVORAÇÃO ............................................................................................ 30
LÁGRIMA ................................................................................................... 31
VOLTA ........................................................................................................ 32


OLOR DO TEMPO .................................................................................. 33
VIDA ........................................................................................................... 34
ANTÔNIO .................................................................................................. 35
DANÇA ...................................................................................................... 36
HOJE .......................................................................................................... 37
ANUNCIAÇÃO ............................................................................................ 38
CHEGANÇA ................................................................................................ 39
CHANCE ..................................................................................................... 40
HOLOCAUSTO ........................................................................................... 41
BRUXEDO .................................................................................................. 42
VENTO ....................................................................................................... 43
ECO ............................................................................................................ 44
FERNANDA ................................................................................................ 45
A EXATIDÃO DAS ESPERAS ................................................................... 46
FALAS ........................................................................................................ 47
SILÊNCIO ................................................................................................... 48
AS PALAVRAS ........................................................................................... 49
MADRUGAGEM ......................................................................................... 50
SAUDADE .................................................................................................. 51
TRISTES SEREIAS .................................................................................... 52
AS PALAVRAS ........................................................................................... 53
POYESIS .................................................................................................... 54
TARDE ....................................................................................................... 55
POESIA ....................................................................................................... 56
PAIXÃO INÚTIL ........................................................................................... 57
AVENIDAS .................................................................................................. 58
MEU PAI ...................................................................................................... 59
DESCANÇO ................................................................................................ 60
SENTIDOS .................................................................................................. 61
SAUDADE ................................................................................................... 62
SEREIA ....................................................................................................... 63
NÓS ............................................................................................................. 64
VOZ ............................................................................................................. 65
AMANHÃ ..................................................................................................... 66


ÁRVORES ................................................................................................... 67
MINHA MÃE ................................................................................................ 68
PROGRESSO ............................................................................................. 69
MARIA ......................................................................................................... 70
ÁFRICA ....................................................................................................... 71
DESEJO ...................................................................................................... 72
SOUL ........................................................................................................... 73
TESSITURA ................................................................................................ 74
O VERBO .................................................................................................... 75
SENTIMENTO DO TEMPO ......................................................................... 76
SENTIMENTO ............................................................................................. 77
O TAL .......................................................................................................... 78
RISCO .......................................................................................................... 79
O ÍNDIO ....................................................................................................... 80
O VÔO ......................................................................................................... 81
A SERPENTE .............................................................................................. 82
OS SENTIDOS DA ÁGUA ........................................................................... 83
AS RUAS ..................................................................................................... 84
BUSCA ......................................................................................................... 85
OS MENINOS .............................................................................................. 86
ANJO TORTO .............................................................................................. 87
PALMO DE TERRA ..................................................................................... 88
PORTE DE FÉ ............................................................................................. 89
NÃO SEI ....................................................................................................... 90
AMOR ........................................................................................................... 91
PONTO DE VISTA ........................................................................................ 92
ESPERA ....................................................................................................... 93
SALTO NO ESCURO ................................................................................... 94
ELE ............................................................................................................... 95
SONS E FALAS ............................................................................................ 96
O ATOR ........................................................................................................ 97
PAPEL .......................................................................................................... 98
UM OUTRO TEMPO .................................................................................... 99
HORAS ........................................................................................................ 100


A TRANSIÇÃO DA VOZ .............................................................................. 101
CANSAÇO ................................................................................................... 102
MINHA AMADA ........................................................................................... 103
TEOREMA ................................................................................................... 104
NO MAIS, PALAVRAS ................................................................................ 105
A VELHA ESPERA ..................................................................................... 106
O AÇOITE .................................................................................................. 107
O SERTÃO ................................................................................................. 108
CONHEÇO ................................................................................................. 109
PLUMAS ..................................................................................................... 110
BRILHO ...................................................................................................... 111
TAMBATAJÁ .............................................................................................. 112














UM TIGRE
NA SOMBRA









Helenice Maria Reis Rocha







VERBO AMAR


Proscrevo o verbo amar
Traçando respostas
sem endereço
Batizo todo os avessos
dando nome ao que não tem
clamando pelo que não
vem
Proclamo o verbo amar
desavisando o desdém
Desvairada entre desapreços
não sou ninguém
além de um afeto vago
além do meu claro amor de
ninguém.














CICATRIZ


Uma cicatriz na vala
faz florirem palavras
Uma fenda na fala faz
brotarem metáforas
A fala voa feito as
lendas nas bocas e baila
feito avisos na voz
A fala mancha o silêncio
das palavras.














