sinais de oralidade a transfiguração do discurso em cobra norato

SINAIS DA ORALIDADE:
A transfiguração do discurso em Cobra Norato
Helenice Maria Reis Rocha
Tentarei, neste estudo, proceder a uma análise do discurso do mito da Cobra Norato,
advindo da tradição indígena, e a uma análise do discurso desse mesmo mito, tal como ele
aparece no poema Cobra Norato de Raul Bopp. O objetivo deste trabalho é dar a perceber
como o mito da tradição oral indígena é percebido pelo poeta modernista e como ele
aparece transfigurado discursivamente na referida poesia. Transformado em um outro
discurso, o de uma poesia modernista, cumpre dar a perceber o sentido desta apropriação.
Comecemos pelo mito.
Cobra Norato. Uma das lendas mais conhecidas no extremo norte brasileiro,
Amazonas e Pará. Uma mulher indígena tomava banho no Paraná do Cachoeri, entre o
rio Amazonas e o rio Trombetas, município de Óbidos, Pará, quando foi engravidada pela
Cobra Grande. Nasceram um menino e uma menina, que a mãe, a conselho do pajé,
atirou ao rio, onde se criaram, transformados em cobras-d’água. O menino, Honorato,
Norato era bom e Maria má, virando embarcações, matando náufragos, perseguindo
animais. Mordeu a Cobra de Óbidos e esta, estremecendo, abriu uma rachadura na
praça da cidade. Norato foi obrigado a matar a irmã para viver sossegado.
(CASCUDO, 1972, p. 289)
Capturando o não-dito do discurso, ou seja, aquilo que Maingueneau chama de implícito,
está implícita aí uma questão de vida e de morte, ou seja: de sobrevivência. A morte de
Maria caninana significaria a sobrevivência dos náufragos, melhor dizendo, dos pescadores.
Vejamos as primeiras falas do poema:
COBRA NORATO
I
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-Fim
Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes
Depois
faço puçanga de flor de tajá da Lagoa e mando chamar a Cobra Norato
– Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas
Faz de conta que há luar
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
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e estrangulo a Cobra
Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo (BOPP, 1998, p. 148)
Como se pode perceber, há um deslocamento da morte. Antes, a morte brindava a irmã má,
responsável pela dificuldade de sobrevivência dos pescadores. Agora a morte brinda o
herói, que, como veremos no final do mito, aspira apenas a ser humano.
Vejamos o final do mito:
À noite, Cobra Norato desencantava-se, tornando-se rapaz alto e bonito, indo
dançar nas festas próximas ao rio. Na margem ficava o couro da cobra, imenso e
aterrorizador, mas inofensivo. Se alguém deitasse um pouco de leite na boca da
cobra imóvel e desse uma cutilada na cabeça, que merejasse sangue, acabar-se-ia a
penitência e Honorato voltaria a ser um rapaz. Ninguém tinha coragem; mas um
soldado de Cametá, no rio Tocantins, cumpriu as exigências e Honorato
desencantou-se. (CASCUDO, 1972, p. 289)
Fica então implícito que o ritual de morte do poeta matou o humano na cultura indígena. A
nova humanidade aí inserida é a do homem branco, letrado, de pince-nez. De acordo com
Alvez,
foi para esconder seu fraque, sua cartola e seu anel de bacharel, que Raul Bopp teve
de se enfiar na pele de seda elástica da Cobra Norato. Não o tivesse feito e jamais
conseguiria livre trânsito no reino da Cobra Grande, onde a floresta, inimiga dos homens,
abomina particularmente os que trajam à européia. (ALVES, in BOPP, 1998, p. 64)
Por essa razão chamarei o discurso de Bopp de discurso da camuflagem. Mas camuflagem
do quê? Bem, a partir do momento em que é necessário um ritual de morte para a assunção
de uma cultura, eu diria que se trata da camuflagem de um conflito.
O conflito que se inscreve na diferença entre cultura indígena e cultura branca, letrada. O
poema Cobra Norato descreve a trajetória desse herói travestido de cobra em busca do seu
objeto do desejo, a saber, a filha da Rainha Luzia, filha essa que se nos é apresentada como
uma mulher branca, de olhos claros. O implícito desse desejo é essa brancura em oposição
ao que seria o desejo de um herói indígena.
