dissertação de mestrado

Helenice Maria Reis Rocha




SINAIS DE ORALIDADE:
A transfiguração da voz
em Cobra Norato
Helenice Maria Reis Rocha




SINAIS DE ORALIDADE:
A transfiguração da voz
em Cobra Norato

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras em Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras – Teoria da Literatura.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques






Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
2000


Dissertação aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

_________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques – UFMG
Orientador

_________________________________________
Profa. Dra. Haydée Ribeiro Coelho – UFMG

_________________________________________
Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty – PUC-MG




________________________________________________
Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras –
Estudos Literários – FALE/UFMG







Belo Horizonte, 31 de agosto de 2000












Dedico este trabalho aos meus pais, Aluísio e Ondina, com quem aprendi a transformar a dor em esperança, as lágrimas em manhãs.

Ao meu orientador, Reinaldo, homem que tece mansamente a urdidura do conhecimento.

À Adei, cristal de rocha

À Dra Cristina Contigli, com quem apreendi a tecer nas linhas a epopéia feminina sobre a vida.



AGRADECIMENTOS


Desejo agradecer em caráter muito especial ao meu orientador, Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques, pela pertinência e sutileza das observações críticas de percurso, sem as quais este trabalho não teria sido possível e à FAPEMIG pelo pontual patrocínio através da bolsa que me foi concedida.




RESUMO

Numa tentativa de capturar sinais de verbalização em Cobra Norato, busquei estabelecer uma relação entre a cultura indígena (ágrafa) e a cultura letrada como um forma de expressar as transformações pelas quais esta voz aqui representada passou, enquanto objeto de intercâmbio. A fim de atingir meu objetivo busquei no estruturalismo, sociologia e antropologia, entre outras ciências, as ferramentas necessárias para esta análise. Com a finalidade de dar a perceber os sinais de verbalização na poesia de Raul Bopp; características desta verbalização, características formais de verbalização, entre outras coisas. Refleti, também, sobre o hibridismo cultural resultante da interação que ocorre entre a experiência da verbalização (o mito indígena) e a experiência do texto escrito (poema estudado) para expor a realidade contemporânea da interconexão entre tais diferenças.



SUMÁRIO


INTRODUÇÃO          8
I. ORALIDADE E POESIA        12
1.1. O problema da oralidade        14
1.2. Oralidade e escrita         16
1.3. Oralidade e discurso         23
1.4. Identidade e oralidade         34
1.5. Oralidade, história e identidade         38
1.6. Aspectos formais da oralidade         46
1.7. O tempo da oralidade         57
1.8. O narrador oral         60
1.9. O sentido da tradução no universo da oralidade         64
II. MITO E ORALIDADE         67
2.1. Apropriação e tradução do modelo mítico         71
2.2. Mitos amazônicos em Cobra Norato         77
III. COBRA NORATO E O MODERNISMO         96
3.1. Cobra Norato e o contexto histórico         98
3.2. O modernismo brasileiro         100
3.3. Cobra Norato: identidade e diferença         107
3.4. Estudo comparativo: Cobra Norato, Macunaíma e Martim Cererê         116
3.5. Recepção de Cobra Norato         122
3.6. Cobra Norato, o cordel e o fabulário europeu         125
CONCLUSÃO         128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS         131






INTRODUÇÃO



Pensando na experiência da oralidade não apenas como uma questão de fala, com os seus atributos de som e ritmo, tentarei capturar neste trabalho nada mais nada menos do que uma voz. A voz imanente ao poema Cobra Norato de Raul Bopp. A voz ancestral da cultura indígena perpassando o corpo do fato poético e inscrevendo-o no corpus de uma experiência histórica na literatura brasileira, a experiência do modernismo. A oralidade aqui funciona muito mais como cultura, discurso, identidade, vida do que como menção material da fala. Por isso dividirei o meu trabalho nestas categorias. Não se trata de estabelecer uma distinção maniqueísta entre escrita e fala, mas de ver como estas duas instâncias se relacionam no poema de Raul Bopp. Nem a escrita eclipsou a voz nem a voz eclipsou a escrita. Mas como, em termos de voz, estamos lidando com o que não se encontra mais presente, procurarei resgatá-la pelos seus sinais, pelos sintomas da sua imanência. É claro que este trabalho não se propõe a ser uma verdade final sobre o assunto, mas tão somente um viés, através do qual tentarei filtrar elementos identificadores da cultura indígena, substrato do poema. Procurarei também identificar os elementos materiais da fala, presentes em todo o poema, na musicalidade e no ritmo imanente à experiência de Raul Bopp, procurando captar o que foi escrito para ser ouvido quer seja através de refrões, de rondas, de parlendas, quer seja através do próprio material fonético.
Essa pesquisa tem um caráter interdisciplinar, buscando as contribuições da Análise do Discurso, da Sociologia, da História e da Antropologia, o uso dos conceitos e dos procedimentos que lhes são pertinentes, com vistas a compreender melhor o fenômeno da oralidade. Importa aqui pensar a voz como experiência da cultura, articuladora de uma identidade, de uma história, de uma memória. Matéria privilegiada deste estudo, a oralidade constituirá o foco de minha atenção. Os problemas a serem abordados ensejam uma reflexão sobre as posições culturalistas e assumem uma relevante importância na arquitetura do trabalho. Todavia, acredito na possibilidade de pensar com eficiência o sentido cultural dessa voz que persigo neste estudo e espero contribuir de alguma forma para elucidar este aspecto dos estudos literários: o da relação entre voz, escrita e cultura.
Cumpre esclarecer melhor do que estou falando. Para entender a oralidade como uma voz perpassada pela cultura, aqui entendida na sua dimensão discursiva e sociológica, trabalharei com o poema Cobra Norato de Raul Bopp, escrito sobre o substrato de relatos míticos populares e de conhecimento geral. O poema é uma metáfora do desejo, uma vez que descreve a trajetória de um herói travestido em cobra, em busca do seu objeto de desejo, a saber, a filha da Rainha Luzia. Procurarei ver no texto o cruzamento de várias narrativas orais, algumas encontradas até mesmo no fabulário europeu. Cobra Norato tem algo de mito indígena, de conto de fadas, de cordel, de tudo o que é oral e popular. E tem também algo de tudo o que é literário, conscientemente construído para encantar e seduzir. Tem o poder encantatório dos cantos, das rezas, dos rituais. Mas, como experiência modernista que foi, não deixa de misturar um registro de alto índice de formalidade literária com a maior simplicidade, com os falares do povo, com uma oralidade rural, amazônica e indígena. O que me interessará mais, entretanto, será a articulação dessa voz como experiência cultural.
Em termos da relação voz e discurso, será interessante observar o caráter pragmático da vocalidade no que diz respeito a ser uma experiência de ação e de uma ação carregada de intencionalidade prática. Quanto ao caráter social da vocalidade, podemos captar de que lugar essa voz se insinua como enunciação e em que medida ela tem tradutibilidade nas várias manifestações culturais com as quais se entrecruza. Na sua relação com a escrita, como já disse, cumpre captar os seus sinais, as suas pegadas. Examinado à luz de tais categorias, poderemos apontar no poema Cobra Norato as relações escrita e voz e ainda demonstrar a sua vocação para a oralidade.
Procurarei refletir também sobre a tradição e as contradições da experiência modernista no sentido de demonstrar o paradoxo da busca de conciliação entre os vários Brasis que essa experiência abarca. Ora um Brasil rural, ora um Brasil urbano, ora um Brasil indígena, como no caso do poema em questão. Apesar dessas contradições, o modernismo torna a poesia mais próxima de nós. Sem estabelecer juízos de valor ou hierarquias, na sua busca da coloquialidade dos falares das ruas, do cotidiano e da compreensão do mundo moderno, a experiência modernista tornou o leitor comum mais apto para a leitura da poesia.
Finalizando, para pontificar a importância da oralidade nas reflexões que envolvem a cultura e os estudos literários, vale a pena transcrever as palavras de Paul Zumthor:
A nadie se le ocurriria negar la importancia del papel que representaron las tradiciones orales em la historia da humanidade; las civilizaciones arcaicas, y incluso hoy en día muchas culturas marginales, sobrevivieran unicamente, o principalmente, gracias a ellas. No es más difícil imaginarlas en términos no históricos y especialmente convencernos de que nuestra própria cultura está impregnada de dichas tradiciones y le sería muy difícil subsistir sin ellas. (ZUMTHOR, 1991:10).







I. ORALIDADE E POESIA





A experiência modernista brasileira ligou oralidade a fato estético, entendendo que assim venceria a arrogância dos círculos oficiais e aproximaria o povo da cultura letrada. Os vários falares que foram colocados em circulação na escrita (o rural, o indígena, o urbano) conviveram na poesia modernista com razoável harmonia, o que faz supor uma convivência democrática. O que me ocorre é a idéia de uma carnavalização de linguagens e culturas, que não anula as tensões e conflitos. Assim, o modernismo brasileiro é uma experiência privilegiada de poesia e oralidade.
Em termos de linguagem, a poesia constitui uma experiência de oralidade, seja no nível sonoro, do ritmo, seja por ser talvez a oralidade da mesma a causa do descompasso entre linguagem poética e a prosa. Talvez, a diferença que se estabelece entre linguagem poética e prosa esteja mesmo no fato de a oralidade estar na base da experiência da poesia. Isto explica porque a poesia é uma coisa para ser lida e também para ser falada. A fala está na raiz do fato poético como uma imanência e é uma prova de sua vocação para a oralidade.
Os atuais recitais de poesia, que têm se proliferado por todas as metrópoles brasileiras, lembram essa antiga vocação para o que é feito para ser ouvido, tendo portanto uma relação com a fala, com as entranhas, com a voz. Os poemas homéricos eram falados nos palácios. A poesia medieval era falada em praça pública. Não há quem quer que seja que não leia um poema que não tenha vontade de recitá-lo. Re-citar é inscrever na voz o que já foi citado como sinal da escrita feita para ser ouvida.

1.1. O problema da oralidade
Se cada emissão de som articulada pela boca humana sustenta o minuto em que se inscreve, podemos pensar na oralidade como sendo a permanência de uma voz que fala. A ausência do som vocal é o momento do silêncio. A sua presença é o soar daquilo que permanece a cada segundo de sua vocalização. É o que se expressa materialmente pela boca. Portanto, a oralidade só se sustenta pela voz, o que justifica a substituição deste termo por vocalidade. Ou seja, o pleno exercício do que tem som da voz humana, do que se constitui para a audição. Usarei algumas vezes o termo vocalidade, seguindo orientação de Paul Zumthor, que considera este termo mais concreto, uma vez que se refere à voz. É Zumthor quem nos diz: “As palavras representam a realidade? Ou são apenas flatus vocis? Também essa expressão designa, mais do que o som em sua existência só física, a voz enquanto intenção de significar, anterior ainda a toda significação” (ZUMTHOR, 1993:132).
Ou seja, a voz precede a palavra, justificando assim o uso do termo vocalidade. Em termos de escrita, a vocalidade se propõe como a imanência da voz, ou seja, como o sinal da sua presença subjacente ao texto. São vários os níveis da oralidade. O primeiro deles é o das culturas ágrafas, sem escrita, que mantêm o exercício da sua memória, história e tradição através da fala. O segundo nível é o que interrelaciona escrita e fala, no qual a voz sobrevive como imanência, quer seja através de uma tradição oral, quer seja através de um registro. A esse respeito nos fala Pierre Lévy: “A oralidade primária remete ao papel da palavra antes que uma sociedade tenha adotado a escrita, a oralidade secundária está relacionada a um estatuto da palavra que é complementar ao da escrita, tal como o conhecemos hoje” (LÉVY, 1996: 96).
Outros níveis podem ser abordados: o do discurso, por exemplo, através do qual se percebe a especificidade da construção ideológica articulada pela voz; o da coloquialidade, que pressupõe inclusive a vocalidade tal como se expressa nos centros urbanos; o da identidade, que pressupõe uma marca; ou os níveis de tempo e espaço próprios do universo da voz. Não pretendo aqui abordar estes níveis como se fossem específicos da vocalidade, mas antes tentarei perceber as relações que se estabelecem entre uma coisa e outra. Um outro nível que deve ser colocado em questão o tempo todo é o que diz respeito à relação entre vocalidade e linguagem poética. Voltando ainda a uma tentativa de conceituação, procurarei delimitar o sentido de vocalidade em pelo menos alguns dos níveis propostos.
Tomemos, por exemplo, vocalidade e discurso. A relação entre vocalidade e discurso pode ser definida como sendo o momento em que o enunciador se expressa nos termos daquele que fala. A transmissão oral passa a ser o instrumento não somente do indivíduo mas também do que é coletivo. Em termos de identidade, a vocalidade pode ser percebida como uma marca que a diferencia da escrita, ou como marca antropológica daquele que fala, ou como tudo o que a diferencia de uma outra experiência que não a de si mesma. Em termos de coloquialidade, a voz pode ser percebida como linguagem urbana, regional, etc. Em termos de tempo, pode ser definida como duração de performance, ou também como memória. Assim sendo, o seu espaço se inscreve em todos os lugares onde está aquele que fala, portanto, todos nós. Walter Ong introduz no sentido de oralidade secundária outros níveis de comunicação advindos da alta tecnologia. Ele nos diz:
... Ilamo “oralidad primária” a la oralidad de una cultura que carece de todo conocimiento de la escritura e de la impression. Es “primária” por el contraste com la “oralidad secundária” de la actual cultura de alta tecnologia, en la cual se mantiene una nueva oralidad mediante el teléfono, la radio, la television y otros aparatos eletrónicos que para su existencia y funcionamento dependem de la escritura y la impresión. (ONG, 1997: 20).
Importa introduzir, a meu ver, a reflexão sobre os níveis da oralidade, a sua dimensão cultural, uma vez que se consideram os seus níveis discursivos, sociais e antropológicos.

1.2. Oralidade e escrita
Para introduzir o conceito de oralidade existe a necessidade da compreensão da concreção da voz. Não se pode entender uma idéia como esta sem recorrência à materialidade da fala. E fala entendida em termos de tempo de duração, uma vez que, terminado esse tempo, entramos no universo do silêncio. A idéia de oralidade, ou vocalidade, aparece nesse contexto intrinsecamente ligada a tempo de duração da fala. Todavia se existe uma referência à dimensão material da voz, à sua existência de enunciado, existe em contrapartida também uma referência à dimensão cultural da voz, quer seja como discurso, quer seja como lugar nas sociedades humanas, quer seja como registro.
De acordo com as primeiras palavras do texto, trata-se aqui de definir a interação da voz com a escrita, sem estabelecer uma separação maniqueísta que impeça a percepção de como esses dois mundos se interagem entre si. Como sabemos, a voz é percebida na escrita pela sua ausência. Podemos, quando muito, capturar as suas pegadas. Isto é o que podemos definir em termos de posicionamento no que diz respeito à questão da oralidade e da escrita.
A permanência da voz no tempo define o que estou chamando aqui de vocalidade. A permanência da voz na escrita só pode ser capturada através dos seus sinais, das sobrevivências no texto escrito daquilo que evoca o que é feito para ser ouvido.
Entre os sinais da presença de uma voz imanente ao texto está a tradução escrita do que foi transmitido boca a boca, a exemplo dos mitos. A presença do mito na escrita nos joga na presença dessa voz que articulou essa escrita e que deixa o seu rastro de diversas formas. Essa relação entre escrita e vocalidade pode ser pensada no sentido de uma permuta, na qual o escrito inscreve a sua marca nesta voz e vice-versa.
Cumpre perguntar sobre que sinais a vocalidade deixa na escrita para testemunhar a sua presença. O percurso a seguir já está delineado nas linhas anteriores, mas vou retomá-lo.
Tomando a presença do mito na poesia como um sinal de oralidade, é possível resgatar as condições em que se estabelece essa presença, a fim de se apreenderem outros sinais. O mito tem uma relação com o espaço e o tempo que lhe é própria. Evidenciar esta relação no texto poético é resgatar o sinal de sua presença. Se a poesia estabelece alguma semelhança com as relações que cria entre espaço e tempo e estas mesmas relações no mito, estamos diante da imanência da voz.
As construções discursivas que o mito estabelece também podem ser um caminho para rastrear a sua permanência na escrita, caso a matéria do mito seja tomada como base para a construção do fato poético. Cumpre lembrar que, advindo das culturas ágrafas, o mito é também categoria sociológica. Desta forma, propõe questões de identidade cultural que podem muito bem estabelecer uma relação de semelhança ou dessemelhança com o fato poético. Perguntarmo-nos até que ponto a poesia é mito ou o mito é poesia talvez seja um caminho para unir letra e voz num casamento cujas pegadas podem esclarecer muito a questão. Se for assim, a poesia que usa o mito como substrato tem um pouco de voz escrita, é claro. Considerando com Giambatista Vico que os mitos são pequenas metáforas, tem-se aí uma relação clara com a poesia. Podemos dizer que estamos lidando com realidades híbridas que se podem traduzir uma na outra. Estou usando aqui conceitos de hibridismo cultural de Canclini e de tradução cultural de Stuart Hall, além das reflexões de Homi Bhabha sobre a dinâmica de relacionamento entre culturas diferentes, conceitos que serão esclarecidos no decorrer do trabalho. No caso do poema Cobra Norato, de Raul Bopp, podemos considerar o próprio poema um mito, na medida em que transforma uma metáfora do desejo num percurso sacralizado como fato poético. Iniciando já a análise do poema, trata-se da viagem de um herói travestido em Cobra, no sentido do alcance da realização de um desejo, qual seja, o de se casar com a filha da Rainha Luzia.
Por hibridismo cultural, Canclini (1997) entende a quebra do maniqueísmo que separa erudito de popular, negro de branco, índio de civilizado, entre outras coisas e que interrelaciona as diferentes culturas dialogando com suas semelhanças e diferenças. No caso de Cobra Norato, estou lidando com um material fartamente documentado e não terei os problemas que os medievalistas, por exemplo, tiveram, que era o de resgatar a origem da voz que capturaram. Mas as transcrições dos mitos indígenas, no nosso caso, já são um problema em face das diferenças culturais em circulação.
Pensando no hibridismo resultante da união entre voz e escrita, quando se trata da presença de uma tradição oral subjacente ao texto, é interessante estabelecer alguns parâmetros que definam o que é oralidade e o que é escrita. No caso da poesia de Raul Bopp, a própria manipulação de mitos já é índice da permanência de uma voz no texto. Segundo Paul Zumthor,
Admitir que um texto, num momento qualquer de sua existência, tenha sido oral é tomar consciência de um fato histórico que não se confunde com a situação de que subsiste a marca escrita, e que jamais aparecerá (no sentido próprio da expressão) “a nossos olhos!”. (ZUMTHOR, 1993:35).
Isto significa que a voz é em si irrecuperável, não existe uma voz original e que apenas as suas pegadas subsistem na escrita. Sobre a noção de índices de oralidade, ele nos diz:
Por ‘índice de oralidade’ entendo tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação quer dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos. (ZUMTHOR, 1993:35).
Por índices de oralidade entenda-se, portanto, as marcas, as pegadas que a voz imanente ao texto deixa neste texto. O poema de Raul Bopp é recheado de recorrências à voz. Vejamos alguns exemplos: “Estrelas conversam em voz baixa.”, “galhinhos fazem psiu”, “trovãozinho roncou: já vou”, “ventos da floresta gritam”, “grilos dão avisos”, ou “uma árvore telegrafou para outra: psi, psi, psi”. Trata-se, no dizer de Augusto Massi, de um “mutirão de vozes” (MASSI in BOPP, 1998: 20).
Esta recorrência ao que é próprio da voz, esta designação da voz no texto pode ser considerada uma das formas de interrelação entre vocalidade e escrita. Mas existe um problema que não deve ser desconsiderado. Trata-se da descontinuidade entre voz e escrita. São dois meios diferentes. Esta descontinuidade pode gerar estranhamentos que talvez sejam por si sós também uma forma de relação. As coisas se relacionam entre si também pelas suas dessemelhanças. Tanto a escrita pode ser uma voz que cala quanto a fala pode ser uma escrita que soa. No caso de Raul Bopp, esta descontinuidade jamais pode ser desconsiderada uma vez que não existe apenas o hiato entre escrita e voz, mas também uma distância que diz respeito às diferenças lingüísticas, dado que a tradição oral abordada foi vocalizada inicialmente em línguas indígenas. Já que estamos falando em semelhanças e diferenças entre meios, vamos colocar as questões pertinentes a cada um dos critérios. Segundo Benveniste, “o pensamento é o reto e o verso [...] na língua, não se pode isolar nem o som do pensamento nem o pensamento do som” (BENVENISTE, 1966:52). Pensando na interligação entre pensamento, escrita e voz, sabemos que todos estes elementos estão interligados pelo som. Como o som é um atributo privilegiado da voz, pode-se perceber então que, por menos que queiramos, algo sempre canta na nossa escrita. Pode-se ler em voz baixa, mas não existe pensamento sem som.
E é essa voz que se interrelaciona com a escrita no momento mesmo da sua execução, uma vez que é necessário ouvi-la antes de proceder-se ao ato de escrever. A escrita poética se estrutura sobre ritmo e musicalidade, incorporando assim os procedimentos do que é feito para ser ouvido. Finalmente, uma relação muito especial entre letra e voz está na apropriação do que teve começo na fala, na transmissão boca a boca, pelo texto literário ou por um outro tipo de texto qualquer. As conseqüências dessa apropriação no que diz respeito à matéria do mito exigem reflexões que devem percorrer uma boa parte deste trabalho. O mito se relaciona com a escrita passando pelo filtro daquele que escreve. Nesse sentido, as diferenças culturais devem ser analisadas e deve-se proceder a uma leitura dos pontos de vista que embasam os atores desses procedimentos. No caso, tanto da poesia quanto da transcrição do mito, a tradição oral fica refém daquele que a escreve, podendo até passar por alterações.
No caso da poesia moderna, cumpre ter em mente o cuidado constante de não se estabelecerem hierarquias de valor entre a matéria do mito e o poeta que o reelabora, nos termos de alguma superioridade de um sobre outro, por nenhuma via. Trata-se de respeito às alteridades em questão e de um estabelecimento da especificidade dos meios. Tanto a poesia moderna não é cópia literal das culturas ágrafas quanto as culturas ágrafas não são refém de algum vate, pretensamente iluminado, que desrespeite o que é coletivo.
A relação letra e voz envolve um hibridismo cultural que intercambia diferenças culturais, diferenças de meios e conseqüentemente envolve diferenças de resultados. Desenvolvendo melhor a formulação, temos que pensar que estamos lidando com o contato entre a cultura ágrafa e a cultura letrada. O meio das culturas ágrafas é oral e o meio da cultura letrada é a escrita. Só podemos pensar na relação entre estas diferenças por meio de um intercâmbio que tira das nossas cabeças a idéia da pureza original do mito e o equaciona, por exemplo, nos termos da poesia.
Voltando à questão da relação entre mito e escrita, cumpre reconsiderar a descontinuidade entre o que é oral e o que é escrito. Devemos pensar também na diferença lingüística.
No que concerne a Cobra Norato, trata-se de uma descontinuidade entre as línguas indígenas e o português. Normalmente, quando se transcrevem mitos, essa transcrição passa pelo filtro do pesquisador ou escritor em questão. Em termos de poesia podemos dizer que sua escrita reelabora a matéria do mito. De que maneira? Difícil prever um método neste caso. Como controlar a subjetividade de um escritor? Talvez, no caso da transcrição de mitos se possa supor alguma perda, no trato com a escrita. Quem garante que histórias repetidas oralmente ao longo do tempo não sofram alguma alteração? Qual a diferença, por exemplo, entre a transmissão oral de um representante autóctone da cultura vocalizada e a mesma experiência vivida nos meios universitários? É neste sentido que falo em descontinuidade. Esta escrita do que é oral talvez venha marcada por lacunas irrecuperáveis. Essas lacunas talvez sejam as brechas por onde possamos resgatar a oralidade nos textos transcritos.
As mudanças, tanto estruturais quanto lexicais, que o mito sofre nas transcrições podem ser um índice da sua relação com a escrita. As configurações de espaço e tempo, as construções discursivas, as marcas identitárias também sinalizam para esta relação nos termos de uma permanência. Na sua relação com a literatura moderna, portanto, com a escrita,
o mitologismo foi, incontestavelmente produto da tomada de consciência da crise da cultura burguesa como crise da civilização em seu conjunto, o que levou à frustração no racionalismo positivista e no evolucionismo, na concepção liberal do progresso social (MIELETINSKI, 1987:3).
O mitologismo, tanto na poesia quanto na prosa, pode ser considerado uma revolta contra a visão liberal capitalista do mundo e a sua falência. Segundo ainda Mieletinski (1983:3), “o mitologismo modernista alimentou-se da revolta romântica contra a ‘prosa’ burguesa.” Desta forma, o oral se relaciona com o escrito como instrumento que a cultura usa para discutir os seus parâmetros.
Vejamos agora algumas relações entre mito e literatura. Para Mieletinski (1987:13), “são singularmente profundas as opiniões de Vico segundo as quais cada metáfora ou metonímia é por origem um pequeno mito”.
Se pensarmos que o mito se afasta de um modelo que está no referente (busca de alimento, retorno à família...) para, através da narração, expor um fato, mantendo (o que só pode ocorrer pela metaforização) uma zona semântica comum entre fato narrado e referente, podemos com certeza afirmar que estamos, no caso do mito, diante de uma metáfora. Metáfora de sobrevivência, metáfora de heroísmo, metáfora de vida, metáfora de morte. Deste modo, a relação do mito com a literatura se inscreve num plano de abstração, num plano de idealização da escrita. É o que estamos fazendo quando aproximamos uma figura de linguagem ocidental, grega, do mito indígena.