MEUS DARDOS


Jogo meu olhar sobre
o horizonte como quem
lança pratos
refazendo minhas contas
na ponta do lápis
Mesmo em paz
deslizo meus dardos
sobre o ao longe
onde nem a saudade banca
praça
e vejo, cada vez mais claro
o dia
como quem conta barcos.












A TRAVESSIA DO GRITO



A travessia de um grito
inaugura lembranças
e dança como capim
fino dentro do
calor da tarde
fincando filetes de voz
e medo ao redor das
entranhas da tarde

Um grito na tarde
faz parar a viagem
da voz sobre o tempo.










A ABUNDÂNCIA DOS COLOSSOS



Sorriso mudo como
um prato vazio
mendigo a abundância
dos colossos
Vejo a placidez como
quem batiza a fria viração
interesseira das razões
Saúdo o tempo
Beijo esse velho amigo como
quem revira vísceras
e penso.














ALENTO


O papel branco me seduz
inventando murmúrios de
pensamento
falando absurdos que só
sua placidez branca de
papel engendra
Sou passageira do papel
branco
timbrando falas
inventando alento.















SEIOS DE TERRA


A tinta azul da caneta
não escreve os caminhos
do mar
Tão longe o mar
Lá no distante dos olhos
Minas é um caminho sem
mar escrito nas montanhas
Minas é um mar de
seios de terra.

















O AR


Gravo no ar a giz a
palavra exata
cravando nas arestas
da paisagem minha
assinatura incerta
Só os loucos têm a baliza
fatídica da espera
Muito poucos sabem ao
sabor do alento
beijando as faces
das feras.













SENTIDOS


As palavras respiram
arfando sentidos
Os sentidos sangram
nomeando a inessencial
mutabilidade do verbo
a necessária lapidação
do verso
Um verso é como um cristal
plagiando os alaridos da fala
O verso é um plágio que
cala.














A NOITE


A noite entrando nas grades
da minha janela
entra jorrando com um
silêncio sagrado
sacolão de estrelas mudas
boiando no céu
Reverencio a noite como
quem borda um enxoval de noiva
tecendo pedaços de vida
futura
beijando a menina que se
fará mulher.









GEMIDO


Gemendo um sorriso avaro
danço em teclas de falas
declarando sulcos de vento
em pedaços de palavras
Meu sorriso antes claro
se resume nesses pedaços
que contam os caminhos das
ladeiras
e os becos das valas
Gemo e falo
com avareza ou em luz clara
a litania das rezas nas casas
o assobio das ruas
e a manhã clara
Mesmo gemendo
batizo a manhã
com as arestas da palavra.










DEGLUTIÇÃO


Engoli a noite em
um susto e fiquei
grávida de lua
Pari três ruas
lunares, metálicas
Em uma ancoro meu grito
em outra meu sono
na terceira rua meu canto.













O PENSAMENTO DO FIM


Encontrei uma felicidade anciã
nas despedidas
O teorema de quem vai nos
exponsais da morte se consome
inteiro nas falas e nas rezas
É bom ir como é bom ficar
É bom morrer como é bom viver
A anatomia da graça reside
nessa ciência
Morrer a cada instante retocando
a vida
Viver a cada instante retocando
a morte.









O JUÍZO


Como um tigre de seda
meu brio deságua
numa mansidão feroz
Com minhas garras de
seda arranho a cegueira
da justiça
Clamo dos dias a ausência
de gozo que vivi
e batizo as cinzas do
meu fogo antigo
Sou o reverso do Juízo
ardendo agora em
pira fria.











O MEU MANSO AMOR


Eu quero o meu amor
fiel como um encanto
Leve como um aceno
Ameno e permanente
Eu quero o meu amor brando
como um murmúrio
mudo como o mistério
manso
e de tudo me faça amante
o lento trilho do tempo
e de amor mesmo seja
a minha vida e morte.










A RAPIDEZ DOS SUSTOS


Com a rapidez dos sustos
desvendo um retrato frio
debaixo das rendas
Revelação rude da
presença de uma ausência
Meu pai morto sorri mais
vivo que nunca
e afinal me aprova
sua benção imortal
O gelo do passado esconde um
sorriso denso
marcando em cicatriz de imagem
recente presença.