Resumindo, desejo de brancura, desejo de Europa. A substituição dessa luta de vida e morte
imanente ao mito indígena por esse discurso erótico nos joga num jogo de encantamento
que nos faz esquecer a dialética da sobrevivência do indígena e do caboclo em face da
pobreza, e de uma natureza hostil nos levando a um maravilhamento estético que bem se
assemelha à noção de mirabilia do viajante europeu ao Brasil. O jogo erótico camufla uma
ausência: a do homem indígena. Por essa razão chamei a esse discurso erótico de discurso
de camuflagem. Vejamos o não-dito do discurso: quem se camufla, faz isto porquê? Para
esconder a própria face. As pessoas se escondem para se proteger, para despistar o
adversário e por razões diversas que apontam para um obscurecimento da clareza das
coisas. O implícito desse estrangulamento da Cobra Norato é o sufocamento da expressão
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do mito transcrito. O sufocamento dos termos da cultura indígena. Sufocar significa entre
outras coisas impedir a voz. Essa voz sufocada sobrevive na poesia através da permanente
recorrência aos personagens do mito. E a voz sufocada se volta contra o sufocador através
mesmo dos significados imanentes a esse gesto. A título de esclarecimento estou tomando
todo o poema escrito como enunciado e o não-dito, o que está imanente ao texto como
enunciação, tal como prevê a definição desta categoria pela análise do discurso.
Procuremos agora alguns aspectos do contexto histórico do modernismo para nos situarmos
melhor.
Há uma contradição aparente no fato de a arte moderna, implicando todas aquelas
ligações com a sociedade industrial, ter sido patrocinada e estimulada por fração da
burguesia rural. O paradoxo, todavia, fica ao menos parcialmente resolvido se
atentarmos para a divisão de classes no Brasil na década de 20; apesar da
insuficiência de estudos a esse respeito, parece hoje confirmado que, além das
relações de produção no campo paulista já terem caráter nitidamente capitalista por
essa época, uma importante fração da burguesia industrial provém da burguesia
rural, bem como grande parte dos capitais que permitiram o processo de
industrialização. Daí não haver, de fato, nada de espantoso em que uma fração da
burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética “passadista”, “oficializada”,
nos jornais do governo e na academia. (LAFETÁ, 1974, p. 14)
Essa contextualização histórica do modernismo funciona como uma forma de situá-lo no
seu lugar de enunciação já que esse conceito se localiza no entre-lugar linguagem, ou
melhor enunciado versus contexto. Situado o modernismo na sua face de enunciação
vejamos o que acontece em Cobra Norato. Quando enuncia
Vou visitar a rainha Luzia
Quero me casar com sua filha (BOPP, 1998, p. 148)
Bopp deixa implícito no seu objeto de desejo a busca de uma princesa, existente
predominantemente no fabulário europeu. O casamento se consuma com direito a convite a
uma parte da intelectualidade modernista. E o homem indígena é o grande ausente. Com
relação à questão da oralidade e da escrita nos dois discursos que estou comparando, me
socorro em Maingueneau que nos diz
O importante não é, pois, tanto o caráter oral ou gráfico dos enunciados quanto a
sua inserção num espaço protegido. O enunciado literário é garantido em sua
materialidade pela comunidade que o gere. Reivindica uma filiação e abre para uma
série limitada de repetições. Capturado na memória, aquela da qual vem e aquele em
que está destinado a entrar, pertence de direto a um corpus de textos consagrados.
(MAINGUENEAU, 1995, p. 87)
Pertencendo com lugar de destaque à bibliotequinha antropófágica Cobra Norato pertence a
esse “corpus de textos consagrados” (MAINGUENEAU, 1995, p. 87) assim como o mito
que lhe serve de substrato se “abre para uma série limitada de reflexões”
(MAINGUENEAU, 1995, p. 87) mas o discurso erótico introduzido por Cobra Norato no
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meio das significações do mito indígena, tal como a camuflagem do herói branco e letrado,
esconde os anseios de perpetuação da elite modernista.
Posto que já se deixou claro o lugar da enunciação vamos tentar capturar exatamente um
pouco mais desse implícito do texto na própria poesia de Raul Bopp. Vejamos:
Ouvem-se apitos um bate-que-bate
Estão soldando serrando serrando
Parece que fabricam terra...
Vê! Estão mesmo fabricando terra (BOPP, 1998, p. 155)
Neste trecho, o mundo industrial é transplantado para a floresta. Ora, sabemos que o que há
de mais expressivo no conflito civilização versus mundo indígena é a confrontação entre
mundo capitalista, industrial e modos de sobrevivência dos povos da floresta. A exploração
industrial da floresta invade as reservas indígenas e coloca em risco a sobrevivência desses
povos. Por essa razão, um verso como esse, camufla conflitos configurando o que estou
chamando aqui de discurso de camuflagem. O implícito desse discurso evidencia o lugar de
enunciação desse poeta que, apesar de ter percorrido a Amazônia, parece harmonizar
mundos tão diferentes que podem até se excluir um ao outro.
Referências Bibliográficas
BOPP, Raul. Cobra Norato e outros poemas. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1971.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de folclore brasileiro. 7. ed. São Paulo: Ática,
1997.
LAFETÁ, João Luís. A crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.

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