1.3. Oralidade e discurso
Relacionar os relatos da oralidade com a idéia de um discurso significa captar atrás da fala, posições, atitudes, o mundo da cultura em sua dimensão ideológica e pragmática. Esta a intenção subjacente à atitude de se examinarem relatos míticos, por exemplo, a partir da Análise do Discurso. Pensamos aqui o discurso na sua dimensão de enunciação, na sua interação com o contexto em que se inscreve, em termos da relação entre fala e intencionalidade.
Tomando o discurso como o espaço plural no qual figuram aquele que fala, aquele com quem se fala e aquele do qual se fala, além do circuito previsto pela teoria da comunicação, temos que pensar também naquilo que não é dito. Então, em termos de oralidade temos que resgatar o enunciador e o co-enunciador, o enunciado e a enunciação, e também o que configura o não-dito, denominado “implícito” pela Análise do Discurso. No que concerne às culturas ágrafas, o lugar do enunciador é preenchido pelo indígena, cuja enunciação é marcada pelo estigma da sobrevivência. Maria do Carmo Pandolfo nos diz:
Propondo ler o mito a partir de sua estrutura, detectando sua dinâmica interna, que possibilita ultrapassar uma oposição, reconhecida como racionalmente insuperável, graças a uma ambivalência mediadora, L-S. Lévi-Strauss lhe dá a amplitude que, originalmente, possuía seu significante grego, mythos: o discurso que diz, no jogo de velar e desvelar, a humanidade do homem, que dimensiona – pela linguagem – as questões essenciais da condição humana. (PANDOLFO, 1993:51).
Sendo uma das questões essenciais da condição humana a da sobrevivência, podemos percebê-la nos mitos indígenas, quer em questões de sabedoria, de vida e de morte, quer nas relações de parentesco e de lutas tribais.
Pode-se dizer, portanto, que o discurso emblemático dos mitos indígenas é o da luta pela sobrevivência. Essa questão é uma questão física, configurada pelo enfrentamento dos grandes animais, pelo enfrentamento do mais forte contra o mais frágil. Entre os vários mitemas que constituem tais mitos prevalece o do mais frágil vencendo a força. São construções discursivas bastante simples.
Nos relatos da onça com o jaboti, com o macaco, com o veado, por exemplo, fica patente esse discurso da astúcia no qual a parte mais frágil engambela aquele que detém o poder através da inteligência. Este procedimento pode ser considerado uma construção discursiva e um mitema. Em Cobra Norato, na realização dos seus desejos, o herói busca a astúcia do companheiro tatu para vencer os perigos da floresta e o poder da Cobra-Grande. A astúcia configura o não-dito do discurso, uma vez que quem opera desta forma não vai explicitar os seus termos com o risco de perder este poder. Portanto, o discurso da tradição oral indígena é marcado por estas duas instâncias: a da luta contra a fome e a da luta contra o inimigo mais forte.
A antropomorfização dos seres da natureza cria o que chamarei aqui de enunciador abstrato, constituindo-se de certa maneira num representante da voz indígena e numa das características desse discurso oral. É um discurso que humaniza o contexto dando voz ao que é irracional ou inanimado, submetendo os atores deste percurso à lógica já explicitada. No poema boppiano, as árvores falam, os rios falam e a floresta tem uma dimensão mágica. Em
No fundo
uma lâmina rápida risca o mato
Trovãozinho roncou: já vou
vem de longe
um trovão de voz grossa resmungando
Abre um pedaço do céu.     (p. 156)
– o trovão ganha voz, portanto dimensão humana. A própria antropomorfização dos animais é um exemplo constante. Já na passagem abaixo,
– Olelé. Quem vem lá?
– Eu sou o tatu-de-bunda-seca
– Ah compadre tatu
que bom você vir aqui
Quero que você me ensine a sair desta goela podre
– Então se segure no meu rabo que eu le puxo     (p. 158)
– a exemplo dos ciclos de bichos, o tatu tem uma dimensão humana, personificada na fala e vai ser o elemento-chave para o desenredo do herói na trama. Em termos da oralidade ágrafa, temos portanto o discurso da sobrevivência, marcado por uma beleza singular e por uma força criadora que o distingue dos nossos construtos. Diante dela somos aprendizes, uma vez que, na floresta, o homem indígena luta para ser sujeito do próprio destino.
Partindo-se da noção postulada pela análise do discurso segundo a qual “dizer é fazer” (MAINGUENEAU, 1996:18) e pensando no sentido da pragmática (do grego pragma, ação), podemos acreditar que a característica básica da oralidade é ser ação, uma vez que a voz é o recurso formal de se acionar a fala.
Logo, a oralidade é também fala em ação. Quais são, pois, as estratégias dessa ação? Esta pergunta nos levará a perceber a oralidade como categoria discursiva. Quais seriam, então, as estratégias discursivas da oralidade? Segundo Maingueneau,
visto que a linguagem não é mais concebida como um meio de os locutores exprimirem seus pensamentos ou até transmitirem informações, mas antes como uma atividade que modifica uma situação, fazendo com que o outro reconheça uma intenção pragmática; visto que a enunciação é pensada como um ritual baseado em princípios de cooperação entre os participantes do processo enunciativo, a instância pertinente em matéria de discurso não será mais o enunciador, mas o par formado pelo locutor e pelo interlocutor...” (MAINGUENEAU, 1996: 19)
A partir dessa passagem podemos fazer várias ilações. Em que momento da experiência da oralidade a fala tem uma função iminentemente pragmática? Nos discursos públicos, nos sermões religiosos, por exemplo? No poema de Raul Bopp a fala só existe para referendar uma ação: a procura da filha da rainha Luzia. No seu texto, a vocação da voz personificada nos mitos para ser discurso fica clara.
Sabe-se que tanto o discurso político quanto o sermão religioso incorporam uma função pragmática. São linguagem em ação para gerar mais ação. Todas essas experiências de oralidade exigem uma colaboração mútua entre enunciador e co-enunciador, condição básica para a circulação de um discurso. E, além disso, caracterizam objetivamente a existência de um discurso, uma vez que têm a marca das estratégias da persuasão e do convencimento. No poema de Bopp, a persuasão e o convencimento são usados o tempo todo para a consecução da realização de um desejo. A famosa Canção de Rolando, que influenciou até o cordel brasileiro, é uma experiência da oralidade inscrita nas praças públicas, que visava ao convencer, entre outras coisas, quanto aos valores do cristianismo e da monarquia.
Podemos, então, dizer que uma das relações que se estabelece entre oralidade e discurso é pragmática, ou seja, a da linguagem em ação incorporando uma ação comunicada e pretendida. Uma das características mais importantes do discurso da oralidade nas narrativas indígenas brasileiras é a sua condição isotópica. Maingueneau define o conceito de isotopia discursiva nos seguintes termos:
Um conjunto de fábulas que ilustram a mesma moral contando narrativas paralelas seria um exemplo de isotopia temática única correspondente a diversas isotopias figurativas (...) (MAINGUENEAU, 1996: 54).
No caso da tradição oral indígena, os temas recorrentes abordados (a vitória do mais frágil sobre o mais forte, a astúcia, nos relatos dos ciclos da onça, do jabuti, do macaco, etc.) nos fazem pensar nessa categoria, em relação a esses discursos. Também em Cobra Norato se percebe a recorrência a esses temas: a fragilidade vencendo os perigos da floresta para a realização de um desejo. O poema se configura em plena consonância com o discurso da tradição oral indígena.
Em termos de uma reflexão mais abrangente, também no discurso religioso se pode observar uma certa isotopia temática no que diz respeito, por exemplo, ao caráter moralizante deste discurso. Já o caráter persuasivo do discurso político não pressupõe, em termos temáticos, esta categorização, mas podemos pensar, isto sim, numa mesma base pragmática. Ligar a isotopia ao discurso da oralidade é uma forma de uni-la a categorias discursivas, uma vez que tal categoria é constitutiva por excelência do discurso. Tomamos aqui o conceito de isotopia no sentido usado por Maingueneau de “mesma forma”.
Pode-se observar que, por sua própria definição, a noção de discurso implica numa certa parcela de poder. Em primeiro lugar porque é pragmática. Pensando em discurso como a parcela da linguagem que sobrevive ao texto, segundo colocações do próprio Maingueneau, cairemos fatalmente nas posições do enunciador, naquilo que sobrevive ao enunciado e se define como o espírito da comunicação. Quando se propõe como instrumento de persuasão, na busca de uma conseqüência prática, o discurso político, por exemplo, assume um certo tipo de poder que só pode ser assumido por alguém investido de uma posição, no caso, posição política. Como metáfora do desejo o poema de Raul Bopp se investe do discurso de Eros, segundo o qual o desejo existe para ser realizado. O poder é a forma que estamos usando de inter-relacionar oralidade e discurso. Mas não o poder em si e, sim, o poder como posição existencial resgatável sob a forma de linguagem. Tomamos como emblema de oralidade a tradição oral indígena, os discursos religiosos e políticos, conquanto sejam realidades diferentes.
Talvez pudéssemos relacionar ad infinitum estas categorias, mas vamos tentar escolher as interações mais pertinentes. Podemos nos esforçar para perceber quais estratégias do ato de narrar aproximam narrativa, discurso e oralidade. Pensando no caráter pragmático da linguagem flagrado na Análise do Discurso, isto é, no seu caráter de ação, podemos concluir que este ato é típico da oralidade.
Tomando o ato de narrar como constitutivo de um discurso de oralidade, podemos considerar as estratégias narrativas também como estratégias discursivas. Por estratégia narrativa, entenda-se o ardil necessário para se chegar a um objetivo comunicacional. Na poesia modernista, a coloquialidade é uma estratégia para se chegar a um falar brasileiro. Uma estratégia narrativa é o recurso, ou os recursos, que o narrador usa para tornar a sua empreitada mais eficiente. Ela pode estar no modo de narrar, na construção dos personagens, na movimentação do herói, etc.
Este jogo estratégico pode evidenciar posições, ideologias, a imanência do narrador como indivíduo social, histórico, cultural. É portanto um jogo discursivo. Podemos falar então em estratégias se pensarmos na pluralidade desses procedimentos. Tomemos como ponto de partida a estrutura básica do mito indígena. O herói se afasta do lugar de origem, passa por uma série de peripécias ajudado por um mundo mágico e volta ao lugar de origem (eterno retorno) confirmado como herói. Não haverá nesta estrutura narrativa típica da oralidade o discurso do valor da origem como elemento constitutivo da cosmogonia humana? Essa configuração narrativa é típica da mitologia indígena, evidenciando a consagração ritual da origem, na medida em que se expressa como linguagem, é construção discursiva.
O tempo das rezas, dos falares públicos também se inscreve num sentido discursivo. Não se pode imaginar um discurso político que dure três dias, como no caso da tragédia grega. Os rezares, as missas, os rituais, também são comandados pelo tempo. Não seria também o tempo uma categoria discursiva, uma vez que ele vem carregado de significação? Tempo demais pode significar cansaço, tédio, perda de memória, etc. O tempo de duração de um discurso também é discurso e, por essa maneira, a ação pragmática de falar adquire significação e eficiência até por essa categoria que à primeira vista parece tão secundária.
Outro aspecto importante da relação discurso e oralidade está, como já se disse, na dimensão do que é implícito na linguagem oral. Como se sabe, a Análise do Discurso trabalha com o não-dito da comunicação e devemos resgatar também esta faceta de algumas experiências da oralidade. É lógico que, no caso dos rezares, da linguagem religiosa, ou no caso também do discurso político, o recurso à estratégia do convencimento é implícita. Nenhum orador ou sacerdote vai a público explicitar o seu desejo de convencimento. Essa estratégia permanece no universo do não-dito e só pode ser capturada por falantes que tenham uma experiência realmente pragmática da linguagem.
Na realidade, quem quer que busque o sentido do convencimento não explicita os seus termos. Ao que parece, as canções de gesta se configuram como um tipo de exceção, na medida em que glorificavam abertamente as monarquias e o cristianismo. Na tradição oral indígena, o não-dito, categoria por excelência da experiência discursiva, pode ser resgatado pela percepção do que é imanente às isotopias temáticas ou pelo simples processamento de análise da estrutura básica dos mitos. Em termos de uma construção discursiva, o que se vê nos mitos dos ciclos de bichos é a luta da fragilidade contra a força. Vence, não o mais forte, mas o mais astuto, inteligente e algumas vezes amoral. Também assim acontece em Cobra Norato. Para vencer os perigos da floresta, os perigos representados pela Cobra Grande, Norato conta com astúcia de pequenos animais – o jaboti, o tatu, etc. No exemplo que se segue, o herói pede ao tatu que o tire de um mau lugar na floresta, nos seguintes termos:
– Olelé. Quem vem lá?
– Eu sou o tatu-de-bunda-seca
– Ah compadre tatu
que bom você vir aqui
Quero que você me ensine a sair desta goela podre
– Então se segure no meu rabo que eu le puxo     (BOPP, p. 158)
Todo o poema é um exemplo da astúcia para a vitória sobre a adversidade. Esse é um exemplo de isotopia temática nas construções discursivas do mito indígena. Estamos, no entanto, no caso da poesia, falando de uma voz imanente. A fala, por outro lado, é menos seletiva do que a escrita, uma vez que entre uma e outra não existe o momento de reflexão que precede ao ato. Logo, a categorização do implícito é perpassada pela espontaneidade deste veículo (a fala) em termos de uma menor quantidade de dissimulação. Assim sendo, o que na oralidade própria dos discursos políticos e religiosos é puro exercício de decifração, na fala torna-se uma aventura imprevista, uma vez que os termos da experiência coloquial muitas vezes ocorrem aleatoriamente. São inúmeras as vezes em que a experiência da fala não tem rumo e que se define pelo acaso. Na realidade, não estamos tratando aqui da oralidade pura, dado que vivemos mergulhados no universo da escrita.
Dentro de uma idéia de oralidade mista é que tentamos resgatar alguns aspectos da relação entre experiências discursivas e voz, salvo no caso das culturas ágrafas, também tisnadas pela escrita em face das transcrições, que podem, em termos de Brasil, nos dizer alguma coisa sobre essa relação. Antes de mais nada cumpre esclarecer que, o conceito de discurso que estou usando aqui é o de Maingueneau, transcrito nas linhas abaixo, cuja pertinência para o nosso trabalho discutirei a seguir:

Tomado em sua acepção mais ampla, aquela que ele tem precisamente na análise do discurso, esse termo designa menos um campo de investigação delimitado do que um certo modo de apreensão da linguagem: este último não é considerado aqui como uma estrutura arbitrária, mas como a atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados. (MAINGUENEAU, 1996: 43).
Estamos falando portanto de uma atividade linguageira (o relato mítico) que se inscreve num contexto determinado (o das florestas), contexto este que vai determinar os rumos dessa atividade, suas significações, seus dizeres. Trabalhei o tempo todo dentro dessa perspectiva de contexto que é até extra-lingüística, mas que determina os rumos da atividade linguageira em questão.
Já se colocou algumas linhas atrás que a relação entre enunciador e co-enunciador se estabelece com base em um tipo de cooperação. Em que termos esta experiência acontece no contexto do discurso oralizado? A primeira permissão para esse acontecimento é a de que os comunicantes aceitem o código proposto pela linguagem. Também é primordial a intenção mútua de falar e ouvir. Mas a pergunta crucial é: que tipo de cooperação mútua o discurso oralizado pressupõe?
Em primeiro lugar uma adequação dos comunicantes a seus termos. Quem são os comunicantes? Em qualquer discurso, o enunciador e o co-enunciador. Já no caso do discurso político, exige-se uma predisposição ao auto-convencimento. A mesma reflexão se pode fazer no que diz respeito ao discurso religioso. As comunicações orais normalmente são experiências de massa, que jogam o enunciador num campo de enunciação difuso, que implica diferenças de vontades e de acordos implícitos. Por isso, a diversidade tem que ser perpassada por um senso comum que una os comunicantes numa dimensão coletiva. A cooperação que se faz é baseada na força isotópica entre o enunciador e os co-enunciadores em termos, por exemplo, temáticos, ideológicos, de posturas de vida; em resumo: culturais. Esses tipos de cooperação definem a relação oralidade e discurso no circuito da comunicação. As grandes multidões que assistem às construções discursivas da religiosidade estabelecem como ponte de cooperação a idéia da fé. A experiência do discurso oralizado tende a produzir o consenso. Vejamos, também, a possibilidade de dissenso como uma forma de interrelação entre discurso e oralidade. Um exemplo disto são as pelejas do cordel, marcadas por provocação e resposta, ficando num nível bem básico. Num nível mais complexo, pode-se pensar numa multidão heterogênea. Explicitando mais, nas experiências civilizadas (congressos, parlamentos), a relação entre oralidade e dissenso é administrada de uma forma pacífica. Pressupõe-se então que, em termos de massa, o dissenso estabeleceu uma relação imprevisível entre oralidade e discurso, possibilitando situações contextuais que fogem ao escopo da linguagem. O discurso seria o avesso da cooperação nesse caso.
No que diz respeito à nossa matéria privilegiada de estudo, a relação entre o mito indígena brasileiro e a poesia de Raul Bopp, a interlocução exige uma colaboração que acumplicia os elementos da comunicação no sentido de um pacto: a negociação tácita de diferenças de níveis e registros que certamente vão alterar o curso deste entendimento. Em Cobra Norato, os mitos sofrem alterações culturais que os transformam em fato poético, gerando um entendimento diferente do que a condição de mito permitiria. É acrescida a eles uma nova condição. No que diz respeito à relação do pesquisador com o mito, o tipo de entendimento possível é imprevisível. As posturas a esse respeito são diversificadas e merecem um estudo à parte. A idéia de cooperação entre enunciador e co-enunciador é perpassada pelo intercâmbio de diferentes visões da realidade que são mutuamente afetadas neste tipo de comunicação. Do ponto de vista daquele que pesquisa, a tendência é a visualização do mito como elemento de uma realidade particular da qual ele se aproxima com respeito e reserva.
Do ponto de vista daquele que relata o mito, a coisa é mais complexa. De acordo com Mieletinski (1987:51),
o sentido mítico da unidade da vida se manifesta na orientação do homem voltada para os campos da realidade praticamente próximos dele, na unificação mágica de grupos isolados de pessoas com espécies animais.
ou seja, o que para o estruturalista é uma experiência de distanciamento crítico e de explicitação dos termos de uma cultura, para o homem da floresta é sapiência. Segundo o próprio Mieletinski, o mito é uma das primeiras formas de sapientização do homem. Assim sendo, existe nas comunidades indígenas uma grande parcela de inclusão sapiencial naquilo que para alguns é conhecimento mágico. É sabido que algumas tribos indígenas, diante da experiência do animal abatido, pedem perdão ao espírito deste animal para que a sua ira não se volte contra o caçador. Assim sendo, no que diz respeito às culturas ágrafas, a cooperação enunciador – co-enunciador exige a explicitação dos termos das diferenças em circulação para que a relação oralidade x discurso se faça de forma proveitosa.

1.4. Identidade e oralidade
Acreditando que a identidade é a marca da diferença procurarei fugir, neste tópico, de uma definição essencialista, me amparando na reflexão de Stuart Hall sobre o movimento de tradução das diferentes culturas umas nas outras, no seu modo de se relacionarem entre si. A definição sociológica de identidade, proposta por Stuart Hall (HALL, 1997), tem o mérito de, a meu ver, situar o conceito de identidade na comunidade humana, no que diz respeito à nossa condição de seres societários. A identidade se define, então, de maneira funcional, mostrando o funcionamento do relato oral no mundo societário.
Busca-se aqui uma compreensão da noção de identidade que não seja a aristotélica, baseado na idéia de algo igual a alguma coisa. A experiência tautológica que está atrás desse procedimento coloca o objeto da identidade numa situação de idêntico a si mesmo e o que estamos buscando, em termos culturais, é o estabelecimento de diferenças. A experiência da oralidade no Brasil tem várias faces. Uma diz respeito à cultura portuguesa, outra diz respeito à cultura indígena, outra diz respeito à cultura africana, além dos vários imigrantes que entraram no Brasil. Estamos buscando compreender como esses diferentes extratos culturais se relacionam. No trato com as diversas manifestações da oralidade portuguesa, observamos que tais manifestações se expressam nos termos desta cultura lusitana, desfilando problemas de reis e rainhas, do povo português na sua interrelação com o colonizado e é enriquecida por elementos da cultura africana e indígena de forma singular. O cordel brasileiro é marcado pela canção de gesta medieval e manifesta uma luta pela sobrevivência entre o par maniqueísta, representado pelas idéias da monarquia e do cristianismo, e os seus próprios termos. O primeiro cordelista brasileiro, Leandro Gomes de Barros, inspirou-se na Canção de Rolando, e expressava-se segundo as leis morais de um cavaleiresco medieval, desfilando aos nossos olhos as aventuras dos doze pares de França. Jorge Ferreira de Vasconcelos foi buscar inspiração no ciclo arturiano para elaborar os seus livrinhos. As pelejas cordelistas do começo do século vinham muitas vezes marcadas pelo maniqueísmo religioso, a ponto de considerarem as expressões da oralidade africana coisas do diabo. Acredita-se, também, como já se disse, que essa manifestação da oralidade brasileira, pelo seu lado maravilhoso, mágico, tenha tido influência do ciclo arturiano. As suas estratégias de sobrevivência podem ser flagradas em estruturas que fogem ao modelo europeu. Por exemplo, na construção do enredo, da trama e nos desfechos das propostas de desenvolvimento da narrativa. Os termos da experiência oral indígena se colocam pela diferença. Não se observa o caráter moralizante do cristianismo e, como já se disse, é uma cultura marcada pela idéia de sobrevivência.
Os mitos ritualizados nessa cultura são construídos no sentido do alinhavamento de relações societárias, no sentido do explicitamente da dinâmica da interrelação entre os diferentes (no caso, outras tribos) e no sentido da luta pela sobrevivência no espaço da floresta. Se fôssemos pensar no perfil identitário da oralidade do indígena, a palavra mais eficiente para expressar este perfil seria a que define a marca da alteridade.
A relação entre mito, culturas ágrafas, poesia e mundo letrado nos permitem algumas reflexões sobre o universo modernista.
O homem pós-moderno, fragmentado, já aparece em esboço no panteão modernista, já que estamos lidando com poesia moderna e alteridade. Segundo Stuart Hall,
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 1997: 13)
É o que podemos observar no panteão modernista que, incorporando a face da burguesia metropolitana, a face das sociedades tribais e a face do povo, chamou para si identidades contraditórias e esboçou a fissura do homem pós-moderno, que olha o mundo de vários ângulos sem se fixar em nenhum.
Com relação à cultura indígena, que serve de substrato ao poema de Raul Bopp, temos a observar que, tanto nela quanto no texto de Bopp, não se observa um caráter moralizante, como o que a nossa herança da culpa cristã nos preserva.
O mito do boto tucuxi, por exemplo, parece que foi construído para garantir o adultério. A título de informação, trata-se de uma estória na qual um peixe se transforma num belo homem e possui as mulheres na beira dos rios. O xis da questão é que as mulheres prenhas de boto não são punidas, mesmo se casadas. Assim fica garantido o adultério e também o casamento. O mito do curupira, que anda com os pés em sentido contrário, para confundir os caçadores, parece reafirmar este ensejo da defesa da sobrevivência dos seres da floresta, uma vez que o despistamento dos caçadores pode ter um sentido de preservação. Há que se ter cuidado – entretanto – com a apropriação que os círculos oficiais fazem da matéria indígena, uma vez que, conforme Mieletinski, os escritores do “Terceiro Mundo” utilizam o mito para estabilizar modelos culturais nacionais (MIELETINSKI, 1987). Esta tentativa de criar uma cultura nacional pode mascarar o que é particular, dado que, do ponto de vista das culturas em questão, o sentido de nação, de nacionalidade é perpassado por conflitos identitários e por diferenças consideráveis. Esta tentativa totalitarista de “nacionalizar” as diferenças não leva em conta os atores desse processo cultural, uma vez que eles não são consultados e nem expressam a sua voz nos seus próprios termos.