A BENÇÃO DOS MORTOS


A benção dos mortos
configura os meus dias
Meu pai, minha tia,
minhas fortes avós
visível presença do
que foi um tempo bom
Tenho mãe, tenho irmãos
e a voragem dos minutos,
dos segundos me estendendo
a mão
A voz do tempo predirá
o molde da minha maldição
ou bem aventurança.













UM DESEJO DE PANO


Um desejo de pano trafega
minhas trincheiras
Forte como algodão e tenro
feito renda de bilro
invade minhas secretas
salas da imaginação
e cobre minhas mazelas
Tão belas as artes do desejo
Lambendo bêbado as
inseguranças do meu amado.
















PLÁCIDO ALENTO


Plácido alento
varrendo voltas de segredos
tecendo enredos
molhando medos
Vejo no cristal dos olhos alheios
miragens e espelhos
Vozes nuas
e cruas carícias
de amantes
beijando a noite.













A BRANCURA DO VERBO


A brancura de um verbo
manso me corta as
entranhas dissecando
minha estranha vocação
de grito
Urro a disciplina dessa
mansidão
Feito leoa aprisionada
desdigo essa benção
amaldiçoando meu chão
urrando meus ritos.












O PAPEL


O papel corta as
minhas frágeis expectativas
de um verso exato
Prefiro o lado obscuro das falas
Prefiguro a sua voz calada
na incerteza dos meus
nãos
Bendigo a tua mão na minha
pele me calando toda
Loba em rendição.













DOR


Eu me calei sobre o seu grito
e hoje colho o seu silêncio
Eu escondi o seu cadáver
e hoje me escondo
das suas entranhas
Eu não falei sobre o
seu medo
e hoje percorro suas estradas
Perdoa, amado, amigo,
confidente
a minha ira tardia.













DENTRO DOS MEUS OLHOS


Vejo dentro dos meus olhos
plataformas
passam nelas mulheres e
homens nus
de uma nudez generosa
cheia de tramas
O drama da nudez desfila
inteiro
crestado de ventos
batizado de esperas.












AINDA A DOR


A dor engendra cismas
de tremor e sombra
quando balbucio meu amor
A espinha da minha mãe
baliza minha existência
Nós de dor
insisto em amar o alarido
dos pardais
e sonho.

















BATISMO


Batizo meu passo de
chão
Minhas horas são certas
Predigo o rumo das estradas
em quem semeia e volta
sobre a semeadura
Tão alvissareiras as semeaduras
Bem aventurados os estrategistas
do grão.

















A NOITE DA CANDELÁRIA


Punhais ferindo várzeas
os gritos nus das crianças
nas praças rasgam
o ventre da tarde
dilaceram a luz do sol
A Candelária jaz para
sempre
Rio de Janeiro, das ruas e das
valas
saúda o riso dos garotos
Os que vão nascer
te batizam.











OS MEUS SENTIDOS TRAÍDOS


Os meus sentidos traídos
me declaram inerme
Enfim a baliza do dia
solene incógnita de silêncio
e Sol
Hoje o dia singrou solteiro
sem o casamento dos parentes
que aparecem para o café
Prá sempre a ausência da tia
a suave presença da mãe
e o sol manso.









UMA PANTERA


Uma pantera voa fora da
minha janela rasgando o
céu
Ela rasga o azul e arranha
as estrelas
Quem vê panteras constrói
quimeras entre estrelas e
azuis
Quem gosta delas e
ama as feras não morre
antes do beijo delas.













O DIA


O dia passou, passou
p’rá sempre
Hão de passar as manhãs,
Hão de passar as tardes
e as noites.
Minha carne lassa lamenta
essa passagem e lança
um enigma:
Quem batiza as tardes
e o tempo?











A PRECE INAUGURAL



A prece inaugural é aquela
que bendiz as lembranças
Mendigo a permanência
do que não vive colado
à minha retina
Bendigo a ausência do
que sofri na minha mágoa
Veja, você, o dia
segue mudo o seu ritmo
sem perguntar se
morri ou vivi hoje
Pertenço ao dia como
quem prediz as horas
e hoje, por exemplo
sorrio.











OS SACRAMENTOS


De todos os sacramentos
o que mais me fascina é
o batismo
Dar nome é dar existência
desdizer a dor de não se saber
a quem chamar
De todos os sacramentos é o
mais fino
Mesmo assim não identifica o
ser a que se destina.













DESAMARRO PALAVRAS


Desamarro palavras
batizando sentidos
e proclamo:
amanhã serei livre
Hoje falsos amores torturam
minhas esperanças
ofendendo meu riso manso
Alcanço o fim das ruas
destoando nua dessas
ânsias vãs
desses amores bobos.