1.5. Oralidade, história e identidade
Importa aqui mostrar, sob o viés da idéia de história, o sentido do relato mítico e a sua relação com o real. Sendo guardião de uma memória coletiva, ele é também instrumento de uma história, de uma tradição e também da identidade de um povo. A história se configura aqui como um entre-lugar, em que se conectam o real e o imaginário, tal como acontece no relato mítico.
Em Maxacali, âgtux ou âktux significam ao mesmo tempo história e falar. Falar é contar história, contar história é falar. Pode-se dizer que, nesse caso, a história tem a marca identitária da oralidade. Estou considerando como marca um sinal que identifique uma coisa. Por marca identitária, entendo o sinal que identifica o fenômeno considerado. Pois bem: o ato de narrar está estritamente ligado ao que é feito para ser ouvido como um estigma de identificação. Dentro da tribo, aquele que transmite oralmente alguma coisa está construindo memória. Essa construção constitui-se em marca identitária de uma cultura, uma vez que para nós, brancos, nem sempre falar é construir memória. Pode-se dizer que o ato de narrar mitos consiste em fazer uma história do passado cultural da tribo. Junto com o imaginário, os mitos refletem todo um vivido que os perpassa. Cenas de vida real do homem indígena se misturam com o imaginário, constituindo-se nas construções narrativas dos mitos.
É interessante observar que todo o processo colonizador, que escravizou índios, com portugueses entrando nas matas para se apropriar deles e torná-los escravos, não reduziu a cultura indígena aos termos da cultura branca. Segundo Darci Ribeiro, em O Povo Brasileiro, a cultura indígena é etnicamente irredutível. Isso equivale a dizer que não se parece em nenhum sentido com a cultura branca e letrada e não se reduz a ela em sentido algum. Entretanto, em seus estudos sobre os índios Urubu Kaapor, ao resgatar a etimologia da palavra Kaapor, encontrou entre outras coisas o significado de cristão. Como, em termos de cultura brasileira, falar nesse purismo que separa os atores do nosso percurso cultural em departamentos estanques? Entretanto, pode-se dizer que toda essa luta de séculos pela sobrevivência teve como resultado a permanência dos termos, na cultura, do que é oral, do que é história e memória. Os portugueses conseguiram efetivamente aprisionar índios mas não conseguiram domar-lhes a alma e nem desfigurar a sua cultura. Um mito indígena tem um modo de ser que lhe é próprio, inalienável e contrastante com a cultura cristã. É interessante perguntar como conseguiram manter a sua marca identitária no confronto com a doutrinação e o poderio bélico dos portugueses, de forte poder de amansamento ideológico e cultural. Entender a identidade cultural dos povos indígenas é entender também as suas estratégias de sobrevivência no plano psicológico, emocional, espiritual e, sobretudo, aprender com eles uma lição de resistência. O confronto entre a vida nas missões e a vida livre na selva, segundo se conta, foi traumático e doloroso. O processo colonizador levou muitos índios ao suicídio, a simplesmente esperar a morte, como só os índios, muito misteriosamente, sabem fazer. Segundo Darcy Ribeiro, “o índio Uirá, que saiu à procura de Deus, para identificar-se ante a divindade declara eu sou de seu povo, o que come farinha”... (RIBEIRO, 1995: 271). Essa é a afirmação de uma personalidade forte, que se identifica segundo os seus próprios termos. É de se acreditar que, no que diz respeito a um sincretismo entre cultura branca e cultura indígena, aconteça a mesma coisa. Seria interessante uma pesquisa que tentasse perceber que pegadas o branco europeu pode ter deixado na cultura indígena. As estruturas narrativas da oralidade são construídas sobre temas que dizem respeito à coletividade. Os mitos são passados de avós para netos num continuum que resgata a vivência sapiencial das tribos e que mantêm viva a tradição de um conhecimento cuja função é fixar modos de ver o mundo e uma certa relação com a vida. Essa característica do mito, qual seja, a de ser reservatório sapiencial da comunidade, estabelece um diferencial com as narrativas da cultura letrada, uma vez que, sua palavra e escrita nem sempre visam a resgatar nenhum tipo de sabedoria. Segundo Uirá, “Nós somos o povo que come farinha de pau”. (RIBEIRO, 1995:271). Essa marca identitária é perpassada nos mitos pelas diferenças entre o que se come, o que se veste e o que se fala, pelas diferenças do meio ambiente e pela própria estrutura da narrativa. O confronto entre um mundo mágico, advindo do universo do imaginário, nos levaria a pensar em como o indígena se relaciona com a realidade. Essa marca identitária dos mitos, que recorre ao fantástico, me leva a crer no recurso a um certo tipo do consolo que o mundo real não traz. No mundo imaginário, podemos nos vingar daqueles que nos incomodam, podemos adquirir poderes e objetos mágicos nos momentos de perigo, podemos fazer transgressões que normalmente não faríamos no mundo real. Dentro da perspectiva aristotélica, identidade é a característica do que é idêntico a si mesmo. Esse aspecto do sentido da identidade pressupõe um modelo ao qual se presta uma subserviência e é sobretudo autoritário.
Idêntico a pressupõe esse a priori que recupera uma existência anterior. A cultura indígena não tem esse a priori. Estamos abandonando o modelo aristotélico e raciocinando por paradoxo. Resta pensar: em que consistem essas diferenças? O estudo destas diferenças demandaria uma pesquisa percuciente e exaustiva. Certamente, assim como na cultura cristã, os mitos possuem as suas denegações, as suas interdições e leis. Mas não é algo que se pareça com a culpa cristã. Outra diferença relaciona-se à luta do mais frágil contra a adversidade. A ausência do sentido essencialista de uma verdade, pode ser considerada ainda uma outra diferença. Por isso, a cultura indígena está entre as culturas não aristotélicas.
Gostaria também de fazer algumas reflexões sobre identidade e etnias. Em termos de tradição oral vivenciada em solo brasileiro, nós temos diversas tradições orais: a que vem importada de Portugal, a africana, a indígena e a do cordel. Talvez seja interessante observar os reflexos da empresa colonial na tradição oral. No cordel temos uma poesia marcada pela presença de príncipes e princesas, pela defesa renhida dos valores do cristianismo influenciando os elementos da cultura africana e indígena. O cordel é o espaço por excelência desse drama histórico da convivência forçada de etnias completamente diferentes. Algumas vezes, na sua proposta ideológica, na sua estrutura narrativa, observa-se a sobrevivência cultural dos termos do dominado. É o caso, por exemplo, de uma situação, na qual, o herói salvador da princesa, sertanejo valente, devia entregá-la ao príncipe, dono e proprietário da prenda e esse herói, fugindo da lógica do cavaleiresco medieval, mata o príncipe e fica com a princesa para ele. É a sobrevivência do herói popular na estruturação da narrativa. O cordel é, por excelência, uma manifestação brasileira deste cavaleiresco medieval marcado pela defesa das monarquias e do cristianismo.
Sílvio Romero, importante compilador da tradição oral dos séculos XVIII e XIX, assinala na sua obra toda a crise de identidade que nos marca em face das etnias que nos compõem. Em alguns momentos defende uma produção cultural mestiça; em outros, advoga a superioridade do branco europeu como elemento civilizador. Senão vejamos:
Bem se compreende que nesta inquirição devem ficar fora do quadro o português nato, o negro da costa e o índio selvagem, que existem atualmente no país, porque não são brasileiros e sim estrangeiros. O genuíno nacional é o descendente destas origens. (ROMERO, 1977:33)
Como podemos ver, o mestiço é considerado o genuinamente brasileiro. Em termos da tradição da oralidade compilada por Sílvio Romero, nota-se a defesa da concepção de uma produção mestiça. No entanto, o mesmo Sílvio Romero nos diz:
Incontestavelmente o português é o agente mais robusto de nossa vida espiritual. Devemos-lhe as crenças religiosas, as instituições civis e políticas, a língua e o contato com a civilização européia. Na poesia popular a sua superioridade, como contribuinte, é portanto, incontestável. (ROMERO, 1977:196)
Sílvio Romero considera o indígena fatalmente destinado à extinção devido à sua fraqueza intrínseca, como evidencia a passagem a seguir:
De tudo que havemos dito é fácil tirar a conclusão. Das três raças que constituíram a atual população brasileira, a que um rastro mais profundo deixou foi por certo a branca, segue-se a negra e depois a indígena. A medida, porém que a ação direta das duas últimas tende a diminuir com o internamento do selvagem e a extinção do tráfico dos negros, a influência européia tende a crescer, com a imigração e pela natural tendência a prevalecer o mais forte e o mais hábil. (ROMERO, 1977:231).
A posição de Sílvio Romero, citado aqui por causa da sua importância como compilador da nossa tradição oral, como crítico e pesquisador, é marcada por essa noção de identidade que garante a superioridade cultural do branco europeu, sem que possamos saber exatamente qual é a causa desta superioridade, deste predomínio. Na tradição oral portuguesa trazida para o Brasil, percebe-se, na relação entre texto e contexto, essa pretensão de superioridade, além de um forte conservadorismo religioso e do preconceito racial.
Pode-se perceber que um dos caminhos para se configurar o problema da identidade cultural é saber analisar as relações que a história estabelece. Uma definição ontológica, essencialista, pode sempre ser refutada, porque se impõe sempre como verdade absoluta e são várias as “verdades”.
É fato que o que não pode ser refutado não é ciência, é dogma. O que nos leva a fugir dessa metafísica da linguagem que envolve as questões do ser. A pergunta então não se resume a algo como – o que é identidade? – mas a como a noção de identidade pode ser percebida nas relações que a histórica estabelece. Assim sendo, podemos perguntar: qual é o lugar da experiência da oralidade na história humana? Sabemos que a fala é transporte por excelência da voz, uma vez que emerge do silêncio. Tudo o que antecede ou sucede à voz não interessa. Assim sendo, no momento mesmo em que a voz emerge, em qualquer lugar, o que era desconhecimento se torna factível. Esse o lugar da voz na história humana. O lugar da voz nas relações históricas das etnias brasileiras ocupa o espaço da reverberação do esquecimento. Histórias esquecidas em beiras de estradas, em curvas de caminhos, em torno de fogueiras, nas florestas conduzem a voz brasileira através dos mitos, dos casos, dos contos populares, onde quer que haja pessoas conversando, pesquisadores, seres humanos. E essas vozes, melhor seria dizer, entram em interlocução, ora pela cooptação conseguida pelo elemento dominador, ora pelo conflito. É claro também que existe todo um bailado de acordos culturais implícitos ou explícitos que delimitam a flutuação dessa voz.
Para se compreender como se foi forjando a nossa identidade cultural e a sua relação com a experiência da oralidade, talvez seja interessante fazer uma passagem pelo olhar do estrangeiro sobre nós. É da maior relevância explicitar os termos desse outro que nos observa e analisar seus parâmetros e suas definições. Na realidade, essa oralidade pode ser definida de diversos modos. Somos esse outro para o estrangeiro que nos cerca. Somos vários outros perfilados na fricção das nossas diferenças, nos nossos ajustes e acordos culturais. Vejamos o que nos diz Gardner, por exemplo, a respeito dos brasileiros, na cidade do Rio de Janeiro do século XIX:
Grande desejo dos habitantes da cidade parece o de dar-se ares europeus, o que até certo ponto já acontece, em parte pelo influxo dos próprios europeus, em parte pelos muitos brasileiros que têm visitado a Europa para se educarem ou para outros fins. (GARDNER, 1975: 21)
Pelo que se observa nessa passagem, a tendência no Rio de Janeiro era a de imitação de padrões europeus. Na tradição oral, no cordel, como já se disse, observa-se uma assimilação cultural de valores da monarquia e do cristianismo. É interessante refletir nas razões que tornaram a cultura indígena irredutível a outros termos que não aos seus próprios. Ao que parece, a tradição oral africana também manteve os seus próprios termos, mas essas expressões culturais, no contato com o cordel, sofreram reajustes, foram observadas de ângulos os mais diversos, desde os mais preconceituosos aos mais pessoais e é de se supor que o cordel seja uma das expressões mais flexíveis do nosso perfil identitário em termos de produção oral. Cobra Norato é um exemplo de excelência dessa flexibilidade, uma vez que manipula e reelabora de maneira extremamente libertária a tradição oral indígena. E isto se pensarmos que tudo o que é feito em função de se alcançar o nível da poesia, liberta o ser humano, pelo menos dos parâmetros do previsível, do comum. A poesia é o universo do extraordinário, mesmo nas suas manifestações mais singulares. Ao manipular mitos, Cobra Norato inventa linguagem e constrói o universo da liberdade, uma vez que recria estes mitos presentificando-os aos nossos olhos de maneira nova e introduzindo-os no mundo letrado. Vejamos alguma coisa mais do olhar desse estrangeiro sobre nós:
Muitos dos que no Brasil se intitulam brancos não merecem esse nome, porque bem poucas das famílias de longa data estabelecidas no país, têm preservado a pureza original. (GARDNER, 1975: 23)
Ao observar a realidade do mestiçamento brasileiro, Gardner veicula, entretanto, a noção de uma pureza original que em termos de cultura também é impensável. O poema de Raul Bopp, por exemplo, mistura falares e códigos culturais de uma forma nem sempre previsível. Ao lado de uma linguagem regionalista, temos casos de um falar culto e urbano. A própria transformação de uma tradição oral numa experiência escrita é um exemplo desta mistura de códigos a que estou me referindo. No entanto a idéia de uma pureza original sobrevive como uma sombra nos nossos arquétipos, em razão do olhar desse estrangeiro cristão e metafísico que nos colonizou a ferro e fogo.
Vejamos algumas percepções desse olhar sobre os africanos e os indígenas:
Os caetés do litoral pernambucano sempre estes selvagens, que habitam o litoral entre a margem direita do rio São Francisco e a esquerda do Paraíba, viveram em dissensão com os portugueses. Também travaram uma constante e cruel guerra, em terra e no mar, contra os pitaguaras, degolando-se e devorando-se mutuamente... (ESCHWEGE, 1996: 239)
Segue-se uma descrição de batalhas com outros povos. Sem compreender a lógica indígena, é como se o autor estivesse querendo nos dizer que o índio brasileiro é um caso perdido em termos de sobrevivência, devido à sua autofagia. É o caso de pensarmos no sem número de contradições que a civilização contemporânea cala para permanecer intocável. Compreender a lógica guerreira é uma possibilidade distante para o bom europeu, que se considera um cavalheiro escolhido por Deus e pela vida para desfrutar de superioridade moral e econômica.
Situar o homem indígena na história brasileira, e o olhar do estrangeiro que o configura, é dar informações contextuais sobre o que foi o século XIX a esse respeito e perceber o salto que a literatura modernista deu contra preconceitos arraigados e seculares.
Para melhor compreender Cobra Norato, foi necessário essa reflexão sobre o século XIX, exatamente para se perceber o salto que a literatura modernista deu em relação ao passado. Em relação a questões identitárias que marcaram o século XX, vamos nos deparar com um complexo concerto de vozes que trouxeram algumas mudanças no enfoque da questão.
O discurso pós-colonial deslocou os parâmetros de raça e meio, na configuração das diferenças, para os parâmetros da cultura. Assim, no poema de Raul Bopp o que interessa são as diferentes formas de expressão cultural que perpassam o poema.

1.6. Aspectos formais da oralidade
Por aspectos formais da oralidade estou entendendo a dimensão material da fala. Ou seja: as características que definem o poema como coisa para ser ouvida. No caso de Cobra Norato, trata-se de recursos da oralidade da língua portuguesa o que estabelece uma certa dificuldade para saber de que natureza é a oralidade do relato mítico indígena. Apesar da menção aos diminutivos tão comuns no nhengatu, estamos lidando com língua portuguesa. Por essa razão, a dimensão culturalista desse trabalho fica evidente, uma vez que estamos trabalhando com expressivas diferenças culturais. Por isso mesmo são importantíssimos os conceitos de “tradução” e de “negociação” de Hall e Bhabha, respectivamente, para situarmos os processos que estamos flagrando.
Os aspectos formais da oralidade dizem respeito aos traços materiais da linguagem que apontam para essa direção. Podemos considerar que o que remete à fala tem a vocação do que é feito para ser ouvido. Tentarei por isso mesmo capturar os sinais da fala na poesia de Raul Bopp. A presença da oralidade em Cobra Norato constitui uma espécie de designação. Por designação da fala entendo o fato de o poema fazer referências à voz em exemplos que darei ao longo do percurso. O poema boppiano é marcado pelo discurso direto, característico da fala, e são várias as situações em que diálogos inteiros podem ser transcritos.
Vejamos alguns exemplos do que estou chamando de designação da fala. O poema começa nos seguintes termos:
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.     (p. 148)1
É bem conhecida a expressão, “um dia eu te conto ...”. Típica das situações da fala nas quais se delega o ato de contar uma estória para um futuro próximo. No caso em questão, o poema já começa direto na narrativa guardando, no entanto, esta similitude com o refrão típico da oralidade corrente. No dizer de Augusto Massi, o poema é uma polifonia, um mutirão de vozes! Em
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa.    (p. 148)
o poema já começa com a designação de uma conversa em voz baixa. A mesma designação prossegue em:
“Galhinhos fazem psiu”     (p. 151)
ou em
No fundo uma lamina rápida risca o mato
Trovãozinho roncou: já vou
Vem de longe
Um Trovão de voz grossa resmungando
Abre um pedaço do céu.     (p. 156)
Em todas estas situações estamos vendo uma referência à voz, que estou chamando de designação.
A referência constante à essa voz, imanente nos mitos e na própria oralidade do poema, nos faz acreditar que, mesmo que não tenha sido escrito para este fim, o poema tem a vocação do que deve ser falado, do que pode ser usado como recitação. O poema é cheio também de refrões que lembram também as mnemonias e as parlendas da tradição oral portuguesa. Essas construções visam a tornar perenes na memória as informações da fala ritmada dos refrões da nossa infância. Quem não se lembra de falas como:
Amanhã é domingo
Pé de cachimbo
Galo monteiro ........
Pisou n’areia
Ou de falas como:
Bão – ba – la – lão
Senhor capitão
Espada na cinta
Ginete na mão
Os refrões de Cobra Norato parecem ter sido feitos para provocar uma fixação da fala na memória do ouvinte. As parlendas são chamadas pelos portugueses de Lenga-Lengas. Mnemonias, como o próprio nome indica, são refrões que intercalam os ditos com a utilidade de fazer com que estes ditos sejam lembrados. Os refrões dão um ritmo ao trabalho dialógico, colocando o poema numa ambiência de magia. A magia dos cantos de roda, das parlendas, das mnemonias. Vejamos alguns deles:
– Vamos aproveitar a força da enchente
– Pois se agarre neste pau de balsa
Maré cheia Maré baixa
Onda que vai Onda que vem
Coração na beira d’água
Tem maré baixa também
– Aquela polpa de mato está me puxando os olhos
– Então navegue pra lá, compadre.    (p. 173, grifos meus)
Além do caráter dialógico destes versos, o que nos remete à fala, temos intercalada nela uma parlenda, ou Lenga-Lenga como dizem os portugueses. Segundo Câmara Cascudo,
As parlendas, ou Lenga-Lengas, são fórmulas literárias tradicionais, rimadas pelos toantes, conservando-se na lembrança infantil pelo ritmo fácil e corrente. (CASCUDO, 1978:58)
Os versos que começam por “Maré cheia Maré baixa ...” têm o efeito das parlendas pelo menos no que diz respeito à ritmação e rima de motivos aparentemente fortuitos que se fixam na memória pela sua simplicidade. Temos vários exemplos de refrões que nos remetem ao que é feito para ser falado. Entre outros:
Vamos lá pro Putirum
Putirum Putirum
Vamos lá roubar tapioca
Putirum Putirum     (p. 175)
Por que podemos dizer que o refrão é feito para ser falado? Numa primeira reflexão sim, porque a tradição oral é repleta de refrões e esta é uma razão para se supor que tenham origem na fala. Mas há um razão mais primária que me parece mais plausível. Nas rondas infantis, a repetição sistemática de um verso chama a atenção para a ação que se quer enfatizar. Assim, vemos o refrão matatira, para o Rio Grande do Norte e mando-tiro-tiro-lá estudado por João Ribeiro, no qual se inicia um pedido de casamento pelo pretendente, e a mãe das candidatas pergunta que ofício pretende dar à filha. Depois de sucessivas recusas aceita um deles:
Bom dia, meu senhorio,
Mando-Tiro-Tiro-Lá ... (bisa dois versos)
– O que é que você quer?
Mando-Tiro-Tiro-Lá (bis)
– Quero uma de vossas filhas
Mando-Tiro-Tiro-Lá (bis)
– Escolhei a que quiserdes
Mando-Tiro-Tiro-Lá (bis)
– Quero a menina fulana
Mando-Tiro-Tiro-Lá
– Que ofício dá a ela?
Mando-Tiro-Tiro-Lá
– Dou o ofício de bordar,
Mando-Tiro-Tiro-Lá
– Este ofício não me agrada
Mando-Tiro-Tiro-Lá
– Dou o ofício de pintar, etc.     (CASCUDO, 1978:55)
A transcrição destes versos tem como única intenção demonstrar a importância do refrão, nas rondas e a sua origem eminentemente oral. Vejamos mais alguns exemplos em Cobra Norato:
Angelim folha miúda
que foi que te entristeceu?
Tarumã

Flor de titi murchou logo
Nas margens do igarapé
Tarumã
Na areia não deixou nome
O rastro o vento levou
Tarumã.     (p. 177)
A repetição da palavra “Tarumã”, sistematicamente, tem a força de um refrão. Vejamos mais alguns casos:
– Puxe mais um chorado na viola, compadre
– Mano, espermente um golinho de cachaça
ardosa pra tomar sustança.
Tajá da folha comprida
não pia perto de mim
Tajá
Quando anoitece na serra
Tenho medo que ela se vá
Tajá
Já tem noite nos seus olhos
de não-te-lembras-mais-de-mim
Tajá
Ai serra do Adeus-Maria
não leva o meu bem pra lá
Tajá
Tajá que traz mau agoiro
não pia perto de mim
Tajá.         (p. 178)

E mais um outro:
Vou tomar Tacacá quente
Tico-tico já voltou
Foi no mato cortar lenha
Urumutum Urumutum

Pica-pau bate que bate
Já bateu meu coração
Bateu bico toda a noite
Urumutum Urumutum
– Esse decumê tá ficando bom
– Passe a cuité com farinha pra gente
Pimenta pegou fogo na boca
– Então desentupa a goela com tiquira
Urumutum Urumutum     (p. 179)
Além dos refrões esses versos tem também um pouco de mnemonias. Uma vez que são estruturados de maneira infantil um pouco sem nexo, tendo como costura apenas o estrato fônico que garante a memória pelo ritmo. Estou considerando os refrões marcas formais de oralidade, já que existe uma interrelação entre as rondas e os refrões.
É da maior importância observar, também, que o português veiculado em Cobra Norato é o português falado pelo povo nas suas criações lingüísticas, nas suas usanças, visto que o autor percorreu a Amazônia e fez uso, além da linguagem amazonense, de verbos no diminutivo, que são encontradiços no Norte e no Nordeste e têm uma caráter afetivo. Exemplificam os versos abaixo:
Quero levar minha noiva
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar
Com porta azul piquinininha
pintada a lápis de cor

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém
Querzinho de ficar junto
Quando a gente quer bem bem.     (p. 191)
Observe-se o uso de “piquinininha”, índice de oralidade, no lugar de pequenininha; e de “estarzinho” e “querzinho”, verbos no diminutivo. Vejamos outros exemplos que podem ser considerados índices de oralidade.
Em
Putirum fica longe?
Pouquinho só chega lá     (p. 179 – grifo meu)
toda a frase destacada tem a marca do que é oral. Este “pouquinho só” tão usado nas nossas conversas, típico das designações do tempo, é uma das marcas. Acompanhado deste “chega lá”, em lugar de, chegamos lá, também figura no contexto para demarcar o universo da fala. Em
– Joaninha Vintém conte um causo
– Causo de que?
– Qualquer um
– Vou contar causo de Boto
Putirum Putirum     (p. 175)
Observamos a palavra “causo”, tão usada na fala popular mineira, em lugar de caso. Quem nunca ouviu falar nos famosos causos mineiros à beira de fogão de lenha? Em “Tava lavando roupa maninha quando boto me pegou” (p. 176) o verbo estar é substituído pelo seu uso popular. Vejamos mais alguns exemplos:
– Puxe mais um chorado na viola, compadre
– Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança.
– Então abram roda.     (p. 178)
Esse “espermente” típico do dialeto caipira é bem uma marca expressiva da oralidade do poema. Seguido de “um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança” comunica toda uma oralidade típica dos dialetos caipiras. Já em “– Esse decumê tá ficando bom” (p. 179), observe-se a graça do vocábulo “decumê”, no português culto, preposição mais verbo transformado dentro do contexto em substantivo. Tem toda uma graça de uso popular, de fala caipira.
É interessante observar que os diálogos algumas vezes são narrativos, outras vezes expressam situações que estão sendo vividas naquele momento e, nesse sentido, são expressões genuínas da fala, uma vez que a voz é o suporte do que se vive no momento em que se fala. Observem-se alguns exemplos:
– Quem é que vem?
– Vem vindo um trem:
Maria fumaça: passa passa passa
O mato se acorda     (p. 184)
A voz aí é suporte do que acontece no momento em que se fala. Algumas vezes a oralidade é colocada a serviço da narrativa, como em:
– Escuta, compadre
O que se vê não é navio. É a Cobra Grande.
– Mas o casco de prata? As velas embojadas de vento?
Aquilo é a Cobra Grande
Quando começa a Lua cheia ela aparece
Vem buscar moça que ainda não conheceu homem.     (p. 185)
Vê-se toda a atitude da fala desdobrada em narrativa. As situações em que os diálogos aparecem sob a forma de motes ou de charadas, são típicas da oralidade. Vejamos pelo menos um exemplo:
– Abre-te vento
que eu te dou um vintém queimado
Preciso passar depressa
Antes que a Lua se afunde no mato
– Então passa, meu neto.     (p. 186)
A questão teórica que se impõe, decorrente da análise do poema, é que veicula-se uma oralidade que diz respeito à língua portuguesa. A mudança de registro lingüístico altera o tipo de oralidade subjacente ao texto literário. Não podemos saber que valor emocional teriam esses mitos retrabalhados no poema, nas próprias línguas indígenas. Como estamos lidando com o conceito de hibridismo cultural não devemos pressupor nenhuma escolha hierárquica que privilegie essa ou aquela cultura. Mas o fato é que o problema só pode ser visto pelos nossos olhos de brancos e letrados, uma vez que não sabemos como ele se equacionaria nos termos da cultura indígena.
Em síntese, podemos dizer que as estruturas de parlendas, mnemonias e refrões conferem ao poema uma ambiência de oralidade própria da língua portuguesa e fica difícil saber como essa oralidade aconteceu nos termos da cultura indígena.
Resta perguntar: qual o lugar da oralidade no movimento modernista. Sabe-se que Oswald e Mário buscaram o falar urbano, das metrópoles, mas o que se buscava não era o português culto e, sim, a “contribuição milionária de todos os erros...”
Segundo Lígia Averbuk, as parlendas são o material privilegiado de expressão da oralidade em Raul Bopp e se caracterizam pela ausência de sentido lógico e pela predominância do ritmo, como já se disse. Ela nos diz:
Ao adotar as parlendas, despojando as palavras de seu conteúdo imediato, o poeta devolve a essas fórmulas versificadas seu valor puramente acústico, abrindo-se o texto para as conotações líricas e mágicas das sonoridades quase puras, lembrança daquela definição de poesia que é ‘hesitação entre som e sentido’. (Valéry) (AVERBUK, 1985:106)
O refrão, tanto nas parlendas quanto nas rondas, tem a força de presentificar o verso na memória e funciona de uma forma mnemônica uma vez que, quando correlacionado com as palavras que o precedem, tornam essas palavras mais recordáveis. As rondas, parlendas e mnemonias se confundem no seu sentido original na medida em que essas expressões de oralidade são marcadas pelo jogo infantil, pelo lúdico, pela predominância do ritmo sobre o sentido.
As mnemonias, por exemplo, são recursos que a fala versificada usa para ativar a memória sobre o que é dito. Ora, tudo o que é estruturado sobre um ritmo torna-se mais fácil de ser lembrado. Em termos do caráter oral do poema de Raul Bopp, cumpre lembrar também que o perfil de poema, construído para lembrar a linguagem infantil, aproxima-o da fala. Nada mais próximo da oralidade do que a linguagem das crianças. O poema é todo envolvido pela magia do ritmo. Segundo Lígia Averbuk,

Um dos melhores exemplos de caráter ritmico-encantatório, realizado pelo processo de reiteração no poema, está nos versos iniciais que, criando uma monótona cadeia melódica, assumem a função mágica de envolver o leitor e transportá-lo para o mundo da fantasia: ‘– vou andando caminhando caminhando’. (AVERBUK, 1985:107)
Como já se disse, a estrutura dialogada do poema acentua ainda mais a sua característica de experiência da oralidade. Lígia Averbuk nos diz mais:
Do ponto de vista da própria linha do poema, é curioso registrar, ainda, a existência da estrutura dialogada em uma grande parte dos versos (...). A par das conseqüências que este processo terá, em relação à forma lingüística como traço de oralidade, este fato assinala mais uma característica do poema ‘enquanto relato para criança’. (AVERBUK, 1985:107)
Ainda sobre esta feição infantil do poema, podemos fazer ilações sobre a sua vocação para a oralidade. Este modo de escrever aparece na utilização dos diminutivos que, quando aplicados aos verbos, denuncia a fala regional do norte e do nordeste, mas, com relação aos substantivos, nos entremostra a aproximação da linguagem infantil. Assim sendo, nas expressões “a noite chega mansinho”, “garcinha branca voou voou” e “sol parece um espelhinho”, os diminutivos aparecem para dar um caráter infantil à linguagem. Tudo o que vem da linguagem infantil tem o apelo da oralidade. Nesta época da vida humana, o que é da fala tem preponderância sobre o que é da escrita e é bem conhecida a criatividade verbal das crianças.
Lígia Averbuk anota:
Ao se fazer como poesia para criança, ‘conto’ infantil Cobra Norato, recolhendo os sonhos e as imagens eletivas, atingiu as intocadas ‘formas sagradas’ do comportamento, raízes do mito. (AVERBUK, 1985:109)
Ao se propor como forma infantil, Cobra Norato se aproximou a um só tempo das narrativas orais populares, da fala da criança e do mito. A se propor como narrativa de viagem em primeira pessoa, o poema une as funções da épica e da lírica. “Realizando-se como forma híbrida (entre lírica e épica), Cobra Norato, por sua múltipla natureza temática, de caráter popular e folclórico, se aproximaria antes da rapsódia”. (AVERBUK, 1985:98). O seu caráter de narrativa de história sagrada (portanto épico), unido ao seu fundo mítico (lírico), configuram esse hibridismo.

1.7. O tempo da oralidade
Flagrar o tempo da oralidade é perseguir a marca que a distingue da escrita. Espero que esta distinção fique clara na medida em que se explicita o caráter circular desse tempo, em confronto com a linearidade da escrita. Paradoxalmente encontrei alguns pontos de contato entre o tempo na oralidade e o tempo na experiência da poesia, em face da dimensão oral da mesma. Isto serve para mostrar que não se pode, em termos de uma experiência cultural, estabelecer polaridades binárias e maniqueístas. O tempo da oralidade pode ser também o tempo da poesia.
Pensar uma categoria abstrata, como o tempo, é correr o risco de filosofar arbitrariamente. Para ligar a noção de tempo à noção de oralidade de uma forma eficiente vou pensar, como sempre tenho feito, na dimensão cultural da voz. Interessa-me aqui o tempo nas culturas ágrafas, sobretudo no relato mítico. Segundo Pierre Lévy,
A forma canônica do tempo nas sociedades sem escrita é o círculo. Evidentemente, isto não significa que não haja qualquer consciência de sucessão ou irreversibilidade nas culturas orais. Além do mais, especulações importantes sobre o caráter cíclico do tempo ocorreram em civilizações que possuíam a escrita, como na Índia ou na Grécia Antiga. Queremos apenas enfatizar aqui que um certo tipo de circularidade cronológica é secretada pelos atos de comunicação que ocorrem majoritariamente nas sociedades orais primárias. (LÉVY, 1996: 83)
A circularidade do tempo oral refere-se à repetição cíclica de informações transmitidas pelas narrativas. Talvez se possa dizer que a literatura participe um pouco desse tempo cíclico. A poesia, por exemplo, vem e volta como informação estética a partir do momento em que sua presença é renovada pela leitura. O próprio estudo da literatura pressupõe a retomada de tempos considerados distantes que são presentificados pelo estudo.
No que diz respeito ao texto escrito, entretanto, temos que capturar os sinais, as pegadas desse tempo no interior do próprio texto. Com relação à circularidade do tempo do mito, Benedito Nunes nos diz:
A rigor não há um tempo mítico, porque o mito, história sagrada do cosmos, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão temporal. O que quer que o mito narre, ele sempre conta o que se produziu num tempo único que ele mesmo instaura, e no qual aquilo que uma vez aconteceu continua se produzindo. Toda vez que é narrado. (NUNES, 1988:66)
Ou seja, a repetição do narrado instaura uma paralisia no tempo que se expressa pela repetição. Uma repetição sem fim, que se propõe ad infinitum na consciência do narratário. Cobra Norato, na sua busca das terras do sem fim, parece contrapor à experiência do sempre na oralidade essa mesma infinitude. O sem fim do poema de Raul Bopp propõe um lugar que se repete na consciência da mesma maneira que o mito faz retornar às nossas mentes as mesmas informações que a tradição da narrativa insere.
Com relação ao tempo da oralidade, a experiência de Raul Bopp transmite uma influência perturbadora na circularidade do relato oral, um vez que remaneja as informações desses mitos e as transfigura, alocando as suas funções de outra maneira.
Todavia, essas informações aparecem no poema, mudadas de lugar e de função, mas aparecem. As funções do tipo ajuda de pequenos animais da floresta são criações do poema que têm uma mera semelhança com essas mesmas funções nos relatos mítico dos ciclos de bicho. Aparecem no poema transfiguradas, mas mantêm-se no poema a mesma circularidade dos relatos orais. Pode-se dizer que, em termos de tempo, Cobra Norato tem a face transfigurada da oralidade detendo assim a sua marca, o seu sinal. Segundo Lévy, nas culturas ágrafas,
qualquer proposição que não seja periodicamente retomada está condenada a desaparecer. Não existe nenhum modo de armazenar as representações verbais para futura reutilização. A transmissão, a passagem do tempo supõem portanto um incessante movimento de recomeço, de reiteração. Ritos e mitos são retidos, quase intocados, pela roda das gerações. (LÉVY, 1996: 83)
O que é retido sobrevive como sombra, sinal, pegada, entremostrando a repetição pelas entrelinhas na obra poética. Segundo o mesmo Lévy:
O tempo da oralidade primária é também o devir, um devir sem marcas nem vestígios. As coisas mudam, as técnicas transformam-se insensivelmente, as narrativas se alteram ao sabor das circunstâncias, pois a transmissão também é sempre recriação, mas ninguém sabe medir essas derivas por falta de ponto fixo. (LÉVY, 1996: 84)
Por essa razão não temos como rastrear por quais transformações esses relatos passaram até serem transcritos e as próprias diferenças entre uma transcrição e outra denunciam essa flexibilidade. Podemos acreditar que a poesia de Raul Bopp se propõe como uma parcela desse devir, uma vez que apresenta uma face que repete a tradição narrativa e outra que a transfigura, nos fazendo entrever uma outra faceta da mesma oralidade.


1.8. O narrador oral
Ao especificar a figura do narrador oral, espero poder demarcar o território da oralidade, dando a perceber de que maneira o narrador de Cobra Norato se aproxima do mundo da narração falada.
Esta comparação visa a resgatar as pegadas da oralidade no mundo da poesia de Raul Bopp e aproximar a escrita da fala de uma forma a se configurar o hibridismo cultural que estou tentando demonstrar na experiência brasileira. Cobra Norato tem muito de narrador oral.
O narrador do relato mítico narra o vivido e o imaginado. Essas duas categorias se mesclam numa só experiência de onisciência que se traduz no conhecimento prévio dos fatos narrados. É, entretanto, um narrador que repete estórias ouvidas e é de se supor uma narração dessas estórias que, como já disse Pierre Lévy, se perde no percurso, dado que é impossível capturar essas recriações. O narrador da oralidade é portanto o narrador de um devir, de algo que se inscreve num tempo futuro. O narrador da oralidade tem, a meu ver, a função de um guardião da fala. No momento em que se dispõe a falar, contando histórias das comunidades em que está inscrito, ritualiza o ato da fala. Ritualizando, reinveste esse ato de um valor quase sagrado que faz dele, narrador, um iniciador da palavra oral nas sociedades tribais.
A fala vale pelos rezares, pelos discursos, nas sociedades tribais. É de se imaginar se não tenha ritmos e sons específicos e, se assim for, o narrador ganhará também uma dimensão performática. O narrador oral é também um ausente da ação narrada uma vez que é, no mais das vezes, um mero instrumento de repetição. A ritualização da palavra pressupõe ouvintes e uma atitude cooperativa. Pode-se dizer que o narratário (aquele que ouve a narração) é um co-narrador que perpetuará a tradição narrada. O narrador da oralidade é, portanto, um perpetuador da fala, porquanto repassa o que ouviu e é também um mestre de narradores, uma vez que transforma ouvintes em contadores de um relato. Trata-se de um onisciente ausente que reproduz o que a fala articulou, tendo como única cumplicidade a sua própria fé no que é ouvido. É portanto um transmissor de fé, de crenças, de convicções e funciona como um arquivo da memória coletiva. Apesar de ser uma mesma narrativa, as variantes de um mesmo mito denunciam variações cujo fluxo não pode ser capturado. É impossível saber a partir de que momento e de que narrador determinado mito começou a mudar na sua estrutura. Logo, o narrador oral é a síntese de uma cadeia de várias narrações que ele evidencia e mascara, repetindo e mudando.
O que permanece, entretanto, tem sido substrato de uma tradição, algumas vezes até popular, que se mantém com poucas modificações em sua estrutura. O narrador oral não se distancia do vivido, uma vez que é esse vivido que serve de substrato ao relato. Esse narrador, no ato de narrar, delega a outrem a sua experiência sob forma de estória, criando assim uma rede de informações. Essa rede de informações se universaliza nas sociedades tribais, não apenas sob a forma experiencial mas, no mais das vezes, como sapiência. O imaginário que perpassa esses relatos também se mantém e é de se supor uma certa permanência na série de relatos das mesmas informações. Mesmo que não esteja presente no momento do acontecimento dos fatos, o narrador oral perpetua o vivido e o imaginário de um outro que lhe delega poderes de comunicação. Também o imaginário é tomado aqui pelo narrador como coisa vivida. Quando digo que o narrador oral é um onisciente ausente refiro-me ao fato de que ele tem conhecimento prévio de todas as ações do herói e de todos os demais atores do percurso narrativo mas, no mais das vezes, ele não experienciou ou mesmo presenciou o vivido contido no relato. É uma onisciência que se explicita pela ausência. O narrador delega a outrem a transmissão da sua experiência ou é, por sua vez, um delegado. Essa realidade investe o narrador oral da condição de um porta-voz da fala.
Em Cobra Norato, o herói vai narrando a sua experiência de passagem, algumas vezes quando a protagoniza, algumas vezes quando a testemunha. Ao mencionar mitos populares da cultura indígena, é também um delegado de outros relatos. Ao transfigurar esses relatos, no entanto, transtorna essa delegação assumindo o devir que o fato poético incorpora ao ser instrumento de transformação.
O imaginário do relato mítico, que adere ao narrador sob a forma do narrado, muitas vezes está ligado a circunstâncias que evidenciam a necessidade de se obter alimentos, de se resgatar grupos inteiros, à sobrevivência, em suma. Esse narrador é, através da experiência vivida e do relato do imaginário, o repositório das necessidades vitais dos grupos tribais, que se expressam freqüentemente sob a forma do relato mítico.
Como arquivo de uma série de relatos, depositário do imaginário e do vivido de um grupo, esse narrador, no caso da cultura indígena, indica os caminhos da sobrevivência para as sociedades tribais, tomando como exemplo o que aconteceu no passado. O mito não deixa de ser uma permanente rememoração e o narrador do mito tem também a função de articulador de uma memória. Como articulador de uma memória, de um imaginário, de um vivido, não apresenta o caráter performático que os artistas contemporâneos da narração têm.
Sobre a narrativa nos diz Benjamim:
Tudo isso esclarece a natureza verdadeira da narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos (BENJAMIM, 1996: 200)
Essa dimensão utilitária aparece no narrador do mito uma vez que ficam patentes os caminhos dos heróis para conseguir vencer as adversidades da floresta, quer seja vencendo os grandes animais, quer seja conseguindo caças, quer seja conseguindo a ajuda dos espíritos do mato.
A tradição oral muda de tribo para a tribo e um trabalho que contemplasse todas essas narrativas demoraria anos. Isso talvez se deva, em hipótese, a seu caráter mais ou menos utilitário. Segundo Benjamim: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.” (BENJAMIN, 1996: 198). Ou seja, a base da experiência da narração é o vivido. Ainda segundo Benjamim, “...entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. (BENJAMIN, 1996: 198).
Privilegia-se portanto a narrativa oral. Muita coisa se perde do narrado quando se a transpõe para a escrita. Como já disse nesse trabalho, perde-se em expressão, gestual, entonação, em uma série de fatores vívidos que só a fala transmite. Mas a graça da oralidade conferiu um colorido novo à poesia de Raul Bopp e reinvestiu essa poesia de encanto e de um sabor que talvez uma experiência erudita não tivesse – o do mundo mágico da narração oral.


1.9. O sentido da tradição no universo da oralidade
A tradição se define neste contexto como memória cultural. Não como perpetuação do mesmo. Por essa razão não pode ser considerada apenas uma experiência conservadora. Trata-se do resgate de uma lembrança permanente. A lembrança do que as nossas raízes culturais nos dizem. Todavia, os fatos culturais dialogam-se entre si e seria interessante postular uma tradição móvel, em permanente mudança. Nos dizeres de Marques “o verbo tradire remete à relação com o conhecimento oral e escrito, o que implica que, através da tradição, algo é dito e esse dito passa de geração a geração”. (MARQUES 1998: 101). Continuando com o mesmo Marques,
“aqui vemos a dimensão discursiva da tradição: algo é enunciado, dito. E se se trata, pois, de passar algo, a tradição é precisamente esse movimento de passagem em que algo é transmitido e recebido. Mas é um movimento não só de continuidades e semelhanças, como também de descontinuidades e diferenças, visto que no processo de recepção, a geração que recebe o dito o faz de forma ativa, ou seja, há um complexo trabalho de assimilação e transformação dos discursos da tradição. Desse modo, a tradição pode ser vista como vestígio, traço do que se esvai, do que morre, do que silencia. Mas traço vivo do que se transforma em memória e persiste no presente, no hoje, interrogando o que é e o que será”. (MARQUES, 1998: 102)
Uma questão que me vem à cabeça no que diz respeito ao sentido da tradição no universo da oralidade consiste em saber se a terminologia usada nos meios científicos e letrados faz sentido para a compreensão do relato mítico. Sobretudo o mito indígena. O termo ‘tradição’ é usado para reflexões que dizem respeito, sobretudo, à literatura européia e circula como elemento de reflexão nos meios acadêmicos. Com relação aos mitos indígenas, o que dizer a esse respeito? Se pensarmos que a tradição oral indígena é a repetição de mitos sem nenhuma alteração estaremos nos esquecendo das variantes. Tentando adaptar a terminologia acadêmica à cultura indígena o parâmetro que encontrei foi o de considerar “tradição” a repetição de um mesmo mito através dos tempos, tal como acontece nos mitos mais populares. Por ruptura, passo a considerar as variantes. Talvez, segundo a terminologia de Marques, o melhor seria falar em continuidade e descontinuidade. A idéia de continuidade e de descontinuidade nos remete também à noção de história. Se considerar a história como uma série contínua, podemos falar em continuidade. Se pensarmos na história como uma série de rupturas, podemos falar em descontinuidade. Mas, através da leitura de Lévi-Strauss, pude perceber que mesmo as variantes dos mitos servem para reafirmar uma série de valores culturais que se repetem sistematicamente. Quer seja a passagem do uso do alimento cru ao alimento cozido, quer seja a descoberta do fogo, quer seja a descoberta das estações. Em suma, as variantes, nos mitos, servem para reafirmar valores ligados à sobrevivência e podem figurar no que se diz ser a tradição. Segundo Lévi-Strauss.
... um mito que se transforma ao passar de tribo em tribo, finalmente se extenua sem no entanto desaparecer. Duas vias permanecem ainda livres: a da elaboração romanesca, e a do reemprego para fins de legitimação histórica. Por seu turno esta história pode ser de dois tipos: retrospectiva, para fundamentar uma ordem tradicional sobre um longínquo passado; ou prospectiva, para fazer deste passado o esboço de um futuro que começa a se desenhar. (LÉVI-STRAUSS in NASCIMENTO, 1977:103)
Em outras palavras, a repetição aponta para a tradição e a variação para a mudança. Ao tirar a noção de cultura do lugar que atribui à cultura a condição de mercadoria (“A cultura é alguma coisa que a gente tem”) (BOSI in NOVAES, 1983:35) e jogá-la no lugar do trabalho, ou seja, ao atribuir à cultura uma condição ergótica, Alfredo Bosi nos oferece parâmetros para compreender o mito. Na cultura indígena, tudo o que se narra tem a função de relacionar o homem ao seu meio, quer seja para lutar no sentido da sobrevivência, quer seja para expressar formas de trabalho. A cultura indígena, que não pressupõe o uso de termos tão acadêmicos para expressá-la, não pode ser compreendida como mercadoria e os seus processos de continuidade e descontinuidade estão ligados ao trabalho na luta pela sobrevivência. Desse modo, as variações e rupturas que se observam visam à compreensão da evolução nos modos de sobrevivência.







II. MITO E ORALIDADE




Mito é voz carregada de sentido, parafraseando Ezra Pound em sua definição sobre literatura. Segundo Paul Zumthor, a voz em si não tem sentido algum. Daí a inferência de que é somente no contato com o sujeito que essa voz adquire sentido. No caso de um mito, a oralidade subjacente a ele é a sua marca primordial. Os caminhos dessa voz são marcados pela tensão permanente entre natureza e cultura, como nos mostra Lévi-Strauss em O Cru e o Cuzido, e essa tensão é uma marca das coisas faladas, uma vez que a voz é o atributo privilegiado da natureza. Vem das entranhas para se transformar em significação nos mitos. É provável até que esta tensão entre natureza e cultura se dê em razão desse fato. No nosso caso em questão, o do relato mítico indígena, a tríade mito – voz – natureza fica mais forte na medida em que esse relato é perpassado o tempo todo pela relação do homem com a floresta. Devemos pensar que, no caso do relato mítico indígena, a sua relação primeira é com a voz, instrumento privilegiado para a sua transmissão. Alguns problemas serão levantados ao longo desse trabalho, principalmente no que diz respeito à apreensão total do significado, no relato mítico, uma vez que, em se tratando de voz, muita coisa se perdeu em termos de entonação, alterações fônicas motivadas pela emoção, pausas, enfim, uma série de fenômenos próprios da voz, que ficam perdidos na ausência do falante.
Outra coisa diretamente ligada à relação entre oralidade e mito diz respeito à língua em que este mito é transmitido. Em se tratando de relatos indígenas é claro que, na transcrição, a passagem das línguas indígenas ao português implica perda do sentido de referência desses mitos. Aqui estabelece-se mais uma relação entre oralidade e mito: são sempre transmitidos por línguas nativas. Os significados que a voz transmite aos relatos só podem ser capturados pelos pesquisadores modernos, que usam gravadores. A fita magnética é uma forma de perpetuação desse relato no tempo e, dependendo da eficiência da tecnologia, pode até permitir um bom cotejo de variantes através dos tempos e resgatar o que a escrita deita a perder. Em alguns mitos compilados por Claude Lévi-Strauss, fica clara a significação cultural e vital do som, uma vez que a emissão ou a não emissão de ruídos pelo herói pode significar vida ou morte. Em um dos relatos, se o herói mastigasse a comida, fazendo ruído, poderia irritar a mulher da onça e ser morto por ela. Já se vê que, para o homem indígena, o som tem sentido e, voltando à nossa primeira definição, podemos reafirmar: mito é voz (oralidade) carregada de sentido. Aliás, nos mitos indígenas, tudo é carregado de sentido: a voz, os cheiros, o que se vê, o que se sente, enfim, tudo. Talvez seja interessante estabelecer as relações entre esse sentido e essa voz. Quando o homem indígena senta-se no seio de sua comunidade e começa os seus relatos, está fazendo um inventário sapiencial de sua tribo. O mito nos remete às estruturas genealógicas, às vestimentas, à alimentação, à história e à realidade das tribos. É uma voz a serviços da perpetuação do imaginário e do vivido, sendo que um e outro podem ser resgatados na tenção entre natureza e cultura, como muito bem percebeu Lévi-Strauss. A voz das florestas transforma em imaginário o vivido e o vivido no relato mítico, numa permuta mágica que nos garante surpresas e encantamento permanentes. A voz empresta aos mitos a explicação das origens, desde a simples origem do rabo de um animal às estrelas, e é o único instrumento que as culturas ágrafas têm como forma de se perpetuar, repetindo ad infinitum as suas narrativas, com elementos de permanência e variação advindos do tempo e das diferenças entre essas comunidades. É de se supor que essas permanências e essas variações sejam estratégias de sobrevivência grupais que garantam a perpetuação de certos conhecimentos, quer seja sobre a caça, quer seja sobre a agricultura, no sentido de uma cosmogonia, do mantenimento do equilíbrio entre os grupos.
No que diz respeito à relação entre mito e oralidade, podemos dizer que existe uma cultura da oralidade que tem como categoria central o mito. Essa cultura se opõe à cultura letrada no sentido de não ocupar os espaços privilegiados de manifestação cultural e de viver mais ou menos à margem de uma cultura dita oficial e hegemônica. Esta marginalidade faz com que os seus pesquisadores não tenham o que ensinar nos currículos oficiais.
Dentro das universidades existe pouco espaço para o complexo mundo das culturas ágrafas, uma vez que o que se privilegia é o conhecimento dos que tiveram acesso à escrita, portanto, à cultura letrada. Podemos definir cultura como um complexo de atitudes que vão desde o modo como se arruma uma cama às estratégias narrativas de um povo. No concernente à parcela da cultura indígena com a qual estamos lidando, consideramos essas estratégias e a sua relação com o mundo letrado. Mas não podemos esquecer que a cultura indígena deveria fazer parte dos bancos de dados acadêmicos não como curiosidade ou como instrumento de análise, mas como valor.
Pode-se, finalizando, dizer que voz e mito se unem para perpetuar culturas que, se não tivessem reunido esses dois elementos, talvez já tivessem desaparecido.