DAS ALVÍSSARAS AO DESTERRO


Das alvíssaras ao desterro
navego o verbo dos absurdos
e mereço uma comenda.
Ninguém me disse dos
apreços ou me fez a
carícia sonhada
Ainda assim não lanço
dardos e sim beijos
à minha passagem
e me deleito
A rua canta.














A VIAGEM DOS MANSOS


A viagem dos mansos
inaugura travessias brancas
tremulando paz nos
flancos do tempo.
Vento, vento, vento, traz
de volta o claro alento
da palavra franca
das sentenças nuas e batiza
a terra com o riso claro
das crianças.












VELHOS GEMIDOS


A poesia aguça meus velhos
gemidos
Busco o amigo, encontro o
ar silencioso das esquinas.
O vinho antigo não fecunda
minhas vísceras adormecidas
de silêncio
Minha irmã, às vezes fala
comigo
as vezes, não
Meu irmão mora do lado
calado
como quem dorme e não sonha.














ALEGRIAS PROVINCIANAS


Tenho alegrias provincianas
e hasteio gritos nos
antigos porões do entendimento
Tenho o desvelo das tias
em festa de quinze anos
Amo a mansidão das
montanhas
e sou só.
Apenas isto.













AS CASAS DA RUA


O vento destelhou as
casas da rua
Pássaros fizeram ninho
nelas
Minhas saias boiaram de
ar preso e ninguém
clamou ou jogou pragas
A graça permanece virgem
nos bancos das praças
e as ruas
intocadas.














NO FUNDO DO BRANCO


No fundo do branco mora
um habitante que hesita
em aparecer na borda
Desenhando o grito dos
mansos convido o estranho
habitante p’rá dançar.
Ele responde: não posso,
sou branco, sou branco, sou branco.
E morre sem gritar.














MINHA CARNE


Minha carne em túnel
aberta se oferta em
festa e flor
Mesmo assim tão deiscente
descreio da forte presença
do seu amor
Descreio porque sei da sua pressa
e conheço essa demora
que te faz perder a viagem.















VELHAS IMAGENS


Velhas imagens banem minhas
ternuras
Não sou séria nem
clara porque amo os
abismos e as valas
nem sou terna
Quero das medulas a fala
que alimenta o verbo
do verbo, a palavra.














RUDES ROCHAS


Rudes rochas perpassadas
de fósseis
o exílio das espécies lhes
contempla
Pobre humanidade, massa de
carne em movimento
alimento de rochas
e pó.















O AZUL DAS TARDES


O azul das tardes
me paralisa
desliza em minhas certezas
e me liberta
Todos os azuis ofertam cismas
batizam a nudez das coisas
definem
Os azuis não têm fim
O fim não tem azuis.











O DESTINO DA CARÍCIA


O destino das coisas táteis
é a carícia
A mão e o afago atravessam a
superfície morna
da distância
penugem de vidro que não
se quebra
tensão transparente de
calma e tato
Entre cordões de abismos
atravesso o caprichoso
caminho do amor
e cismo.












TEMPO ROUCO


Trafego as quinas de um
tempo rouco alisando
arestas e balbuciando
litígios
Assim me desavim
balbuciando meus gritos
incógnita
Não penso e não existo
para desafiar o cógito
desafinando
insisto.












A TARDE E AS ENTRANHAS


A tarde corta minhas entranhas
Estranho barulhos familiares:
o choro da criança ao lado
o ronco da minha mãe, a tosse
Queria estranhar o verbo
com algo sempre insólito
e novo batizando as vísceras
da palavra
Antes me calo no antes
do ser dito
maldizendo as bem aventuranças que
selecionam os benditos.










O CAMINHO DAS HORAS


Desafio o caminho das
horas
Ouço a litania nordestina
da empregada que
fala sem pausa
e bate no filho
Lamento
brasileirinho sofredor.
Amaldiçôo os maus bofes
dela
e sigo
Essa eterna ausência de
um destino.











SORRISO


Sorrio extraditando o
limbo do passado
ali onde a memória é
mudez e o tempo
canta o exílio
As horas apunhalam meus
risos e vejo: não sou
a simetria dos acontecimentos
e nem a exatidão
Minhas mãos já tremem.