2.1. Apropriação e tradução do modelo mítico
O remanejamento do relato mítico percebido nas transcrições está aqui sendo considerado um trabalho de tradução cultural. Stuart Hall (HALL, 1997) usa esse conceito ao falar da diáspora neo-colonial, querendo significar as transformações na sua forma de expressão que as diferentes manifestações culturais sofrem ao se relacionarem umas com as outras. Ao ser traduzido em poesia o relato mítico ganha uma nova função: a função estética. Pelo fato de serem duas coisas diferentes (o relato mítico e a poesia), considero que essa experiência produz um híbrido que fica entre a poesia e o mito.
Ao se apropriar do relato mítico através da literatura, a cultura letrada incorpora essas narrativas ao corpus de um autor. A partir de então essas narrativas ficam sob a égide de uma autoria que não é mais a do narrador do mito. A não ser quando apropriada por alguém pertencente ao mundo letrado, a matéria mítica não é considerada como algo de valor artístico, mas sim como alguma coisa que tem valor antropológico, etnográfico. Muito haveria que se discutir a esse respeito. Até mesmo sobre o sentido da arte. A partir do momento que o mito incorpora na sua linguagem procedimentos metafóricos, aproxima-se da literatura.
Viu-se em Cobra Norato como o autor transfigura o relato mítico em função da experiência estética. Descartamos desde já a possibilidade de defendermos um purismo que pode dar lugar a perspectivas etnocêntricas e autoritárias. Mas, a partir do momento em que os mitos populares, em termos de autoria, são identificados apenas pelas suas tribos, não fica difícil pensarmos de uma forma individualista uma questão que é coletiva? O que, para a cultura indígena, é propriedade coletiva passa, na cultura branca e letrada, para a mão de uns poucos privilegiados. O homem de letras recebe todas as glórias advindas do manuseio desse farto material e se vê inscrito em movimentos literários que transformam a sua produção em história.
As tribos indígenas têm os seus poetas, os chamados Bayás. Se considerarmos o lugar do relato mítico como um lugar alternativo, podemos estar construindo o espaço da segregação se pensarmos que a alternativa pode ser algo que se constrói à margem.
Sabemos que as culturas latino-americanas, subjugadas, têm sido enfocadas sob o prisma da idéia de exotismo, tanto por uma direita mercantilista que se apropria dos seus produtos para lucrar, quanto por uma esquerda dogmática.
É interessante observar a força que as culturas subalternizadas têm no mundo letrado, sobretudo no modernismo, como sinal daquele hibridismo que alguns autores modernos identificam. Podemos dizer que, em lugar da negação dialética, pura e simples, que deixa intacto o lugar do dominador, vemos uma interferência que subverte as termos dessa relação através da mistura de códigos. Quando usa os valores da cultura indígena, Raul Bopp coloca em crise os valores da sua brancura e desloca as culturas dos seus lugares de segregação. O resultado é algo que não é nem a tradição branca, letrada, nem a cultura indígena propriamente dita, mas um híbrido que coloca este produto cultural no lugar intercambiável da negociação. Esta negociação talvez venha a consubstanciar transformações expressivas na correlação de forças que determina a configuração cultural contemporânea. Mas o mundo que advirá do produto dessas negociações ainda é apenas imaginável. Como supor uma negociação entre o imaginário indígena e a poesia brasileira sem nos perguntarmos, por exemplo, se é a poesia que traduz o mito ou o mito que traduz a poesia? Quanto de poesia existe no mito ou quanto do mito existe na poesia? A transfiguração do mito na poesia de Raul Bopp certamente altera a sua face e, mudando os termos da alternativa, podemos considerar esse fato como expressão da força da cultura subalternizada. O deslocamento dos dados deixa a sua marca pela ausência. A sua apropriação transfigurada nos faz pensar, como em um negativo de fotografia, na expressividade da cultura indígena, que resiste até a reaproveitamentos, levando à estesia. Podemos pensar também na operação narcísica levada a efeito por Raul Bopp, adequando a matéria em questão aos seus termos. Mas esta operação se esvanece em perda na medida e no momento em que o poeta lida com a diferença, com alteridade. Numa escala que vai da negação total dessa outridade que a cultura indígena representa à afirmação pura e simples da mesma, percebe-se no poema uma coisa que Homi Bhabha (BHABHA 1998: 187) chamaria de indecidibilidade, ou seja, uma suspensão dos termos das polaridades e um rearranjo das diferenças que, no caso, gerou um produto híbrido. Nem indígenas nem brancos, os mitos transfigurados funcionam como alimento do fato poético e como combustível da experiência estética. Desindianizados no contato com a língua portuguesa, reindianizados no fato poético, se pensarmos na semelhança entre os procedimentos da poesia e os procedimentos do mito. Acredito até que seja possível demonstrar como o processo de metaforização no mito é semelhante ao da poesia. Cumpre demonstrar, entretanto, que tipo de oralidade é observável na poesia de Raul Bopp, nos termos da língua portuguesa. Acredito ser tão simplesmente a oralidade da fala.
Na realidade, o objetivo primordial deste trabalho é demonstrar o que há de intercambiável entre essa voz imanente ao poema e a cultura letrada. Se, no poema, os mitos se transformam numa outra coisa, cabe a pergunta: que produto é esse? Pode-se advogar também por uma deseuropeização, se pensarmos no percurso da poesia modernista. Este entre-lugar, que não é nem indígena nem europeu, é o lugar do poema de Raul Bopp. Esse entre-lugar é o lugar da permuta, da negociação de valores culturais como diria Homi Bhabha, que produz os híbridos culturais.
Poderíamos pensar no poema de Bopp como o espaço da sobrevivência dessa voz ancestral que ecoou nas matas brasileiras? A pensarmos na escolha dos poetas modernistas, sim. Mas se não são os mitos indígenas originários, nem é da cultura indígena que estamos falando, talvez possamos considerar esta poesia como o lugar da indecidibilidade de que tanto fala Homi Bhabha, lugar esse que expressa as relações, por exemplo, entre colonizadores e colonizados. Se pensarmos que o relato da oralidade sobrevive na poesia de língua portuguesa em função da experiência estética, podemos pensar na estética como embaixadora dessa voz anônima. O problema mais sério, a meu ver, é que se trata da nossa estética. Esse estado de tensão cultural, de indecidibilidade, nos dá tempo de reflexão. Como pensar numa lógica das relações interculturais? Assumir um raciocínio essencialista, que afirme valores em caráter absoluto, seria negar espaço ao conflito, à contradição que permeia o intercurso entre o que é erudito e o que é popular, o que é oral e o que é escrito. Talvez, o caminho seja apagar estas polaridades e ver como essas coisas se mesclam. A alteridade absoluta resulta, também, numa deificação de todo improdutiva para nosso objeto de estudo. O espaço das aldeias indígenas também é o espaço da segregação, uma vez que demarcar terras é estabelecer o lugar do possível e o lugar do proibido.
A meu ver, o problema mais sério no intercurso cultural entre brancos e índios, é o fato de considerarmos a cultura indígena como curiosidade. É interessante observar o percurso dessa cultura, não como curiosidade, mas como valor, no poema de Raul Bopp. Valor que serve de substrato à experiência da estesia. A face transfigurada do mito nos mostra esta narrativa usada como valor operante, em lugar de objeto fossilizado de estudo. Este valor toma um caráter dinâmico, que movimenta um valor cultural transformando-o, e pressupõe, pelo menos, que a atitude diante desse valor não foi a indiferença. Talvez devamos nos perguntar qual seja a lógica desta mobilização e como ela aconteceu em todo o modernismo. É certo que o modernismo não se dedicou às culturas ágrafas o tempo todo, mas se pensarmos, por exemplo, em Macunaíma, encontraremos uma boa fonte de dinamização das culturas e do folclore popular. Mas pensando na questão da indecidibilidade, que nos coloca em estado de suspensão quando se trata do intercurso entre os diferentes, não devemos nos esquecer de que esses conflitos não foram ainda resolvidos. Não se sabe que rumo a história vai tomar. Talvez este seja um raciocínio que operacionalize uma estratégia de sobrevivência das partes, através do que Homi Bhabha chama de negociação e que eu já mencionei algumas linhas atrás. Os estereótipos criados em torno das culturas subalternizadas talvez nos levem a demorar algum tempo em perceber a dimensão real dos problemas. Mas no meio do povo, as diferenças se mesclam e encontram caminhos imprevisíveis. Talvez, um estudo das diferenças culturais em conflito, com o objetivo de se explicitar a natureza dessas diferenças, fosse útil para se esboçarem hipóteses sobre o tipo de negociações possíveis neste intercurso cultural. Outra questão diz respeito ao acesso a esses bens culturais, que, sabe-se, é possibilidade de uma minoria. Assim sendo, a estética modernista mobilizou bens simbólicos de base para uns poucos iniciados. Segundo Lafetá,
Há uma contradição aparente no fato de a arte moderna, implicando todas aquelas ligações com a sociedade industrial, ter sido patrocinada e estimulada por fração da burguesia rural. O paradoxo, todavia, fica ao menos parcialmente resolvido se atentarmos para a divisão de classes no Brasil na década de 20; apesar da insuficiência de estudos a esse respeito, parece hoje confirmado que, além das relações de produção no campo paulista já terem caráter nitidamente capitalista por essa época, uma importante fração da burguesia industrial provém da burguesia rural, bem como grande parte dos capitais que permitiram o processo de industrialização. Daí não haver, de fato, nada de espantoso em que uma fração da burguesia rural assuma a arte moderna contra a estética “passadista”, “oficializada”, nos jornais do governo e na academia. (LAFETÁ, 1974:14)
Como se vê, o modernismo foi também um projeto da grande burguesia.
Voltando entretanto às nossas reflexões, a integração entre cultura letrada e cultura ágrafa não pode ser produto de uma imposição que determine os caminhos e os gostos sem uma pergunta crucial: o que pensam os atores do percurso? A impressão que dá é que, no espaço da poesia, esta relação se dá fora da história, como as obras de arte num museu. Advoguei a intermediação da estética como elemento mediador das diferenças. Mas mesmo a estética não pode ser um jogo de possibilidades que se inscreve fora do espaço e do tempo, como entidade metafísica que se basta a si mesmo.
Cobra Norato não é uma obra marginal do modernismo brasileiro e encontrou um lugar de bastante dignidade no panteão antropofagista. Todavia, refletir sobre o sentido das diferenças culturais que estão fundidas na experiência única do poema é uma questão de responsabilidade cultural. Tornar os mitos indígenas nossos amigos íntimos não deve passar pelo esquecimento dos embates que marcam o intercurso cultural entre brancos e índios e nem pelo esvaziamento do sentido da responsabilidade que reside na apropriação dos bens culturais de outrem em proveito de quem quer que seja. Podemos estabelecer pelo menos um parâmetro de diferenciação. O que tem o sentido de história e memória cultural para as sociedades tribais nos está sendo repassado como experiência estética, da melhor qualidade, diga-se de passagem. Segundo Canclini,
Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. Nestes territórios a identidade é posta em cena, celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos.” (CANCLINI, 1997: 190)
Se, o sentido tradicional de identidade (aquilo que é idêntico a) já foi descartado do nosso trabalho como manobra tautológica, pelo menos o que é intercambiável pode ser resgatado como face traduzida das culturas em questão. Então, usando uma formulação de Stuart Hall, o que vemos em Cobra Norato é a face traduzida da cultura indígena.

2.2. Mitos amazônicos em Cobra Norato
Ao lidar com os mitos amazônicos e seu tratamento em Cobra Norato, cabe introduzir aqui o conceito de transfiguração da voz. Esse conceito visa a mostrar o remanejamento, feito na poesia de Raul Bopp, dos mitos transcritos. Considero esse procedimento a base da experiência estética do poema e o que lhe garante mesmo a sua qualidade. O mito é antes de tudo uma voz que se transmite através da fala. Os elementos estruturais do mito só são perceptíveis através de um mergulho na sua dimensão simbólica. A sua fabulação, longe de ater-se a si mesma nos leva à elementos da cultura, tais como, a descoberta do fogo (reflexão básica de O Cru e o Cuzido, de Lévi-Strauss) a descoberta da colheita, da agricultura, enfim, de uma série de coisas pertinentes à construção da possibilidade de vida. Em Cobra Norato, o poeta transfigurou esses elementos deslocando-os das suas funções básicas e transformando-os em fato estético. Todavia, Cobra Norato é uma rapsódia da vida, uma vez que resgata, através da poética do desejo, a cosmogonia da cópula.
Como já disse, trata-se do travestimento de um personagem em cobra e da perseguição que esse personagem faz ao objeto desejado. Em Cobra Norato, ou Honorato, percebe-se a presença de vários mitos compilados por Lévi-Strauss em O Cru e o Cuzido sobre filhos de cobra. Normalmente, nesses mitos uma mulher indígena é emprenhada por uma cobra e pare um filho cobra. Esses filhos são bons e ajudam nas colheitas. Cobra Norato, vai retomar o ciclo das mulheres possuídas por cobra, tentando emprenhar a filha da rainha Luzia. No caso do poema, é a lógica do desejo transfigurando a função básica desses filhos de cobra nos mitos de referência.
A fim de perceber quais as transformações estruturais que os mitos usados em Cobra Norato sofreram em relação às transcrições, tentarei demonstrar, nesta parte, o que estou chamando de transfiguração da voz. Transfiguração, dado que os mitos são figuras de linguagem, constituem pequenas metáforas. Transfiguração da voz porque são oriundos da oralidade.
Em Cobra Norato, Raul Bopp se apropria de vários mitos e os reelabora, desvestindo-os da sua feição original e reestruturando-os na experiência estética. O primeiro mito que aí aparece configurado em forma nova é o da Cobra Norato. Desse mito Câmara Cascudo apresenta o seguinte relato:

Cobra Norato. Uma das Lendas mais conhecidas no extremo norte brasileiro, Amazonas e Pará. Uma mulher indígena tomava banho no Paraná do Cachoeri, entre o rio Amazonas e o rio Trombetas, município de O’bidos, Pará, quando foi engravidada pela Cobra Grande. Nasceram um menino e uma menina, que a mãe, a conselho do pajé, atirou ao rio, onde se criaram, transformados em cobras-d’água. O menino, Honorato, Norato era bom e Maria má, virando embarcações, matando náufragos, perseguindo animais. Mordeu a Cobra de O’bidos e esta, estremecendo, abriu uma rachadura na praça da cidade. Norato foi obrigado a matar a irmã para viver sossegado. À noite, a Cobra Norato desencantava-se, tornando-se rapaz alto e bonito, indo dançar nas festas próximas ao rio. Na margem ficava o couro da cobra, imenso e aterrorizador, mas inofensivo. Se alguém deitasse um pouco de leite na boca da cobra imóvel e desse uma cutilada na cabeça, que merejasse sangue, acabar-se-ia a penitência e Honorato voltaria a ser um rapaz. Ninguém tinha coragem; mas um soldado em Cametá, no rio Tocantins, cumpriu as exigências e Honorato desencantou-se. (CASCUDO, 1993: 234)
No texto de Raul Bopp, o irmão bom, Cobra Norato, sofre um sacrifício ritual e vai servir de pele ao herói do poema no seu desejo de possuir a filha da rainha Luzia. Contrariamente à situação do mito transcrito, em Raul Bopp é o bom irmão que é sacrificado para servir de instrumento aos desígnios amorosos do herói. O que era uma metáfora do bem e do mal se transforma em metáfora do desejo, transfigurando a voz em uma outra coisa.
Nos mitos de origem indígena, as situações de vida e de morte aparecem para dar lugar a transformações que visam a resgatar uma cosmogonia mantenedora da sobrevivência de uma raça, ou de um grupo.
Em Cobra Norato, Raul Bopp manipula um sacrifício que bem pode ser considerado um sacrifício ritual, à semelhança de um mito. Mito é narrativa sagrada e rito é ação sagrada. Há algo de sagrado no percurso desse desejo que enfoca a ação do poema. Portanto, o poema tem uma dimensão mítica.
No poema boppiano, o princípio feminino como encarnação do mal é remanejado e o que resta é um desejo, restaurador de uma cosmogonia, como nos mitos de origem. Aparecem também, no poema, referências às Lendas do Curupira, da Cobra-Grande, da Matinta-Pereira, além de uma referência aos ciclos do jabuti e do tatu, todos eles mergulhados na ação ritual de propiciar uma cópula entre o herói que estrangula a Cobra Norato e veste sua pele, e a filha da rainha Luzia.
Por isso se disse do deslocamento do sacrifício ritual em relação ao mito transcrito. Esse deslocamento, no entanto, recupera o mito transcrito uma vez que, nele Norato é um rapaz encantado em cobra exatamente como no mito de referência. Faremos referência a todas essas lendas e ciclos, no sentido de especificar o seu lugar e o seu tratamento no texto de Bopp. Logo nas primeiras páginas, observa-se uma função típica das narrativas populares nas quais, para se alcançar a princesa, o herói tem que passar por vários perigos:
– Agora sim
Vou ver a filha da rainha Luzia
Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré
– Eu só quero a filha da rainha Luzia

Tem que entregar a sombra para o Bicho-do-Fundo
Tem que fazer mirongas na Lua nova
Tem que beber três gotas de sangue      (p. 149)
O autor faz menção ao Bicho-do-Fundo, ou Caruana, ou Companheiro do Fundo. No dizer de José Coutinho de Oliveira, são
Gênios que vivem no fundo dos rios e são chamados a auxiliar os pajés nas suas práticas fetichistas. Bichos do Fundo. Chermont deriva do caru-ana tupi, sem explicar a significação. Parece-nos que a terminação ana seja contração de anga-ang-anana, espírito e caru uma aliteração de caru, bom. As caruanas são tidas, ou são tidos os caruanas, como espíritos benfazejos. Os pajés os invocam para curar os pacientes, livrá-los de embaraços, de feitiços, etc. (OLIVEIRA, 1951:237)

Temos também a seguinte variante:
Companheiro do Fundo
Entre os sobrenaturais que se acredita habitar o fundo dos rios e dos igarapés ou dos poções, estão os Companheiros do Fundo, também chamados Caruanis. Habitam um reino encantado, espécie de mundo submerso. O reino é descrito à semelhança de uma cidade, com ruas e casas, mas onde tudo brilha como se revestido de ouro. Os habitantes desse reino do fundo dos rios têm semelhança com criaturas humanas! Sua pele é muito alva e os cabelos louros. Alimentam-se de uma comida especial que, se provada pelos habitantes deste mundo, os transforma em encantados que jamais retornam do reino. Os Companheiros do Fundo agem como espíritos familiares dos pajés ou curadores. A concepção desses companheiros é algo de vago para o leigo. Alguns acreditam que sejam os botos, considerados extremamente malignos. Outros distinguem entre Companheiros e botos, classificando estes últimos em uma categoria especial de seres encantados. Uma ou outra concepção lhes atribui realidade, existência. No primeiro caso, as criaturas tomam a forma de boto, mas, no fundo, têm a semelhança de humanos. (GALVÃO, 1955:92)
No imaginário popular, o Companheiro do Fundo aparece marcado pela ambivalência. Tanto pode ser benéfico, ajudando os pajés nas curas, quanto podem vir associados às figuras dos botos, considerados extremamente maléficos. No poema, o companheiro-do-fundo tem que ser vencido, tal e qual os monstros e gigantes que aparecem no cordel, para que o herói se aproprie de sua prenda.
Essa transformação do bem em mal, e vice-versa, aparece em todo o poema e nos diz o tempo todo que a criação literária tem leis próprias, que nem sempre são redutíveis ao imaginário popular. Pensando em termos de natureza e cultura, pode-se perceber que, o que no imaginário popular é uma conversão de natureza em cultura, uma vez que os bichos-do-fundo são instrumentos de cura, o que pressupõe uma prática da ciência indígena, é também a mesma coisa no poema, porquanto na narrativa oral popular a interdição de acesso à mulher pode muito bem ser uma supervaloração dessa mulher como valor de troca. No caso em questão, é a cultura que interdita a natureza disciplinando o acesso a esse bem (a mulher), para garantir assim a sobrevivência do grupo.
Observe-se o trecho a seguir:
Atravessei o Treme Treme
Passei na casa do Minhocão
Deixei minha sombra para o Bicho-do-Fundo
Só por causa da filha da rainha Luzia    (p. 160)
Na mitologia popular, o Minhocão é uma variante da serpente, espécie de cobra gigantesca, como a Boiúna, que atravessa o rio São Francisco “e varando léguas e léguas, por baixo da terra, indo solapar cidades e desmoronar casas,” (CASCUDO, 1972:579), deixando um rastro de destruição. É uma variante da Boiúna, só não aparecendo como o navio iluminado. Aparece transfigurada no poema como um elemento sem periculosidade, evidenciando o mesmo tipo de deslocamento que se observa em todo o poema, de negativo em positivo e vice-versa.
A familiaridade que se tem com “casa do Minhocão” desveste completamente este ser da sua aura trágica, transfigurando a voz popular numa outra coisa, que funciona dentro do poema a serviço de uma cosmogonia. Observando como o positivo e o negativo são transfigurados, para figurarem renovados a serviço de uma experiência estética, podemos refletir um pouco sobre como mito e poesia se relacionam no texto de Raul Bopp. Esta conversão do que é trágico em mágico, da natureza em cultura, pode nos levar a concluir que a experiência estética é uma experiência de alteridade em relação à matéria cultural que reelabora e possui os seus próprios meios de veicular esta matéria. Gostaria de propor aqui a seguinte questão: não seria a experiência estética um meio de se camuflar conflitos e de se construir um mundo à parte? Não estou propondo aqui uma polarização tão absoluta entre as formas em circulação, no caso, mito e poesia, que impeça que uma aja sobre a outra. O mundo contemporâneo pressupõe não apenas o intercâmbio de diferenças, mas transformações recíprocas em conseqüência desse intercâmbio.
No caso em questão, a poesia transfigura o mito, o conto, a lenda popular em função da experiência estética. São diferentes formas de se lidar com o imaginário que se encontram numa experiência de desvestimento recíproco dos parâmetros que lhe são próprios e na resultante de uma outra linguagem, que visa ao encantamento e à magia da arte. Para Lévi-Strauss, muito mais do que uma explicação do mundo, o mito é uma configuração da condição humana neste mundo.
Nas narrativas dos ciclos de bicho, observa-se um tom amoral quando se tem que atingir objetivos. Vale a usurpação, vale a mentira, todos os recursos para se alcançarem os objetivos previstos. A palavra de ordem é a burla. Sobretudo do mais forte. Vejamos como isto ocorre em Cobra Norato:
– Compadre, eu já estou com fome
Vamos lá pro Putirum roubar farinha?
– Putirum fica longe?
– Pouquinho só chega lá
Vamos lá pro Putirum
Putirum Putirum
Pode-se observar o caráter amoral da empreitada. Em alguns momentos a obra tem uma atitude que parafraseia pari-passu a cultura popular. Em outras situações, entretanto, vivemos a experiência de uma voz transfigurada em função da experiência estética, ou seja, os mitos aparecem com os seus elementos deslocados e com as suas funções transformadas. Já esclareci de início o que estou chamando aqui de transfiguração da voz. Vejamos como aparece a lenda do boto nesta obra:

– Joaninha Vintém conte um causo
– Causo de que?
– Qualquer um
– Vou contar causo do Boto
Putirum Putirum
Amor chovia
Chuveriscou
Tava lavando roupa maninha
quando boto me pegou

– Ó Joaninha Vintém
Boto era feio ou não?
– Ai era um moço loiro, maninha
Tocador de violão