O NÃO

A aridez limpa do
não banha a inocência
das urgências
Tudo é placidez de negação,
esperança adiada e
silêncio
Não sei quando vai passar
a caravana da incerteza
ou se já passou
Sei que os nãos
batizam essa paz que
me acalma
Nada tenho
Nada espero
Nada me aflige.














A NATUREZA


Divido a natureza em
várias partes
Tem a parte que canta
e a que grita
Uma delas dorme
a outra se agita
O silêncio da noite adormece
todas elas.















OS DIAS DA DOR


Sobrevivi aos avaros
dias da dor
e sobrepairei à doméstica
vocação para a quietude
A calma bovina de certas
mães me atribula
Nada disso o tempo escuta
e passa.

















UM HOMEM


Lambendo os lábios
feito um boi o homem
agradece o farnel escasso
Antes quero a guerra
a luta
o grito
a justa sentença da fome
mas a tarde me entranha
os sentidos e
acalma esse gemido
de leoa.













OS RECADOS

Aonde brotam os recados
nascem os avisos
Das rendas do meu recato
tiro meu grito manchando
brancuras de abismos
Espero o que já veio
e atiro risos ao vento
maculando a nudez
do meu tempo.

















O FOGO


Respirando fogo um lobo
morde as vísceras do tempo
O dia fica amarrotado
de vento
A noite engole o lobo
valente.



















SENTIDOS NUS


Espremo a borda
das significações construindo
sentidos
Navego várzeas nas
pratas da palavra
Quem é de verbo nunca
se cala
Quem é de verso tece a
voz muda da fala.















A LUA BÊBADA


A Lua nua ri
Sua pele branca
inunda a rua
A Lua imunda canta
bêbada a viração
do dia enquanto a
noite navega as horas.
















A ÚLTIMA POESIA

A próxima poesia sempre
me cansa porque nunca
alcança o olor dos acontecimentos.
Vem fora de hora e desalinhada
Não alcança o meu tempo nem
a fabulação dos meus afetos.
A última poesia é a
síntese tardia do
meu cansaço.















O CÓGITO


Não sei das maquinações
do verbo
ou do calor difuso dos
sentidos
Construo alaridos de falas
repetindo a voz das esquinas
A vida escorre mansa
entre as frestas das palavras
paro e penso
não sei se existo.















A PREPOTÊNCIA DO AÇOITE


Vencer a prepotência do
açoite
essa a pretensão dos justos
De onde vem o grito vem
o soluço engolindo
a trituração das feras
Nem só de mansidão se
faz a quimérica passagem
dos dias
O tempo também urra feroz
o eterno desfile das horas.










TÚNEIS DE VENTO


Entre túneis de vento o
claro riso da manhã se
anuncia
De cada manhã anunciada a
que mais me comove batiza
a própria anunciação
Não é a manhã do sol
mas o nascimento do grão,
na terra, nas mesas, nos corações
É a multiplicação dos
pães batizada de milagre
e cujo nome é pura
matemática.











AS MATEMÁTICAS


As matemáticas me exaurem
Dou nome aos lucros,
não vejo a divisão
Pronuncio nomes chulos
me descabelo
e o imposto me crucifica
Não vejo os dias e as horas
só a chuva na janela,
batizando minha exaustão.

















UM POEMA E UM SEGUNDO


A data entre um poema
e um segundo é
quimérica
não vale o balanço
das horas
Nos escondíamos no quintal
da casa do tio Fares.
Lá tinha árvores e terra
Isso vale um poema
e nada mais.















MINAS

As alianças defloram o
silêncio das conspirações
Atravesso o sinuoso imprevisto
das escolhas ao acaso
e grito os murmúrios das
esquinas
onde tudo é perigo e
cumplicidade
Entre o punhal e o afago
balanço meus dias.














A PALAVRA E A DÚVIDA


A palavra tinge os humores
transversos da dúvida,
balança entre trapézios e
abismos e mancha o verbo
de nada.
Cobrindo a vida de
enigmas brinca a
babélica imprecisão das
falas.















MEU OLHAR DE MEDUZA


Meu olhar de medusa desliza
línguas ácidas sobre a placidez
da cidade
Lanço maldições
Os homens ricos jamais serão
felizes, sobretudo os patrões
Graças a Deus minha mãe vive
mas não tenho filhos
e bendigo as próximas gerações
com um enigma
quem cantará os novos hinos?














CLARALINA


Claralina vivia sozinha
num barracão
Vendia salgados na
cidade
Hoje Claralina não tem
um nome no túmulo
Sua alma batiza as esquinas
nas ruas
Claralina, o silêncio das praças
te beija.
