Me pegou pela cintura ...
– Depois o que aconteceu?
– Gente
Olhe a tapioca embolando nos tachos
– Mas que Boto safado!
Putirum Putirum      (p. 176)
Na passagem transcrita a lenda aparece tal como nos é apresentada pelos pesquisadores que transcreveram esse mito. O boto é um peixe-homem que possui as mulheres na beira dos rios. Nos ciclos transcritos de bichos, normalmente o que é animal se humaniza. Em Cobra Norato, dá-se a mesma coisa:
A festa parece animada, compadre
– Vamos virar gente pra entrar?
– Então vamos
– Boa noite
– Bua-nuite    (p. 177)
A partir dessa metamorfose do animal em humano e do humano em animal, podemos fazer algumas reflexões sobre a relação Natureza-Cultura. O estado de Natureza pressupõe a ausência de regras, ao passo que o estado de Cultura já é aquele que prevê a existência de regras mantenedoras da sobrevivência dos grupos humanos. Em “Onça chegou saltou entrou no corpo do Pajé” (p. 181), percebe-se um movimento no sentido do estado de Natureza. É o homem superando as limitação humanas e adquirindo a força da onça, das feras. Pode-se perceber também na obra uma atividade criadora que inventa mitos, como no trecho abaixo:
Mestre Paricá chama os doentes de sezão
de inchaço no ventre espinhela caída
– Só quem sabe curar isso é a Mãe do lago
– Quem entende de inchaço é o Urubu-Tinga.     (p. 181)
Na realidade, não existe na mitologia indígena nem africana brasileira um tal Mestre Paricá, mas, por aproximação, sabendo que se dá o nome de mestre aos guias que incorporam os médiuns e que paricá é o nome de uma erva curadora, pode-se supor a criação de uma entidade benévola com o poder de cura. A menção, no poema, à Mãe-do-Lago, refere-se provavelmente à Mãe-d’água. O Pajé, como se sabe, é uma espécie de feiticeiro indígena. O mito Boiúna parece ter originado um ciclo mítico que envolve a Cobra-Grande e o mito do aparecimento da noite. A esse respeito afirma Câmara Cascudo:
Boiúna. M boi, cobra, una preta, Alfredo da Mata (Vocabulário Amazonense): ‘cobra escura, a Mãe-d’água, de tanto destaque no folclore amazonense por transformar-se em as mais disparatadas figuras: navios, vapores, canoas ... Ela engole pessoas. Tal é o rebojo e cachoeiras que faz, quando atravessa o rio, e o ruído produzido, que tanto recorda o efeito da hélice de um vapor. Os olhos quando fora d’água semelham-se a dois grandes archotes, a desnortear até o navegante. Os acontecimentos os mais inverossímeis são atribuídos à boiúna’. (CASCUDO, 1993: 132)
Vejamos como o mito da cobra aparece reconfigurado em Cobra Norato:
– Escuta, compadre
O que se vê não é navio. É a Cobra Grande
– Mas o casco de prata? As velas embojadas de vento?
– Aquilo é a Cobra Grande
Quando começa a Lua cheia ela aparece
Vem buscar moça que ainda não conheceu homem     (p. 185)
Observa-se nesse passo a transformação da moça casadoira, filha da Cobra Grande, em “moça que ainda não conheceu homem”. Nas transcrições conhecidas, a filha da Cobra Grande é oferecida como noiva. O mito que dá nome ao poema, não aparece. Só a figura do personagem principal nos remete a ele. A moça casadoira, aparece como filha da Cobra Grande na lenda etiológica “como a Noite Apareceu”, recolhida por Couto de Magalhães. Vamos tomar agora por base essa lenda, que é a um tempo etiológica e de origem e ver a sua transfiguração no poema. Em síntese, trata-se do seguinte: um casal de indígenas não consumava sexualmente a união por causa da ausência da noite. Assim sendo, a noiva manda buscar a noite na casa da Cobra-Grande e o aparecimento da noite dá origem ao surgimento dos bichos da floresta. No poema Cobra Norato, vemos o tempo todo a referência a um casamento não consumado. O refrão, “Eu quero a filha da Rainha Luzia” é uma referência constante à condição de coisa não consumada. Podemos observar que a noite, no poema, parece referendar o estrangulamento da Cobra Norato ao qual as primeiras páginas do texto se referem e, assim como nas transcrições conhecidas do mito, referenda a possível união entre os nubentes. Em
Acordo
A Lua nasceu com olheiras
O silêncio dói dentro do mato

Abriram-se as estrelas
As águas grandes se encolheram com sono
A noite cansada parou

Ai compadre!
Tenho vontade de ouvir uma música mole que se
estira por dentro do sangue;
música com gosto de Lua
e do corpo da filha da rainha Luzia      (p. 160)
Nesse passo, a lua aparece como referendadora do conúbio sexual, assim como a noite, na transcrição que serve para base de comparação. Ficando apenas nesses exemplos, vemos alguma semelhança de função entre a noite da lenda etiológica analisada e a noite tal como aparece no poema, qual seja, a de resgatadora de uma cosmogonia, de uma união entre o homem e a mulher. Em alguns outros passos do poema tem-se a noite agasalhando a vida na floresta, à semelhança do mito transcrito, no qual a mesma aparece dando origem a esta vida. O trabalho da poesia jamais poderia ser mimético e essa transfiguração da voz é um serviço que o poema presta à estética, uma vez que se relaciona com a cultura indígena dentro de uma perspectiva dinâmica e transformadora. Demarcar diferenças pode ter utilidade apenas no sentido de sabermos com o que estamos lidando, para termos condições de perceber as suas afinidades e dessemelhanças.
A experiência estética em Cobra Norato é transformadora e se reveste de um modo próprio. O que vemos não são os mitos tal como podem ter sido na sua gênese, mas uma voz transfigurada em poema.
As mudanças estruturais observadas na comparação entre os relatos míticos transcritos e o poema alteram o sentido da voz subjacente à experiência poética em questão. Apesar disso, a fruição estética não é prejudicada, nos levando a refletir sobre as diferenças entre Cultura e Estesia. A reflexão mesma que se impõe é sobre como funciona a poesia. Será que, se os mitos em questão tivessem sido passados exatamente como são conhecidos na experiência oral, poderíamos dizer que a qualidade estética do poema seria melhor ou pior?
Ao que parece, nesse caso, a experiência cultural que serve de substrato ao fazer poético se relaciona com esse fazer de uma forma completamente diferente da idéia que temos de fidelidade. Talvez até se o autor usasse a tradição oral como camisa de força o resultado fosse medíocre. No caso do mito do aparecimento da noite, o que se quer resgatar é uma cosmogonia. Todas essas coisas que garantem a estabilidade dos homens debaixo do Sol e da Lua.
Da mesma maneira, em Cobra Norato, o que se quer resgatar também é de certa forma uma cosmogonia, qual seja: a da união entre homem e mulher. O mito transfigurado no poema de Bopp cumpre uma função análoga à que pode ser percebida nas transcrições analisadas. Então, mesmo em termos da cultura indígena, a transfiguração dessa voz percebida nas transcrições não sofre um desvio tão sério. Algumas similitudes podem ser resgatadas. A experiência estética e a cultural caminham, portanto, num sentido de suplementaridade. Em relação a Matim-Tá-Pereira, vejamos o que acontece, a partir da seguinte fala contida no poema: “– Bom cê deixar um naco de fumo pro Curupira, compadre” (p. 186). Vemos aí a união de dois mitos. Segundo Câmara Cascudo
Mati, mati-Taperê; nome de uma pequena coruja, que se considera agourenta. Quando, a horas mortas da noite, ouvem cantar a mati-Taperê, quem a ouve e está dentro de casa diz logo: Matinta, amanhã podes vir buscar Tabaco. (CASCUDO, 1993: 484)
No entanto, Matinta-pereira é também conhecido como o Saci, que é uma entidade zombeteira e ardilosa da qual se diz que, se alguém lhe tira o chapéu, fica rico. O Curupira, contrariamente à Matinta-pereira, fica satisfeito quando os índios lhe deixam penas de aves, abanadores, arcos e flechas e outros mimos para lhe aplacar a ira. A sua função é a de proteger os bichos da floresta contra a caça predatória.
Pois bem, se a poesia não tem que ser necessariamente fiel ao manuseio da matéria cultural a que está ligada, o que dizer a esse respeito? O que diriam pesquisadores e cientistas de alguém que manuseasse os mitos indígenas ao seu bel prazer?
A própria relação entre cultura indígena e cultura letrada nos leva a pensar num hibridismo, cujo modo de funcionamento precisa ser pensado. A colocação da idéia de um conflito dentro dos conflitos tradicionais, reinventando o discurso pós-colonial, ou seja, a própria cultura indígena, por exemplo, que já é conflitária com relação à cultura branca, letrada, enfrentando as suas próprias contradições, esta recolocação dos problemas, rediscute, no nosso caso, o lugar do índio e o lugar do homem letrado, tirando os pares da polaridade maniqueísta que impede a comunicação entre os diferentes termos. Segundo Homi Bhabha, trata-se de colocar no lugar da negação dialética a idéia de uma negociação entre os termos. O fato é que quando delimitamos o lugar do outro, estamos de alguma maneira informando-o sobre os nossos parâmetros e a nossa compreensão da idéia de alteridade estigmatiza as diferenças em circulação. Bhabha nos diz:
Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação conhecimento – poder? (BHABHA, 1998: 45)
Esta reflexão rediscute os parâmetros do discurso pós-colonial e recoloca questões como a da identidade, ou a questão das construções discursivas em outros termos. Bhabha pressupõe uma ‘indecidibilidade’, um breve momento de reflexão entre os termos em circulação. Por enquanto, poderemos pensar no diálogo entre Cobra Norato e a cultura indígena apenas pelo intercurso entre Raul Bopp e o mito. Não temos ainda parâmetros para saber de que maneira as culturas ágrafas reinterpretariam a cultura letrada, porque existem poucos exemplos de uma apropriação que se dê por uma via inversa. Não sabemos, por exemplo, se as sociedades tribais se auto-discutem, se é possível perceber alguma coisa como um meta-discurso. Os nossos pesquisadores analisam esse Outro, mas como esse Outro nos vê? Todavia, no que toca ao intercâmbio entre cultura letrada e cultura indígena na obra de Raul Bopp, a transfiguração dos mitos em função do fato estético nos leva a perceber o funcionamento desse hibridismo pela lente cultural de um homem branco, letrado.
Pode-se, no máximo, dizer como essa transfiguração ocorre nos nossos termos. Podemos entretanto nos perguntar: como se relacionaria um Bayá (poeta indígena), com os mitos do mundo cristão?
Essas trocas interculturais entre mitos e poesia podem nos levar a reflexões no campo da cultura. Devem os mitos permanecer intocáveis, como querem alguns? Algumas perguntas já foram feitas: até que ponto as próprias transcrições não alteram a natureza do mito? Na cultura indígena,
A tradição é a História indígena, narrativa que abrange o mito e a lenda, a reminiscência etiológica e religiosa, guerras vitoriosas da nação, conquistas militares, vultos dos grandes tuixavas guiadores do povo, amores tornados inesquecíveis, todos os elementos da lembrança coletiva, numa imensa, vaga e radiosa recordação do passado comum. (CASCUDO, 1993: 150).
Tanto o mito é modificado pela poesia de Raul Bopp quanto a poesia é modificada pelo mito, num interrelacionamento que muda as estratégias de ambos. A experiência estética em Raul Bopp está funcionando como propedêutica de um conhecimento. Está nos levando à história e à tradição. Esta oscilação entre memória e estética, por exemplo, caracteriza um dos aspectos do hibridismo cultural que estamos analisando. Um texto que nos remete à pesquisa está levantando questões de memória e de história na medida em que a construção do relato mítico é construção da história da narrativa e da memória cultural das sociedades tribais. O que me parece, inclusive, é que na constituição do mito, o imaginário se mistura com fatos reais. Por isso, coisas realmente acontecidas perpassam o mito, ressalvada a diferença que caracteriza o pensamento tribal segundo a qual o imaginário é coisa vivida.
No caso de Cobra Norato percebemos, como já se viu, uma transformação do mito. Essa transfiguração se faz mediante a movimentação e o deslocamento de elementos da estrutura dos mitos transcritos para outras posições mais ajustadas à cosmogonia do fato poético analisado. Essa movimentação e esse deslocamento certamente provocaram alterações no sentido do mito transcrito, mas, apesar disso, a presença desses mitos no poema funciona como apelo cultural para o conhecimento de uma parte da cultura brasileira, que tem pouca visibilidade no mundo letrado. Quanto à descontinuidade entre as línguas originárias, temos de pensar que tipo de oralidade está buscando o poeta. É claro que se trata de uma oralidade própria da língua portuguesa. É pensando neste tipo de oralidade que vamos buscar as suas marcas. Em Cobra Norato pode-se referir à oralidade, por causa, entre outras coisas, da presença de elementos sonoros da floresta. A designação do som é uma constante, como se pode ver nos versos abaixo:
Um assobio assusta as árvores
silêncio se machucou
cai lá adiante um pedaço do pau seco:
Pum
um berro atravessa a floresta
chegam outras vozes.     (p. 193)
Aqui o som nos é apresentado sob a presença de vozes. Na verdade todo o poema é uma articulação de vozes que dialogam entre si sobre todos os fatos da floresta, até mesmo num galhinho que cai à passagem da Cobra Grande. Temos o tempo todo exemplos destas vozes:
Atravesso paredes espessas
Ouço gritos de ai-me-acuda
Estão castigando os pássaros.     (p. 152)
Aqui as vozes se transfiguram em gritos. Na exemplificação deste apelo à vocalidade, poderíamos transcrever quase que todo o poema uma vez que se trata realmente de um mutirão de vozes que dialogam interminavelmente.
A identificação da voz como presença imanente no poema é uma questão de percorrer as suas páginas. A partir do diálogo entre as vozes que compõem o poema, tudo é vocalidade. Os bichos falam, as árvores falam, o herói fala. Vejamos mais alguns exemplos do que estou chamando de designação da voz:
Correm vozes em desordem
Berram: Não pode!
– Será comigo?
Passo por baixo de arcadas folhudas
Arbustos incógnitos perguntam:
– Já será dia?
– Manchas de luz abrem buracos nas copas altas.     (p. 155)
Nesse passo correm vozes que não têm nem remetente. Todo o poema é um apelo permanente à vocalidade que aparece aí representada por designação. Por designação da voz estou chamando todas as referências à voz que se fazem no poema e que nos remetem à oralidade sem que estejamos diante da oralidade mesma. Sabemos que, na poesia, a oralidade pode ser percebida através do ritmo e do som. Há que distinguir entre musicalidade e oralidade, mas é fácil demonstrar que o que é oral tem mais proximidade com o que é musical. A simples referência formal à voz não é oralidade, por isto estou chamando essa referência de uma designação da voz.
Vejamos mais alguns exemplos:

Vem de longe
Um trovão de voz grossa resmungando
Abre um pedaço do céu
Desabam paredões estrondando no escuro.
Arvorezinhas sonham tempestades ...     (p. 156)
Vemos mais um exemplo de designação da voz através da linguagem figurada. Observe-se mais essa passagem:
Ai compadre!
Tenho vontade de ouvir uma música mole
que se estire por dentro do sangue;
música com gosto de Lua
e do corpo da filha da rainha Luzia
que me faça ouvir de novo
a conversa dos rios
que trazem queixas do caminho
e vozes que vêm de longe
surrados de ai ai ai       (p. 160)
Novamente a designação da voz se faz presente deslocando o som no espaço (vozes que vêm de longe) e animando os rios em uma conversa marcada de suspiros e saudades. Essas vozes podem também ser personificadas, o que nos leva a supor que elas têm uma identidade. Qual é a face desse som? Como pensarmos esse som como uma forma de identificação? De saída podemos fazer uma síntese: trata-se da voz da floresta. Mas que floresta é esta? É uma floresta mágica, com certeza, uma vez que fala. Desde já podemos observar a ausência de homens. O elemento humano só aparece aí configurado no herói e na filha da rainha Luzia. O que significará na cosmogonia do poema uma floresta sem homens? A ausência do conflito homem-natureza. A floresta ganha aí uma dimensão autofágica e digere a si mesmo. Sabemos que a floresta de Raul Bopp tem voz. É, portanto, um ícone de resistência à exploração, uma vez que grita ao golpe do machado, como todos os seres animados. Mas a relação homem-natureza não a perpassa se pensarmos nas diversas formas dessa relação. Podemos visualizar na floresta o índio em harmonia com a natureza, em conflito com o homem branco, e rememorar os séculos de luta advindos desta relação. Amazônia, amor e cobiça se confundem nos jogos de poder subjacentes ao interesse por esse solo. Como tem sobrevivido o homem indígena a esses conflitos? O poema cala. A floresta ganha o aspecto de uma grande solidão, humanizada pelas vozes e desumanizada pela ausência do elemento humano.
Toda a magia do poema se concentra na sua dimensão telúrica e a função estética aparece aí escamoteando o conflito. Não é que a floresta seja idealizada. Às vezes ela aparece lúgubre, sombria, exalando mau-cheiro. Não se trata do mundo maravilhoso que os europeus julgaram descobrir no século XV e a noção que se experimenta não é a de um paraíso sem mácula. Mas existe uma magia sem homens, que diferencia inclusive o poema dos mitos indígenas, ao expressarem a saga humana do índio no seu habitat. No caso que estamos analisando, portanto, a experiência estética camufla o conflito que todos nós sabemos existir entre floresta e civilização. Temos que resgatar entretanto a importância dessa atenção voltada para a Amazônia, uma vez que, mesmo em termos de modernismo brasileiro, privilegia-se o interesse pelo espaço urbano, pelas grandes metrópoles. Será, entretanto, esta floresta enfocada por Raul Bopp, a floresta brasileira, com todos os seus dramas, com todos os seus conflitos? Sabemos da miséria das populações indígenas que habitam estas florestas, do descaso dos poderes institucionais com essas populações. Que discurso permanece imanente à poesia da Raul Bopp? Talvez o mesmo discurso que faça o elogio do exotismo, do maravilhoso na cultura brasileira, sem contudo perceber as contradições que atravessam os caminhos dos nossos intercâmbios culturais. Pode-se acreditar que a cultura letrada se relaciona com a cultura ágrafa, despistando os problemas reais que marcam esse intercâmbio.
A mim, me parece que o poema ganha a dimensão de uma pantomina, que tem a sua beleza e o seu engano; revela uma experiência estética que, ao camuflar conflitos, pode se inscrever no vazio.
Não se trata, no entanto, da noção de maravilha que perpassou a visão dos viajantes dos séculos XV e XVI nas Américas e inclusive no Brasil. A floresta de Raul Bopp é às vezes tenebrosa e hostil. Mas é também mágica e maravilhosa.
Vejamos como a dimensão de locus horrendus se configura:
Vou furando paredões moles
caio num fundo de floresta
inchada alarmada mal-assombrada      (p. 155)
Tem-se aqui uma visão onírica que aproxima a floresta de um pesadelo ameaçador. Em termos de linguagem, de processos de metaforização, existe uma semelhança entre o poema de Raul Bopp e os mitos indígenas. A riqueza da linguagem no que diz respeito aos recursos da poesia é comovente. É de fato um grande poema. Não é, entretanto, função da Literatura nem camuflar nem espelhar conflitos. Talvez, quem sabe, apontar para o que não foi percebido pelo senso comum da existência cotidiana. Provocar o necessaríssimo estranhamento. Sacudir os escolhos da nossa indiferença.







III. COBRA NORATO E O MODERNISMO




Em Raul Bopp a oralidade aparece sob a forma de mitos indígenas bem populares transfigurados em função do fator estético. Estes mitos sofrem variações estruturais que se adequam à experiência da poesia como uma forma de estesia. A oralidade tem aí, como função, a transfiguração desses mitos no sentido de ajustá-los à poesia. A voz subjacente a Cobra Norato é, portanto, o que é popular e oral. Como transfiguração do que é oral e popular, Cobra Norato desfila uma oralidade que se configura como uma forma de ruptura com essa tradição. É como se estivéssemos cantando uma ciranda tradicionalmente conhecida de uma outra forma. Ao longo desse trabalho procuramos explicitar o sentido desse procedimento. A idéia da tradição, veiculada em relação ao que é popular, tem conferido às coisas populares a pecha do arcaísmo e conservadorismo. Nesse sentido, a oralidade em Cobra Norato vem para subverter parâmetros e para reinscrever o oral e o popular no nível da estesia. A oralidade transfigurada é o recurso de ruptura que o poeta usa para se inscrever numa experiência de modernismo que o transformou no rapsodo da brasilidade, juntamente com Cassiano Ricardo de Martim Cererê e com Mário de Andrade de Macunaíma. Em Cobra Norato a oralidade está a serviço da brasilidade. Oralidade e uma face nacional são permanentes em Raul Bopp, uma vez que se trata de mitos indígenas brasileiros. Além de serem brasileiros são bem populares, o que garante o seu reconhecimento público com alguma facilidade, tornando essa obra acessível ao grande público.
A oralidade presente em Raul Bopp apresenta também um discurso que, em parte, tem a face do modernismo brasileiro, quer seja nas expressões idiomáticas, quer seja no coloquialismo da linguagem própria dos falares do povo, e em parte tem a face da cultura indígena no que ela tem de mais popular. Todavia, os recursos do universo oral usados no poema de Raul Bopp são aqueles que são próprios das tradições orais de língua portuguesa (parlendas, mnemonias), o que cria um certo paradoxo com a proposta do poema de dar voz, entre outras coisas, ao português do Brasil e à cultura indígena. O resultado é um híbrido cultural que contempla a cultura brasileira e inclusive a cultura portuguesa, num rearranjo de posições e de hierarquias. Quando usa recursos de oralidade próprios da tradição oral portuguesa, subverte os parâmetros dessa cultura dando-lhe antropofagicamente a nossa face.
Por outro lado, quando submete a cultura indígena a esse travestimento corre o risco de cooptá-la e de desfigurar-lhe a face. Entretanto, tudo na experiência artística é risco. Inclusive de erro. Acredito, entretanto, que o poema Cobra Norato é uma experiência feliz de estesia e graça.

3.1. Cobra Norato e o contexto histórico
A essa altura convém situar o poema Cobra Norato no seu contexto histórico. Filho da década de 30, o poema nasceu com a revolução que vencia as oligarquias e que incrementou o desenvolvimento industrial no Brasil. Getúlio Vargas, entretanto, profundo conhecedor da psicologia popular, acenava com promessas para amigos e inimigos políticos legitimando assim a sua posição no poder. Era camaleônico. Segundo suas próprias palavras, “o anedotário do povo foi meu guia, indicando-me o caminho certo através do sorriso amável e do suave veneno destilado pelo bom humor dos cariocas”.
Assim também Raul Bopp, camaleônico como Getúlio e do qual foi amigo e embaixador. Lidou com a linguagem popular e com as culturas tribais com um refinamento de mestre, deixando a sua marca pessoal indelével.
O Estado Novo, contexto em que nasceu Cobra Norato, foi um grande avanço em relação ao Império e a Primeira República, mas não deixou de ser uma experiência autoritária. Segundo Carvalho:
Foi grande o avanço em relação ao Império e a Primeira República, conseguido pelos ideólogos do regime autoritário, ao verem positivamente a população e as tradições do País, ao interpelarem diretamente o povo, especialmente o seu segmento operário ao colocarem o homem brasileiro como o centro da identidade nacional. Mas permaneceu o fato de que este povo não falava por si mesmo, não tinha voz própria, era ventríloquo, sua identidade e a identidade da nação eram outorgadas pelo regime (CARVALHO, 1999: 263)
As leis trabalhistas, apesar de terem sido uma conquista popular, não eram e não são redistributivas de renda, de riqueza. A produção cultural do Estado Novo, que se pautou sobre uma idéia de nacionalismo e de identidade nacional talvez tenha si esquecido desta contradição, reproduzindo o ufanismo condenado no século XIX. Cobra Norato, ao buscar a voz das florestas, ao se pautar na cultura indígena finca os pés nessa identidade nacional mas se esquece das contradições estruturais e políticas do Estado Novo, uma vez que é um poema que se cala sobre as perseguições políticas e todo o sofrimento humano engendrado na ditadura Vargas, além de se calar também sobre as contradições básicas do período. O crescimento da indústria não significou redistribuição de riqueza e pode-se considerar atualmente que estas conquistadas não tenham resolvido o problema da pobreza do começo do século. O poema propõe um maravilhamento que nos joga na cultura indígena, mas ao nos apresentar uma floresta sem homens, nos coloca a questão dos viajantes do século XIX, qual seja: Brasil – terra paradisíaca ou terra de horror? O poema distancia-se do contexto do Estado Novo ao eleger a cultura indígena como ícone, uma vez que neste contexto o índio não é mais emblemático da identidade nacional. Se pensarmos que no Estado Novo o povo é objeto de uma outorga de direitos, ou seja, tem direitos outorgados e uma voz também outorgada, tendo sido uma experiência autoritária, com direito a fechamento do congresso e ao fim dos partidos políticos, podemos pensar que o aliciamento de intelectuais, inclusive o de Raul Bopp, que foi embaixador de Getúlio, colaborava para não se colocar em xeque a estrutura do regime. Atestam isso as perseguições sofridas por Graciliano Ramos, Nise da Silveira, Olga Benário entre outros e o seu martirológio nos porões da ditadura Vargas. Cobra Norato, ao veicular uma noção de beleza como poema, de uma certa forma, camufla a realidade, numa atitude sobre a qual eu reflito no corpo da dissertação.