NOSTALGIA


Aonde andam as velhas falas
das moças e dos padres nas
tardes de domingo?
Eu queria aqueles docinhos
de festa, quando os anjos amenizam
as intempéries
Estou só
como uma sentença.











NADA MOVE AS MONTANHAS


Nada move as montanhas
Nem a fé, graças a Deus

Ondulando a linha do
horizonte as montanhas
amarrotam a terra

Minas, minas dos meus
encantos quem te faz
mais bela?

Elas

Mar de terra em
movimento
alento dos mansos
assinatura natural dos
conspiradores corações montanheses.






O SOL DAS HORAS


O sol das horas invade
meu quarto
Onde o gracejo dos
insensatos feriu meus
cernes?

Na mansidão forçada
ou no exagero das
convicções

Amo a dúvida
a descoberta e o
silêncio
O murmúrio perigoso
das conspirações.









GRITO SILENCIOSO


Meu grito silencioso
ondula sobre a calma
muda e mansa das horas

As vestes da minha voz
desatam um soluço antigo
rasgando um verbo rude
parado na garganta.

As asperezas me seduzem
A eterna atração da equação
dos fins
Os homens se odeiam calmamente.












BAILADO SOBRE OS COMEÇOS


Bailo sobre os começos
a eterna inexatidão
Tudo acontece sobre a
linha fina dos abismos.
O grito e o silêncio
O gemido e o riso
O certo e o avesso
Espero o consolo de um endereço
amigo e recolho as alvíssaras
frias dos parentes
A doce acolhida é o limite
das horas.











NOITE


Noite que dá nome ao
meu desatino
abençoa essa dama
desvairada que escarra
sobre o próprio destino
e geme
Não tenho homens ou amigos
Tenho o meu riso sério
e a minha intuição de
fim.














CANOAS DE TERRA


Canoas de terra ardem sobre
a minha íris nua
queimando as punhaladas
que atravessam minha
retina
São crianças nas ruas
cruas desfolhadas pelo
corte de metais frios
tombando inermes sob botas
marciais
A cidade vive
carnes de terra gritam queimando
os corpinhos nos quintais.












UM SOLUÇO DO AR


Um soluço de ar ressoa
na minha garganta
bailando gritos entre o recuo
e o silêncio

Um oxigênio difuso inunda
as minhas vísceras cansadas,
mudas e inermes
Estou desarmada e chamo
o atavio das horas quando
o cheiro de café batiza o
tempo.










AS LÁGRIMAS


As lágrimas fazem estradas
em minha pele sulcando
o útero da minha incerteza
Não sei do amor ou da vida
Respiro a herança dos
muito sós
Tive pai, tenho mãe, não
Tenho marido ou filhos
Guardo comigo o legado
da minha dúvida
Carrego no dorso da
minha coragem o resto
dos meus gritos.














LONGA VIAGEM


Essa longa viagem até
o dia de hoje merece uma
honraria
Sou Maria e trago uma
prenda

Quem quiser casar comigo
que seja de riso e
ame as lendas.















A PASSAGEM DO DIA


Um dia passa como um
rio atravessa a manhã
Manso, mudo
cantando o avesso das horas
A violência dos homens
sangra a face muda
dos dias
O dia não volta.

















ENCARQUILHAR


Eu achei que ia encarquilhar
como os seres
que permanecem longo
tempo
Mas vejo retalhos do
fim e me visto de adeus
Amei as causas perdidas
as esquinas, os amigos e as
primas
Brindo meus irmãos com
um forte abraço
e a despedida.












MEUS AMIGOS


Cobri meus amigos de
ritos
Que coisa solene é a morte
quero ir como vim, sem
cerimônia, como quem toma
café na porta da cozinha
ou canta
Vou rever meu pai, meus tios,
conhecer meus ancestrais
e tremer um pouco na hora
da partida.









O WORLD TRADE CENTER


A paz desenterra sua
súplica nos escombros
do World Trade Center
Para sempre o fim na
minha retina
Não estou à altura da hora
Tenho medo
Temo os escombros, o grito
das vísceras me paralisa
Aonde o pai, o filho, o
amado, a amante se
escondem?
No suor da empresa
que castra
No horror do fundamentalismo
que castra
Os grandes negócios
prosseguem.