3.2. O modernismo brasileiro
Tentarei, neste tópico, demonstrar a pluralidade de vozes que marcou o modernismo brasileiro e também a maneira pela qual essas vozes interagiram entre si. É claro que a experiência modernista foi um marco na história da literatura brasileira, mas não passou a cavaleiro de contradições e equívocos. Cumpre flagrar aqui como aconteceu essa experiência. Mesmo em Cobra Norato percebe-se que a oralidade em questão contempla os vários Brasis que o poema incorpora a si (o indígena, o rural, o urbano), mas de uma maneira que não evidencia as fricções naturais entre os diferentes.
O modernismo brasileiro nasceu sob o signo de um paradoxo: ter sido patrocinado pela burguesia cafeeira como projeto alternativo diante da possibilidade de perder o poder conservador. Quando Oswald de Andrade diz de Tarsila: “Caipirinha, vestida por Poiret” – traduz de uma certa maneira esta ambivalência que põe o pé em dois mundos (o da burguesia e o do povo) para dialogar com ambos.
Pensando, entretanto, na proposta antropofágica, me ocorre a reflexão de Stuart Hall sobre o multiculturalismo contemporâneo, que mostra as várias expressões culturais da diáspora neo-colonial se traduzindo umas nas outras. O movimento antropófago, de uma certa maneira, ao deglutir a cultura européia traduz, como se estivesse transformando linguagem, que é o que acontece em todo processo de tradução, o mundo eurocêntrico em cultura brasileira. Homi Bhabha substitui o termo tradução de Stuart Hall por negociação. É claro que essas aproximações são feitas ressalvadas as diferenças conceituais e de contexto. Apesar de serem todos discursos pós-coloniais, têm as suas diferenças. Estou enfatizando aqui as semelhanças. Quando Oswald diz, no manifesto antropófago, “Se Deus é a Consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais” (ANDRADE in TELES, 1976:297), está traduzindo em cultura indígena a cosmogonia cristã.
E dá-lhe ironia com a patafísica do branco ocidental: “Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?”. (ANDRADE in TELES, 1976:296)
Apesar de nascido sob o signo de um paradoxo, o modernismo brasileiro foi realmente uma forma de resistência anti-colonialista no que diz respeito a valores de dominação cultural. Quando toma por base um manifesto antropófago, joga por terra os valores da cultura cristã européia, e sobretudo portuguesa, junto com tudo o que ela significou de opressão no seu caráter de braço direito ideológico dos atores da empresa colonial. A inocência do índio antropófago foi realmente uma forma eficaz de resistência contra a dominação do branco europeu. É impagável a ironia de
Em Piratinga
Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha
(Revista de Antropologia: São Paulo, nº 1, 1º de maio de 1928)
(ANDRADE in TELES, 1976:300)
na paródia do relato do Frei Vicente tirada do livro Historia do Brasil, de Oswald. Podemos perceber os caminhos da deglutição antropofágica em “cultivam-se palmares de cocos grandes, principalmente à vista do mar”. (ANDRADE, 1971: 86)
A substituição da palavra “palmeiras” pela palavra “palmares” é uma denúncia irônica da escravidão e uma confrontação debochada com o discurso dos textos oficiais. A proposta de aproximação dos falares do povo, que percorreu todo o modernismo brasileiro, desembocou no apelo à oralidade, observável em toda a poesia dos modernistas.
Oswald nos diz em “Vício da Fala”:
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados        (ANDRADE, 1971:89)
A “contribuição milionária de todos os erros”, tão criticada por alguns e elogiada por outros, tem essa face de oralidade que busquei detectar em Raul Bopp. Então, talvez possamos considerar a apropriação que Oswald de Andrade faz dos textos oficiais uma tradução antrofágica do discurso do poder nos termos da cultura resistente. Apesar de ser uma cultura de resistência, a arte modernista incorporou a si o paradoxo de buscar uma linguagem moderna e, ao mesmo tempo, beber nas fontes de um Brasil arcaico, rural e indígena. A mesma burguesia rural que patrocinou o movimento modernista imigrou para a burguesia industrial dos anos vinte. Assim sendo, a aparente contradição fica resolvida se pensarmos no interesses de uma classe em se manter no poder. Cobra Norato fica neste entre-lugar de um projeto que já vinha se esboçando desde a década de 20. Usando uma oralidade que diz muito mais respeito à oralidade da língua portuguesa, em lugar da oralidade própria dos mitos, incorpora o paradoxo de transmutar para a escrita, através de parlendas, mnemonias, uma experiência própria da narrativa oral indígena, cujos recursos da fala são completamente diferentes dos nossos.
A proposta antropofágica procurava traduzir numa linguagem brasileira a cultura européia. O problema é que essa tradução se dá no uso e fruto de uma língua que, além de ser a do colonizador, tem os valores aristotélicos que os modernistas tanto criticam. Como traduzir para uma linguagem aristotélica um mundo sem culpa, inocente e devorador? Mesmo a proposta de usar os falares rurais de língua portuguesa não criam uma sintonia adequada entre a oralidade da fala indígena e a oralidade da língua portuguesa. Pode-se dizer então que Cobra Norato quase conseguiu o contrário, ou seja, deglutir a cultura indígena e transformá-la numa expressão de língua portuguesa. Os chamados círculos oficiais encontraram, portanto, uma face cultural no modernismo e o próprio projeto de modernidade capitalista foi a salvaguarda desses círculos de poder camaleônicos que, com vatapá e croissant estão sempre no poder.
Podemos considerar, entretanto, que essa voz ancestral ecoa transfigurada na palavra escrita através da poesia de Raul Bopp e essa é de fato uma forma de aproximar mundos aparentemente tão distantes. Tanto a poesia de Mário e Oswald, com o seu apelo às grandes cidades e ao movimento urbano, como a poesia de Bopp, com o seu apelo a um Brasil rural, são a face de Janus de um poder centralizador representado pelas grandes elites rurais e industriais. Apesar disso, a criticidade desses poetas significou realmente uma fissura na face dessa burguesia (industrial e rural) na medida em que jogou na mesma cena comum mundos aparentemente tão distantes (o rural, o urbano, o indígena), provocando fricções verdadeiramente rearticuladoras de novos acordos culturais. Essa face de oralidade que busquei demonstrar no poema de Raul Bopp, aparece configurada em toda a poesia modernista.
Pensando na oralidade do homem do povo como uma forma de resistência à finesse hierárquica do mundo capitalista e no conflito entre as grandes cidades e o mundo rural, pode-se perceber que o caráter paradoxal da arte modernista serviu para confrontar mundos e fazer repetirmos a eterna pergunta: quem somos nós? Segundo Haroldo de Campos, no período do modernismo estamos
no contexto de um país em formação transitando da oligarquia latifundiária para uma incipiente indústria, e onde esse processo de trânsito se desenrolava, inclusive à sombra de medidas de proteção aos interesses agrícolas – aquela função crítica se desdobrava em uma contestação segunda: a da consciência letrada dos grêmios fátuos e das tertúlias inócuas pela despontante consciência nova, que se elaborava no cadinho da espontaneidade oral, dos barbarismos irreverentes, dos aportes migratórios.” (CAMPOS in ANDRADE, 1971: 33)
Esse o fulcro das nossas questões. A busca da oralidade na poesia modernista é a perseguição dessa “despontante consciência” nova que se forja num Brasil a um tempo industrial e agrícola, rural e urbano. Afinal de contas, o que era a São Paulo dos anos 20?
Sevcenko nos diz:
De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolve a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros; nem de brancos e nem de mestiços, nem de estrangeiros e nem de brasileiros, nem americana, nem européia, nem nativa, nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical, não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entender como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados. (SEVCENKO, 1992:31)
Essa cidade complexa, centro das elucubrações modernistas, dá uma idéia do pluralismo que os modernistas queriam captar. Mas o nosso objeto de interesse é o lugar da oralidade nesta questão. Experiência típica tanto das ruas quanto das cidades, o apelo à oralidade foi, antes de tudo, uma forma de confrontação com a consciência letrada identificada com os círculos do poder. Por essa razão, mais do que o respeito à um pluralismo de base, o modernismo vem como uma forma de ferir a verticalidade da cultura européia que se impõe de cima para baixo. O paradoxo, ao meu ver, está no fato de que, ao se aproximar de um Brasil selvagem, urbano e rural, se esquece de que grande parte desse Brasil se construiu sobre uma base lingüística e de pensamento que vem lá de Aristóteles. Como todas as línguas românicas, a língua portuguesa tem uma base aristotélica. E o modo de pensar estruturado sobre a lógica aristotélica é a lógica formal, que não é a estrutura lógica do pensamento indígena. Pois bem: essa mesma lógica formal que os modernistas tanto criticaram, bem como o fizeram todos os movimentos de vanguarda, foi com essa lógica que eles estruturaram a sua linguagem só pelo simples fato de entre outras coisas, terem tomado por base a língua portuguesa.
A heterogeneidade da experiência oral captada pelo modernismo nos leva a pensar em como o modernismo lidou com essas diferenças, no sentido de administrar conflitos e fricções em função do fato estético. A oralidade percorrida pelo modernismo diz respeito às regiões urbanas, rurais, e ao relato mítico indígena. Só em Cobra Norato, experimentamos, além dos dialetos caipiras e do relato mítico, expressões de língua indígena e africana, o que nos faz supor a convivência de coisas completamente diferentes num mesmo caldeirão. Isto me faz supor uma harmonização de diferenças que me remete ao que estou chamando de uma estética de camuflagem de conflitos. O modernismo veiculou esteticamente diferentes formas de expressão cultural e neste sentido me parece que funcionou como uma espécie de nivelamento das diferenças. Vejamos o que era a São Paulo da década de 20 em termos de estratificação social, nos dizeres de um cronista do Estado de São Paulo, observando a virada do ano:
Súbito repontam os carroções da limpeza pública, com um séquito enorme de operários. Em poucos minutos, formam-se às esquinas montões de serpentinas, que os carroções vão arrastando lentamente [...]. próximo ao belvedere, uma mulher amontoa a custo braçadas de serpentinas, forcejando por acomodá-las em três sacos. Eis que os homens do lixo a vêem, e mais que depressa as suas vassouras avançam sobre os três montes. E a mulher desesperada, quase a chorar, foge arrastando os tubos de serpentinas, como se estivesse a salvar uma coisa preciosa. (in SEVCENKO, 1992:27)
O contraste entre a grandiloqüência que algumas vezes perpassa a dicção modernista (sobretudo em Mário de Andrade) e a realidade de São Paulo é evidente. Os diferentes Brasis se entrecruzam na experiência modernista sem sabermos muito bem como essas diferenças se equacionam.
A noção de “indecidibilidade” de Bhabha (BHABHA, 1998), na qual discursos diferentes se imiscuem interferindo uns nos outros, poderia ser pensada para a experiência modernista se pudéssemos acreditar que um Brasil de oralidade rural, urbana e indígena pudesse subverter o falar e o pensar de um Brasil letrado e de elite. A própria experiência lingüística da poesia modernista é altamente sofisticada. É o caso de pensarmos: quem se imiscuiu em quem? De que maneira os falares do povo influenciaram a literatura modernista brasileira? A perspectiva é do homem de letras. Em Cobra Norato, já foi feito o estudo da presença dos falares do povo em todo o poema usados aqui como índices de oralidade. Mas todo o poema é perpassado também pela língua escrita culta o que vale como constatação. Podemos flagrar vários momentos do alto índice de sofisticação em toda a poesia modernista confrontados com os índices de oralidade da fala do povo. O modernismo, na realidade, diminuiu em muito o preciosismo da linguagem literária, aproximando também a escrita da compreensão coloquial. Prestou de fato um grande serviço à comunicabilidade dos textos no mundo das letras. Do preciosismo da poesia simbolista à coloquialidade da poesia da geração de 22, o salto é realmente enorme. A contextualização da literatura nas grandes cidades, no ambiente do começo do século, nos garante uma legibilidade maior dos textos, a nós, leitores do final do século 20. Mas para os círculos literários do começo do século se constituiu em escândalo. Para o leitor de hoje, a linguagem do modernismo já parece carregada de sofisticação e preciosismo.

3.3. Cobra Norato: identidade e diferença
Situam-se aqui as noções de identidade e diferença como sendo lugares de passagem, nos quais os valores são renegociados até assumirem a sua feição final. O objetivo desse tópico é flagrar esse trânsito e os seus momentos nos quais as identidades mudam de lugar.
No circuito que configura as várias faces culturais de Cobra Norato, transitam identidades que dialogam entre si de forma dinâmica e circunstanciada. Não se pode falar de uma identidade mas de identidades. Tendo como substrato a matéria mítica, o poema dialoga com as culturas indígena e africana, com um Brasil rural e pré-industrial, com a cultura letrada e com as culturas ágrafas. Para se expressar nos termos do universo mítico é necessário um sacrifício ritual que sacramenta a entrada do herói no mundo mágico da floresta, no afã de posse da amada. Entre as várias faces culturais que perfilam o poema, pode-se perceber a da narrativa popular (histórias infantis), uma vez que, da mesma forma que acontece na narrativa oral infantil, para alcançar o objeto do desejo, o herói tem que atravessar uma floresta cheia de perigos e sortilégios. Como o objeto de desejo denuncia a face do desejante, podemos dizer que muito do perfil cultural do poema está nesta prenda (a filha da rainha Luzia). Portanto, como nas histórias infantis, uma princesa. Nesse sentido, o poema incorpora elementos das culturas ágrafas e elementos do fabulário europeu personificados nas lendas de príncipes e princesas tão comuns nas histórias para crianças. Este hibridismo cultural faz supor identidades em trânsito, uma vez que o poema não se decide por nenhuma delas e as incorpora todas à sua trama. Componentes de um mundo mágico são acionados, colocados em movimento para a realização deste sonho de posse. É de se perguntar como um herói brasileiro pode desejar uma princesa, de origem européia como se supõe, já que tem os olhos claros. Esse ser desejante esbarra com uma diferença crucial, a de origem. Mas é como um personagem do mundo mágico da Amazônia que o herói se nos apresenta vestido na pele de Cobra Norato. Trata-se do desejo de um herói, vestido na pele de um ser mágico do fabulário brasileiro, por uma princesa. Esta fusão de narrativas orais, ora da extração oral européia, ora da extração oral indígena, nos leva a colocar a noção de identidades em trânsito. A tradutibilidade das culturas umas nas outras e a idéia de negociação desses termos, advindas das teorias de Hall e de Bhabha nos fazem supor a noção de trânsito de identidades. Mas o que leva um herói brasileiro a desejar uma princesa, em lugar, por exemplo, de uma indiazinha? Exatamente esta outridade que mobiliza os diferentes em direção a si mesmos. Desta confusão de culturas nasce este desejo híbrido que desafia hierarquias e toma o lugar dos príncipes. Pois é exatamente isto o que faz o herói do poema de uma forma inclusive muito parecida com os heróis populares do cordel. O que se sabe deste obscuro objeto do desejo? Nenhuma informação além daquela que diz que se trata de uma princesa. Isto nos remete ao amor cavaleiresco que, sem conhecer o objeto, vive e morre por ele pelo simples capricho de uma gentileza. No caso de Cobra Norato, a consumação da posse é a convenção de um casamento que une norte, sul e os ícones da intelectualidade brasileira no ritual da festa, diversão mítica tanto das sociedades tribais quanto das não-tribais e sacramenta uma esperança de felicidade depois de tanta luta. No caso do poema, o desejo mobiliza os diferentes permitindo a livre circulação de várias faces. Entre as várias identidades dialogantes, está, por exemplo, a face de um Brasil letrado que se imiscui no poema em vários versos. Em
Nacos de terra caída
vão fixar residência mais adiante
numa geografia em construção.      (p. 63)
vemos a idéia de residência que vem do mundo civilizado. Vejamos outros exemplos. Em
Árvores – comadres
passaram a noite tecendo folhas indecifradas
vento-ventinho assoprou de fazer cócegas nos ramos
Desmanchou escrituras indecifradas.      (p. 199)
A noção de escrituras presentifica o mundo letrado numa mistura que confunde os códigos e as linguagens, nos deixando em suspensão. É o lugar da indecibilidade postulado por Bhabha. Um Brasil pré-industrial se imiscui num Brasil rural. Em versos como os que se seguem podemos ver os traços desse Brasil pré-industrial em convivência com a face indígena da matéria mítica e os falares do povo. Vejamos:
Ouvem-se apitos um bate-que-bate
Estão soldando serrando serrando
Parece que fabricam terra...
Ué! Estão mesmo fabricando terra.      (p. 159)
Nesta passagem a floresta toma o aspecto de uma fábrica em pleno funciona-mento. Nos versos que se seguem a floresta se assemelha a uma construção civil:
Chiam longos tanques de lodo-pacoema
Os velhos andaimes podres se derretem
Lameiros se emendam
Mato amontoado derrama-se no chão.      (p. 159)
Esta miscelânea terminológica que mistura os códigos da civilização com os códigos da floresta configuram uma face multiidentitária que transita por todo o poema. As diferenças circulam costuradas pelo fato estético que as precede. Em
Aqui é a escola das árvores
Estão estudando geografia.
O mundo letrado invade a floresta sem pejo e sem conflito num processo de transcriação de um mundo mágico de extração mítica no qual tudo é possível. Até uma aula civilizatória para as árvores da floresta. Num mesmo espaço convivem pajelança e puçanga, conforme atestam os versos que se seguem:
Pajé faz uma benzedeira de destorcer quebranto

E depois fuma e defuma
Fumaça de mucurana
Gervão com cipó-titica
E favas de cumaru.
Em seguida pega uma figa de Angola
Risca uma cruz no chão
E varre o feitiço do corpo com penas de ema.     (p. 181)
Como se vê feitiços indígenas convivem tranqüilamente com feitiços africanos, numa carnavalização da linguagem que traduz muito bem o espaço mitológico da festa. Quem nos garante que, nestes Brasis nos quais os índios e os quilombolas podem ter convivido, seja possível separar as bordas destas identidades duramente perseguidas pela colonização? Essa face mutante nos faz pensar no poema como se pensa num catavento. Muda de cor em função da direção do ar. Como pensar, por exemplo, o sentido da convivência de narrativas tão diferentes, tais como os contos de príncipes e princesas do fabulário europeu e os mitos indígenas? Poema camaleônico, Cobra Norato tem várias pistas de identificação sem incorrer no maniqueísmo de se fixar em nenhuma. Este poema parece uma criança que se entremostra e se esconde no momento em que vai ser pilhada numa travessura. Incorpora vários elementos de culturas diferenciadas e sobrevive como uma brincadeira séria que não tem lugar de chegada porque o seu endereço são as terras do sem-fim.
Tendo como carteira de identidade a metáfora de um desejo perpassado pelas várias faces da cultura brasileira, Cobra Norato se afirma como uma parcela de nação escrita. As narrativas que se entrelaçam na tecitura do poema pressupõem a devoração antropofágica que dá o tônus de brasilidade a tudo o que é dito. Curiosamente, esta outridade que sempre foi ocupada pelo colonizado, sempre no lugar do estranho e do exótico, vem no poema configurado pela “filha da rainha Luzia”, princesa entre seres da floresta e personagens mágicos. Como se expressa esta outridade? Se pensarmos que, lidando com a floresta, estamos no espaço do que nos é, pelo menos geograficamente familiar, a floresta, ao passo que os príncipes, princesas, reis e rainhas ocupam um outro contexto, entenderemos esta reflexão.
Os diferentes se atraem. Se pensarmos que, ao vestir a pele da cobra o herói se desinveste da sua imagem, da sua pele, portanto, da sua própria existência como ser plenamente identificável, podemos refletir no despojamento a que este desejo obriga. Ao desejar a princesa o herói se desinveste de si e assume uma outra identidade. A identidade do bom irmão de Maria Caninana. Este herói vem resgatar a face cosmogônica do mito, uma vez que a união sexual é a garantia da sobrevivência humana nas sociedades tribais e em qualquer sociedade. Esse desejo, que faz um percurso de viagem que vai da identidade do herói a uma outra pele, nos faz pensar no despojamento do próprio autor que diz: “Eu sou Cobra Norato”. Esta superposição de identidades, narrador e personagem, nos faz pensar em uma autodevoração.
O autor se autodevora se desinvestindo de sua pele ao se transformar em cobra, assumindo a face mítica do bem que se traveste num desejo de união. Essa mobilidade, que possibilita o cruzamento de identidades, possibilita também o hibridismo.
Ao vestir a pele de um herói mítico, o herói mistura a sua pele de branco letrado com a pele de uma cultura diferente da sua, assumindo um travestimento que mistura a sua voz e a voz desse outro configurado aí pelo homem da floresta. É a união entre os diferentes. A fusão de origens distintas. Na realidade, o mito do príncipe bom, que possui a amada depois de inúmeras peripécias, é revivido na face de um herói brasileiro que se desveste de si na busca da realização de um desejo. Na realidade, aquele outro somos nós mesmos. Como diz Júlia Kristeva (KRISTEVA, 1994: 30), estrangeiros para nós mesmos, uma vez que somos um outro para outros que nos enxergam da mesma forma. De uma certa forma, o poema investe a estereotipia desta outridade, quando pensamos no paradigma do colonizador. A hierarquia dos lugares se mistura e as determinações entram em falência.
A crise de identidade que o poema inaugura, quando o herói se desinveste da própria pele, permite pensar num vazio. Qual é o lugar ocupado no espaço intervalar entre a pele do herói e a pele da cobra? Alguma coisa fica em suspensão e me leva a pensar que é do substrato da ausência que se constitui a identificação. Somos tudo e somos nada, nesta eterna migração, nesta eterna viagem em direção a um desejo difuso que é a um só tempo africano, indígena, português, brasileiro. Se o desejo é a marca da nossa identidade, a quanto nos obriga esse desejo é a nossa cicatriz. Raul Bopp é esse desejo uma vez que foi um ser itinerante, em eterno movimento de entre-lugar. Percorreu a Amazônia e percorreu também terras estrangeiras. É ele mesmo este catavento cujas cores se multifacetam ao sabor do percurso, como o próprio poema. Esse sabor de viagem, que dá um poder encantatório à vida, transforma esse tipo de narrativa num devaneio que não tem um ponto de partida ou um ponto de chegada. Não tem fim e não tem começo também, é uma passagem. Narrativa de passagem. A relação de Raul Bopp com as suas viagens tem uma relação direta com a gênese da sua poesia. Segundo Augusto Massi:
A primeira viagem de Bopp representa um verdadeiro rito de passagem. Aos 16 anos, entre aventura e fuga, ruma ao Paraguai. Tem início uma longa aprendizagem do mundo, estabelecendo-se, de imediato, uma aliança entre viajar e escrever, entre tradição oral e registro poético, entre paisagem e mito. (MASSI in BOPP, 1998: 14)
O poema começa “...um dia eu hei de...” que na realidade é uma hipótese. Em verdade não começou. Como identificá-lo, portanto? Como signo de passagem, transição, percurso. Como identidade em trânsito que vai se transformando ao sabor da viagem, ao sabor do desejo. Como o desejo é a instância da falta, o herói vai caminhando como um cavaleiro medieval, até a uma promessa: a do casamento.
A força telúrica da floresta se transporta para a palavra, no poema, engendrando a idéia de criação, fecundação que perpassa toda a trajetória do herói travestido em cobra. No momento em que se desinveste da sua pele e entra na seda elástica da cobra, desloca a identidade para a função fálica e se investe em instrumento da criação. Esse falo bissexual, uma vez que as cobras procriam, batiza a cultura brasileira letrada de erotismo, transformando-se em assinatura de uma identidade sensual cheia de lirismo e beleza.
Segundo Othon Garcia,
O poema é uma visão do mundo aquático da Amazônia dissolvido em lama e lodo nas margens alagadas, nos igapós, nos igarapés e paranás. É o Amazonas da pororoca e das chuvas torrenciais, generosas e fecundantes,... (GARCIA, 1962: 43)
Mundo amorfo, indiferenciado, propício para novas configurações. Só essa visão da floresta que perpassa toda a obra já nos permite um princípio de identificação. A água, como a placenta, elemento básico da criação, inunda todo o poema. Esse mundo placentário é ícone de fecundação. Ainda nas palavras de Othon Garcia,
Os símbolos verbais sugeridos de gestação ou fecundação criam dentro do poema uma atmosfera de encantamento que facilmente evoca a imagem daquele mundo em formação, daquela aurora de mundo que a Amazônia nos lembra ..., isenta que está ainda do contato com o homem e a civilização.
Entre esses símbolos verbais genéticos, isto é, referentes a fecundação, vale a pena assinalar a assiduidade de certos termos e certas expressões metafóricas relativos a ventre, ovário, gravidez, parir, prenha, útero, barriga, inchar e quejandos. (GARCIA, 1962: 46)
A idéia de um mundo em formação, se autogerando permanentemente através da fricção das suas diferenças pode muito bem ser a marca que Cobra Norato deixa na face da cultura brasileira. As transfigurações dessa voz imanente ao texto, a matéria mítica da qual ele se constitui, configura a sua diferença, que se afirma como voz poética e como mito moderno. Usando recursos do fabulário europeu, tais como as lendas, parlendas e mnemonias, e recursos afetivos advindos, por exemplo, do nhengatu, tais como os diminutivos, Cobra Norato se afirma como identidade em movimento e como diferença positiva. Positiva na sua condição de proposta estética que aproxima e redimensiona os diferentes produzindo a estesia. Esta identidade híbrida de uma certa forma, pode-se dizer, pressupõe o entrelaçamento étnico, uma vez que propõe a união entre a floresta e a nobreza. Mais uma vez pondera Othon Garcia:
esse casamento com a filha da rainha Luzia seria uma maneira simbólica de insinuar o cruzamento da raça e da cultura ameríndia com a raça e a cultura européia, hipótese que se concilia com o sentido erótico do mito e a realidade histórica, etnográfica e cultural do Brasil. (GARCIA, 1962:39)
É natural pensar que esse cruzamento não se dará sem conflitos e a proposta antropofágica talvez não tenha previsto que esta deglutição talvez possa ser um pouco indigesta. Mas no momento em que esse narrador onisciente (o próprio poeta) se desveste da própria pele e diz “Eu sou Cobra Norato”, o que cai por terra é todo o mundo letrado que o constitui, com direito aos poemas simbolistas da primeira hora. Menos do que o mito e mais do que o poema, o que acontece é uma perda e um ganho de identidade que explicita todo o movimento dialético do autor na configuração do poema. Desidentificado de si mesmo e investido desta nova pele, incorpora o movimento criador que os mitos serpentários expressam, ao tomarem como símbolo um ser que nasce e renasce o tempo todo ao renovar periodicamente a própria pele.