AS ROSAS


O mundo cai e minha
roseira permanece intacta
insistindo em assim ser
ainda longo tempo
Insiste no ofício de
ser roseira e vige
clamando o clamor
das rosas que é de
paz, paz, paz, paz,
ad infinitum.







O MEU CORAÇÃO EM TÚNEL ABERTO

A você que murmurou comigo o real deliquescendo minhas miragens na ponte do prazer quando eu nem sabia do meu desejo, perdida no delírio tanatológico dos tristes, eu, que amarrada, atada à circunstâncias de uma cama de hospital por suas mãos amantes, na tentativa de me obrigar à vida enganando thanatos pelos avesso e ao dever de eros, eu te digo, eu te amo.
A você, que docemente desceu comigo aos meus abismos inconfessáveis sem me julgar, eu te declaro, eu te amo.
Porque sou o seu mais precioso enigma. Eu te amo, mesmo que você não queira. Ciciei gritos anônimos na sua presença calma e postulei as minhas mais frágeis incógnitas e você me disse sim. Eu, que sou o seu mais incandescente enigma, sem motivo algum arquejei um sorriso triste diante da razão. Neste instante a sua mão de mago me mostrou o meu desejo, recôndito pássaro que mudo estava no ninho ambíguo da minha lógica vã. Eu te amo. Você me disse que não é o amor mas com a minha ternura humilde eu te digo. Você é o artesão dele.
A você, que me banhou nu no cárcere da mais pura inocência naquele banheiro coletivo de hospital, eu te digo. Eu te amo. Mas eu já estava amarrado quando uma espiral de desenganos me reduziu à mais plena mansidão que é a da morte. Bastava a sua ternura de depois desamarrando o grito enterrado nas entranhas desse avesso emudecido à força dos muitos nãos que assinalaram a minha longa travessia a você.
Mas mesmo assim eu te amo. Eu, que me lancei fundo no abismo da minha alteridade, emergi solene e calma ao som da sua tranqüila autoridade. Eu te amo. Ouça o silêncio que nos circunda.
Desamarre o nó górdico da minha existência que se precipita sobre você como uma sentença invisível, você ouvinte, eu vivente, barqueiros de uma mesma nau voante a caminho de uma estrada sem fim. Eu amo esse seu estranho silêncio diante da minha voz sonâmbula e me surpreendo destrinchando saídas. A delicada sombra do seu próprio medo se articulou junto ao meu desejo como um aviso de morte e então eu pude sobrepairar thanatos e me vestir de prazer. Não há nada, nem opressor ou oprimido, nem fantasmas ou gemidos. E você e eu, assujeitados diante desta libertação, estremecemos.
Eu te amo, seja você homem ou mulher. Quisera esta artezania do saber dentro das vísceras e tenho você, estrategista do meu grito, escultor do meu silêncio, me empurrando, mãe assexuada ofertando a sua cria ao mundo. Eu te amo. E desse amor tiro a seiva que me faz amante dos vários outros que me beijam a epiderme assinalada de gritos. Por que você recebe o meu amor com a majestade de uma esfinge e eu te amo.
E repentinamente você reparte comigo os seus mistérios e eu percebo toda a humanidade dos seus segredos mais terríveis. E te juro, me faço Prometeu em sua honra e jamais te entregarei, mesmo sob tortura.
Quando a multidão me virou as costas e você caminhou comigo a minha errância clandestina, destilei o veneno glorioso de ser única na massa inerme de vendidos. Eu te amo. Você me mostrou suavemente que o objeto do meu crime já havia morrido, então, porque a morte senão o prazer de desafiar o limbo de nossas existências num orgasmo múltiplo, cristal que espelha toda a humanidade numa só imagem. E eu descobri a festa de Dionísio numa noite e já entrando na ancianidade tive o susto glorioso que irmana todos os mortais. Eu te amo, por tudo que eu imaginei e que eu vivi do amor.
A você que me mostrou a miragem nua dos meus sentimentos reais espelhando a minha frágil ilusão de mim mesmo eu te digo, eu te amo.
A você, que me declarou solenemente o que eu considero o mais surpreendente dos cógitos contemporâneos — ama-te a te mesmo — eu te digo, eu te amo.
Porque eu estava nua no meio da intempérie e você elucidou os critérios da minha dor.
Eu que estava exausta de desatar os nós do vento sem encontrar carícia ou paz. Eu te digo, eu te amo. E essa minha catexia que te envolve como um manto se desdobra sobre vários outros tornando o meu amor sábio, o meu desamor necessário, a minha solidão povoada de um devir desnudado e calmo.


Í N D I C E


VERBO AMAR ......................................................................................... 1
CICATRIZ ................................................................................................ 2
MEUS DARDOS ...................................................................................... 3
A TRAVESSIA DO GRITO ....................................................................... 4
A ABUNDÂNCIA DOS COLOSSOS ........................................................ 5
ALENTO ................................................................................................... 6
SEIOS DE TERRA ................................................................................... 7
O AR ........................................................................................................ 8
SENTIDOS .............................................................................................. 9
A NOITE .................................................................................................. 10
GEMIDO .................................................................................................. 11
DEGLUTIÇÃO ......................................................................................... 12
O PENSAMENTO DO FIM ...................................................................... 13
O JUÍZO .................................................................................................. 14
O MEU MANSO AMOR .......................................................................... 15
A RAPIDEZ DOS SUSTOS .................................................................... 16
A BENÇÃO DOS MORTOS .................................................................... 17
UM DESEJO DE PANO .......................................................................... 18
PLÁCIDO ALENTO ................................................................................. 19
A BRANCURA DO VERBO ..................................................................... 20
O PAPEL ................................................................................................. 21
DOR ........................................................................................................ 22
DENTRO DOS MEUS OLHOS ............................................................... 23
AINDA A DOR ......................................................................................... 24
BATISMO ................................................................................................ 25
A NOITE DA CANDELÁRIA .................................................................... 26
OS MEUS SENTIDOS TRAÍDOS ........................................................... 27
UMA PANTERA ...................................................................................... 28
O DIA ...................................................................................................... 29
A PRECE INAUGURAL .......................................................................... 30
OS SACRAMENTOS .............................................................................. 31


DESAMARRO PALAVRAS ..................................................................... 32
DAS ALUÍSSARAS AO DESTERRO ...................................................... 33
A VIAGEM DOS MANSOS ..................................................................... 34
VELHOS GEMIDOS ................................................................................ 35
ALEGRIAS PROVINCIANAS .................................................................. 36
AS CASAS DA RUA ................................................................................ 37
NO FUNDO DO BRANCO ...................................................................... 38
MINHA CARNE ....................................................................................... 39
VELHAS IMAGENS ................................................................................. 40
RUDES ROCHAS .................................................................................... 41
O AZUL DAS TARDES ............................................................................ 42
O DESTINO DA CARÍCIA ....................................................................... 43
TEMPO ROUCO ..................................................................................... 44
A TARDE A AS ENTRANHAS ................................................................. 45
O CAMINHO DAS HORAS ...................................................................... 46
SORRISO ................................................................................................ 47
O NÃO ..................................................................................................... 48
A NATUREZA .......................................................................................... 49
OS DIAS DA DOR ................................................................................... 50
UM HOMEM ............................................................................................ 51
OS RECADOS ........................................................................................ 52
O FOGO .................................................................................................. 53
SENTIDOS NUS ..................................................................................... 54
A LUA BÊBADA ...................................................................................... 55
A ÚLTIMA POESIA ................................................................................. 56
O CÓGITO .............................................................................................. 57
A PREPOTÊNCIA DO AÇOITE .............................................................. 58
TÚNEIS DE VENTO ............................................................................... 59
AS MATEMÁTICAS ................................................................................ 60
UM POEMA E UM SEGUNDO ............................................................... 61
MINAS ..................................................................................................... 62
A PALAVRA E A DÚVIDA ....................................................................... 63
MEU OLHAR DE MEDUZA ..................................................................... 64


CLARALINA ............................................................................................. 65
NOSTALGIA ............................................................................................ 66
NADA MOVE AS MONTANHAS ............................................................ 67
O SOL DAS HORAS ............................................................................... 68
GRITO SILENCIOSO .............................................................................. 69
BAILADO SOBRE OS COMEÇOS .......................................................... 70
NOITE ...................................................................................................... 71
CANOAS DE TERRA .............................................................................. 72
UM SOLUÇO DO AR .............................................................................. 73
AS LÁGRIMAS ........................................................................................ 74
LONGA VIAGEM ..................................................................................... 75
A PASSAGEM DO DIA ........................................................................... 76
ENCARQUILHAR .................................................................................... 77
MEUS AMIGOS ....................................................................................... 78
O WORLD TRADE CENTER .................................................................. 79
AS ROSAS .............................................................................................. 80
O MEU CORAÇÃO EM TÚNEL ABERTO ............................................... 81