3.4. Estudo comparativo: Cobra Norato, Macunaíma e Martim Cererê
Visando comparar diferentes formas de narrar a nação em três obras que se dedicaram a esse objetivo, confrontei Martim Cererê, Macunaíma e Cobra Norato, no sentido de flagrar semelhanças e diferenças no interior do próprio projeto modernista. Perceber semelhanças e diferenças é marcar a face identificadora desse projeto na sua repetição do mesmo e na sua alteridade. São três grandes obras que se dizem de si e do Brasil e que muitas vezes recorrem a um mesmo imaginário.
Com relação a Cobra Norato e Macunaíma, a construção do discurso é bem parecida. Em Macunaíma, a noção de um herói sem nenhum caráter nos remete ao herói de Cobra Norato, que se desveste de qualquer brio, mata a Cobra e veste a sua pele para satisfazer o próprio desejo: casar com a filha da rainha Luzia. Este ato de traição é um desvestimento do próprio caráter que obedece tão somente à lógica do desejo. As peripécias de Macunaíma, nas quais fica patente a ausência de qualquer caráter se relacionam com as peripécias do herói travestido em cobra na medida em que, para satisfazer o próprio desejo, vale-se de qualquer coisa: a traição, a burla e tudo o mais que possibilitar a realização desse intento. Aliás, muito em consonância com os ciclos de bichos das narrativas orais nas quais o que prevalece não é o caráter, mas a astúcia. Se pensarmos no fabulário europeu, podemos tomar como exemplo Pedro Malasarte, no qual a idéia de caráter também é eclipsada pelas peripécias do herói.
Também Macunaíma é marcado pela lógica do desejo. Um desejo libertário que se expressa através da busca de um objeto mágico, a muiraquitã. Tanto em Macunaíma quanto em Cobra Norato se observa uma queda do sublime ao grotesco. Então temos no poema de Bopp uma floresta de “hálito podre”, por exemplo. Vejamos outras situações nas quais esta queda do “limpo” ao “sujo”, do “belo” ao “feio”, se dá: “O mangue de cara feia vem caminhando com a gente”. (p. 171)
Como se vê, não se trata da visão de uma floresta maravilhosa. “Essa é a floresta de hálito podre parindo cobras”. (p. 182)
Aí está uma ruptura com o ideário europeu dos viajantes, que idealizaram as florestas em nome da necessidade de uma propaganda que garantisse a colonização. Em um diálogo com as árvores, o herói diz a elas:
– Vocês tem que afogar o homem na sombra
A floresta é inimiga do homem
– Ai! Ai! Nós somos escravas do rio     (p. 153)
– numa clara alusão ao caráter hostil da floresta, ou seja, uma queda do maravilhoso no hostil, do sublime no grotesco. Esse descenso à terra também é observável em Macunaíma. É o que Eneida Maria de Souza chama de “Discurso Escatológico”, através do qual o herói, Macunaíma, é flagrado em situações de sujeira e de mau-cheiro. Essa sujeira aparece, em Macunaíma, num contexto em que o fogo sexual é evocado. Em Cobra Norato é apenas uma queda. O discurso de ausência de caráter, típico do imaginário brasileiro e de uma dialética da malandragem que, tal como enunciada em Antônio Cândido, parece apontar também para a literatura oral, inclusive no fabulário europeu, se pensarmos no caso de Pedro Malasarte. A par de uma literatura oral moralista, existe uma escatológica e transgressiva que parece ser válvula de escape aos desejos populares. Novamente a lógica do desejo comandando as ações. No capítulo “Vei, a Sol”
O traço escatológico acha-se presente desde o princípio do capítulo quando o herói, vítima da ação do urubu, torna-se sujo e mal-cheiroso. A estrela da manhã e a lua se recusam a levá-lo ao céu, sob o pretexto do mau-cheiro que exala. (SOUZA, 1988:39)
O discurso escatológico substitui o moralismo próprio das narrativas orais populares do fabulário europeu pela lógica do desejo, da obtenção do prazer e da satisfação pessoal. Essa é também uma vertente das narrativas orais populares se pensarmos, como já se disse, nas narrativas dos ciclos de bichos nas quais os heróis se desvestem de qualquer nobreza, de qualquer “limpeza”, no mais das vezes para sobreviver ou para a obtenção de algum tipo de prazer. Em Martim Cererê, apesar da freqüente referência ao relato-mítico indígena, a narratividade estrutura-se sobre os feitos sublimes dos heróis bandeirantes. Perde-se a versão escatológica e ganha-se um tom épico, que tem também muita relação com a literatura modernista. Essa vertente da oralidade (o discurso escatológico) está ligada à feira, à praça pública, às ruas, ao que é oral e popular. Segundo Eneida,
A escatologia é um dos temas mais explorados nos textos ditos populares, sejam eles literários ou para-literátorios, caracterizados por uma linguagem que zomba as manifestações próprias do discurso oficial. (SOUZA, 1988:38)
Podemos dizer que Cobra Norato está a meio caminho do discurso escatológico, uma vez que usa os recursos dessa escatologia saindo da excelsitude do simbolismo, experimentado também por Raul Bopp, para uma visão que aproxima a floresta de um locus horrendus muito distante da noção de mirabilia.
A procura da muiraquitã em Macunaíma, da mulher desejada em Cobra Norato, nos aproxima também da noção de busca de um elo que pode ser personificado como algo perdido (e isso é mais claro no texto de Mário Andrade), que nos remete à idéia do paraíso perdido do relato bíblico. O relato bíblico tem a marca da oralidade, uma vez que vem sendo transmitido através da fala há séculos, apesar de ter sido escrito e se transformado em palavra sagrada. É uma palavra que tem também a marca da oralidade.
Outra característica que nos remete à oralidade é o uso dos meios mágicos para a salvação do herói. Como sabemos, os mitos advindos do universo oral pressupõem uma saída do lugar de origem, uma série de peripécias, nas quais os recursos mágicos da salvação do herói entram em cena e há uma glorificação em função dos feitos de coragem e bravura.
De acordo com Haroldo de Campos,
Na seqüência padrão do “conto de magia” proppiano, aparecem (...) os “doadores” ou “provedores”, cuja função é fornecer um “meio”, geralmente “mágico” ministrando assim ajuda ao herói para a obtenção da desejada reparação do dano”. (CAMPOS, 1973:165)
Em Macunaíma podemos observar essa função em várias situações. Na seqüência em que Macunaíma vai pela primeira vez à casa do gigante Piaimã e sofre um dano terrível, chegando inclusive à morte, aparece como recurso mágico um irmão feiticeiro, Maanape, que o reconduz à vida. Vejamos:

O herói picado em vinte vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta fervendo. Maanape catou os pedacinhos e os ossos e estendeu tudo no cimento pra refrescar. Quando esfriaram a sarará Cambgique derramou por cima o sangue sugado.
Então Maanape embrulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas de bananeira, jogou o embrulho num sapiquá e tocou pra pensão.
Lá chegando botou o cesto de pé assoprou fumo nele e Macunaíma veio saindo meio pamonha ainda, muito desmerecido, do meio das folhas. Maanape deu guaraná pro mano e ele ficou taludo outra vez. Espalhou os mosquitos e perguntou:
– O que foi que sucedeu para mim?      (ANDRADE, 1997: 34)
Vários exemplos dessa natureza se sucedem em Macunaíma, não apenas no sentido da salvação mas no da danação também. Quando quer danar alguém o herói usa e abusa de recursos mágicos. Em Cobra Norato, quando o herói veste a pele da cobra, a pele ganha o caráter de um recurso mágico com vistas à obtenção de um desejo. A pele, tal qual o objeto mágico, visa a proteger o corpo das agressões do meio e a garantir a integridade da pessoa que a possui. Ao vestir uma pele alheia o herói de Cobra Norato se investe de um recurso externo (tal como o objeto mágico) para se proteger. E essa atitude que tem também algo de ritual não vem investida de um sentido moral, já que, para alcançar êxito, o herói tem que matar o dono original dessa pele.
Assim como em Macunaíma, as ações não são investidas de um tom moral. Já se estabeleceu uma ponte entre o discurso amoral, escatológico e as narrativas dos ciclos de bichos, típicos da oralidade. Podemos estabelecer a marca da oralidade, não apenas em termos de uma estratégia narrativa, mas nos termos também da matéria cultural que serve de elaboração dessas obras, no caso o relato mítico.
No caso de Cobra Norato e de Macunaíma, vêm ambas investidas de um apelo fortíssimo à oralidade, quer seja por causa do relato mítico, quer seja por causa dos falares que perpassam essas obras.
O escatológico no discurso parece indicar o que já se disse ser a humanidade dos mitos, dado que o que se busca perceber nesses relatos é a condição humana nos seus momentos de luta pela sobrevivência, de luta contra a adversidade. Essas atitudes algumas vezes colocam em crise uma moral cartesiana baseada numa lógica que é posterior à vigência desses no caso do cristianismo, ou que não os tocou, no caso dos gregos, em função de razões históricas que não têm interesse maior agora.
Em Martim Cererê, a referência a esse substrato cultural que é o relato mítico é constante. O mito do aparecimento da noite, compilado entre outros por Câmara Cascudo, por Couto de Magalhães e por Sílvio Romero, é evocado no poema “Sem noite, não” (RICARDO, 1987:20). O mito da cobra grande, aparece no poema “A cobra grande” (RICARDO, 1987:30). A simples recorrência a esses mitos já aproxima Martim Cererê tanto de Cobra Norato quanto de Macunaíma. Além disso, o livro é marcado por uma brasilidade que por si só já nos remete a narrativas como Cobra Norato e Macunaíma. A diferença é que o tom irônico e malicioso, tanto de Macunaíma quanto de Cobra Norato é substituído por uma grandiloqüência que valoriza os feitos de um outro tipo de herói. Os heróis bandeirantes são o tempo todo glorificados num tom, no mais das vezes, épico. A ausência do conflito, dos antagonismos, faz pressupor um texto parafrásico, não marcado pelo sinal da diferença, se constituindo assim numa repetição dos textos oficiais. Os modernistas se posicionaram muitas vezes como os messias da modernidade e isso muitas vezes desembocou em atitudes acríticas como essa de Cassiano Ricardo, que não enxergou o caráter de exploração das riquezas do Brasil que as entradas e bandeiras levaram a efeito. Oswald de Andrade foi um pouco mais crítico quando os chamou de “pés de ferro”, ou seja, exploradores brutais.

3.5. Recepção de Cobra Norato
Pensando nos recursos de que uma obra dispõe para se inscrever em seu meio, tento capturar as vozes que nos informam sobre as leituras críticas de Cobra Norato, bem como perceber em que essa obra se relacionou com essas leituras e com o contexto da história brasileira da época.
Segundo Oswald de Andrade,
Em Cobra Norato, pela primeira vez se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude. Bopp fez o que Gonçalves Dias não conseguiu e o que mais de um modernista, viciado nos conchavos eleitorais do talento, teima em fracassar. (ANDRADE in BOPP, 1998: 37)
A grandiloqüência que marca a retórica da poesia modernista está toda nestas palavras de Oswald. Cobra Norato foi recebido como uma narração telúrica e grandiosa do Brasil, sendo considerado a rapsódia da nação brasileira. O poema boppiano foi também lido como uma quebra de modelos estéticos europeus, como uma ruptura com uma “metafísica de colarinhos duros”. (PAES in BOPP, 1998: 61)
Cobra Norato apareceu pela primeira vez em 1931, portanto, um ano depois da Revolução de Trinta.
A idéia do nacionalismo foi largamente usada no modernismo, funcionando como um mecanismo de defesa para um Brasil que, no século passado, importava produtos industriais e exportava produtos básicos, tais como o café, o açúcar, etc. Cobra Norato vem a público no momento em que Getúlio Vargas sobe ao poder, com toda a sua ambigüidade, com toda a sua competência para manipular amigos e inimigos, no sentido de se manter no poder. A respeito do nacionalismo de Raul Bopp e do nacionalismo modernista, nos diz Manuel Cavalcanti Proença:
Aquele “conceito ferozmente brasileiro” é a marca de todos os poemas onde aparecem negros, índios e portugueses que foram motivos da antropofagia modernista que buscava o retorno a um Brasil e América incontaminados da tradição européia. Por isso se festejara o dia 11 de outubro, véspera do descobrimento da América, último dia em que houve liberdade e ternura primitiva neste Brasil. (...) o livro de Mário de Andrade e este Cobra Norato justificam no mais alto grau a importância nacional desse momento e movimento. (CAVALCANTE in BOPP, 1998:60)
Esta a recepção crítica geral de Cobra Norato. Entretanto, o momento que se formava – devemos considerar que o livro só foi realmente conhecido a partir de 1937 – era o dos tenentes, que
estavam querendo experimentar formas políticas não democráticas, de molde a obter as modificações sociais e econômicas sobre as quais falavam de modo vago porém apaixonado. (SKIDMORE, s.d.:28).
É também o domínio de Getúlio Vargas, cuja capacidade de sedução é bem conhecida na história brasileira. Cobra Norato nasce portanto sob o signo da sedução e incorpora muito dessa sedução aos seus procedimentos, uma vez que manipula com mestria tanto a linguagem culta, literária, quanto a linguagem popular, gerando um fato estético híbrido, com um grande poder encantatório.
Vivendo num país de convivência de contrastes, é natural que o poema tenha incorporado em seu bojo essa convivência. Segundo José Paulo Paes
Não é mera coincidência o fato de os dois únicos livros da “bibliotequinha” antropofágica que chegaram a ser publicados versarem, ambos, o fabulário amazônico. Como também não foi acidental o terem sido escritos por homens do sul – Macunaíma pelo paulista Mário de Andrade, Cobra Norato pelo gaúcho Raul Bopp.
Sob o influxo do imigrante que veio substituir o braço escravo do Brasil abolicionista, o sul começou a se libertar mais cedo de um passado agrário que, se foi responsável pelo pitoresco de nosso folclore e pelo provincianismo dos nossos costumes, foi também responsável pelo absurdo de continuarmos sendo país essencialmente agrícola num mundo essencialmente industrial. Renovando dirigentes e dirigidos, trocando o senhor de engenho e o grande fazendeiro de café pelo capitão de indústria, o servo da gleba e o pário da bagaceira pelo operário da cidade, as manufaturas sulinas criavam a base para aquele “novo contrato social” por que tanto ansiavam antropófagos e tenentistas”. (PAES in BOPP, 1998:63)
Cobra Norato é, portanto, o poema do tenentismo que coloca em convivência todos esses Brasis – o agrícola, o industrial, o indígena, o africano – em um mesmo espaço: o do poema. Essa leitura dialética permite situar um divisor de águas na compreensão do modernismo. De acordo com Alves,
foi para esconder seu fraque, sua cartola e seu anel de bacharel, que Raul Bopp teve de se enfiar na pele de seda elástica da Cobra Norato. Não o tivesse feito e jamais conseguiria livre trânsito no reino da Cobra Grande, onde a floresta, inimiga dos homens, abomina particularmente os que trajam à européia. (ALVES in BOPP, 1998:64)
Essa convivência de contrários – o erudito, o popular – perpassa todo o texto de Raul Bopp e podemos pensar nestes termos mesmo no que diz respeito à poesia e prosa modernistas.
Entretanto, Cobra Norato serviu, junto com Macunaíma, para ferir os pressupostos racistas e europeizantes do século XIX, mostrando-nos um Brasil que, mesmo não tendo resolvido os seus conflitos e nem mesmo explicitado esses conflitos, conviveu com eles na arte. É de se pensar se o índio não teria se confrontado, por exemplo, com o homem do campo, ou não se pode esquecer como o operariado se confrontou ao longo de todo o século XX com a burguesia industrial. Muito se criticou essa burguesia, mas é de se perguntar qual era a linguagem desse operariado urbano que ocupa as metrópoles desde o começo do século com a imigração, sobretudo dos italianos, responsáveis pelo surgimento do movimento anarquista no Brasil. Apesar da ironia de um Oswald de Andrade contra essa burguesia emergente, o modernismo não plasma a linguagem desse operariado urbano que é a base de funcionamento de qualquer grande metrópole pelos serviços que presta. Apesar dessas reflexões, acredito que Raul Bopp contribuiu para fissurar a imagem delirante e alienada dos viajantes quinhentistas e também fender o racismo europeu que marcou depoimentos, como os dos viajantes do século XIX e de Sílvio Romero.

3.6. Cobra Norato, o cordel e o fabulário europeu
A relação que procuro estabelecer entre esses três universos visa a dar a perceber as traduções e retraduções adaptativas que os diferentes atores desse percurso fazem uns dos outros. Assim como o cordel se apropriou da matéria cavaleiresca e do ciclo arturiano e o expressou nos seus termos, vemos as características desses textos perpassarem também a estrutura de Cobra Norato, imprimindo o seu modo de funcionamento à sua face. É como se tivéssemos os três textos interagindo no poema sob a forma de estratégias narrativas que procurei explicitar no decorrer dessa análise.
Apesar de se estruturar predominantemente sobre a cultura indígena, Cobra Norato também incorpora a si alguma coisa do fabulário europeu.
Como já disse anteriormente, à maneira dos contos de fada europeus, o herói tem que vencer vários obstáculos, incluindo sortilégios e monstros terríveis, para salvar e possuir a princesa. O que desejo acrescentar é a adaptação que se faz na poesia de Raul Bopp, no sentido de transformar esse herói europeu num herói brasileiro, com repertório de recursos parecido com o do cordel. Pode-se dizer que coexistem nesse texto três formas de narrativa. A européia, a da própria poesia e a do cordel. No cordel, observa-se a substituição do príncipe por um herói sertanejo, que usurpa o poder desse príncipe e toma para si o objeto de desejo. Em Cobra Norato, o herói toma a pele do irmão bom e assume o lugar de sujeito de um desejo. O lugar ocupado pelo príncipe no fabulário europeu é tomado antropofagicamente por um herói que entra na pele de um ser mítico brasileiro.
Esse deixar-se levar por meio de outras experiências narrativas personifica como nunca o ideal de expressar o popular na poesia modernista. O travestimento subjacente à estrutura do poema, que coloca no lugar de um príncipe um herói brasileiro, traduz em cultura brasileira o fabulário europeu, expressando bem esse desejo utópico de harmonização de diferenças. Não pretendo resolver aqui essa equação de “indecidibilidade” proposta por Homi Bhabha nem pretendo encontrar uma síntese dialética que se transforme numa nova ontologia. Proponho apenas uma fricção que evidencie uma diferença ou várias diferenças, sem propor soluções que podem ser parciais ou pessoais.
Quanto à relação com o fabulário europeu, que envolve a matéria cavaleiresca, o ciclo arturiano e os contos de fadas, o que eu proponho é a percepção de uma adaptação da estrutura básica dos textos acima referidos. Segundo Jerusa Pires Ferreira,
Propp considera os contos maravilhosos, como uma cadeia de invariantes de uma mesma estrutura básica, que se repete sem limites, portanto uma arquimatriz. (FERREIRA, 1979:49)
Procurei flagrar a arquimatriz dos contos de fadas, do maravilhoso, nas lendas do ciclo arturiano e ajustá-lo às suas variações em Cobra Norato. Ainda segundo Jerusa,
Apesar de toda a dispersão previsível, a matéria se faz regular pela presença e constituição de uma verdadeira forma prévia sobre a qual incide a variação
Conforme a mesma Jerusa, acredita-se que o cordel brasileiro tem uma relação com a matéria cavaleiresca e com o ciclo arturiano, o que já ficou evidenciado em páginas anteriores. Assim sendo, estou propondo várias adaptações: a do poeta analisado para o viés encantatório e maravilhoso do ciclo arturiano e do conto infantil popular e para as próprias adaptações que o cordel faz.
Finalizando, as terras do sem-fim, mesmo que não se possa provar nada, têm uma inequívoca relação com a lendária corte do Rei Artur, porque, assim como a corte, não terá nunca a sua existência comprovada e, como soe acontecer na tradição oral, por não terem fim, serão sempre relembradas nos nossos corações.







CONCLUSÃO




Considerando os mitos pequenas metáforas, o caminho que os leva transfigurados à poesia é a travessia transformadora que define no nosso caso essa paisagem da voz à escrita. Só se pode, neste trabalho, comparar os resultados uma vez que os artifícios dessa travessia exigiriam uma outra dissertação. A metáfora, representada pelo mito, aparece na poesia como uma espécie de trânsfuga, travestimento da feição de onde vem, simulacro da terceira ordem. Chamando esse travestimento de transfiguração da voz intentei demonstrar como a experiência estética subverte os parâmetros da realidade em função do fator estético. Uma visão conservadora do fenômeno cultural (no caso a matéria mítica) talvez nos levasse a defender um purismo que garantisse a intocabilidade desses mitos. Ao contrário, estou defendendo aqui um processo de maculação. A maculação a que o fazer poético submete o mito subvertendo os seus parâmetros. O mito, maculado pela poesia, é forçado em seus limites, adquirindo a força da estesia e força também a poesia nos seus limites, conferindo-lhe a força de substrato da história, da tradição e da memória cultural que esses mitos representam.
Os mitos aparecem nesse contexto como lembrança, uma vez que estão transfigurados. Lembrança no sentido literal do termo, uma vez que estamos lidando com o seu simulacro. Daí o termo usado para definir esse trabalho: Sinais da Oralidade em Cobra Norato. A oralidade, aqui considerada voz carregada de sentido, encontra o seu veículo privilegiado nos mitos, que são expressão máxima da consciência de culturas ágrafas. Assim sendo, o intercâmbio entre as diferentes formas de expressão cultural encontra um modo de relacionamento que leva à teatralização da voz através da poesia, uma vez que a poesia tem uma inscrição na performance, já que pode ser recitada. E a poesia se nos configura como um mito letrado, posto que se constitui num duplo subvertido dessa voz das florestas. Entre a retina e a mente se nos afigura essa voz das matas soando em silêncio o seu rumo da terra. A função desse trabalho foi a de captar o percurso desse simulacro, das matas ao trabalho dos pesquisadores, do trabalho dos pesquisadores à poesia, da poesia aos corredores da academia. Tendo sido considerado o nono poema mais bonito do século na literatura brasileira, conclui-se que Cobra Norato contempla o século como um mutirão de vozes ancestrais subvertidas em poesia. A diferença se nos apresenta como um estímulo à comunicação que nos leva a dialogar com a tradição, não de uma maneira estática e conservadora, mas de uma maneira subversora, transformando a descontinuidade em forma de expressão, a ruptura em rumo. Intentei mostrar neste trabalho os modos de articulação das diferentes formas de expressão cultural, quer seja através de aparato teórico de que me cerquei, quer seja das minhas próprias elucubrações. No intercâmbio entre as diferenças, a tradutibilidade do outro em simulacro de grande valor nos afasta do mundo platônico no qual o outro é considerado um perigo à pureza original e nos coloca no mundo da terrível violência que nos faz crescer e entremostrar várias faces, negociadas na dura lapidação de conflitos ancestrais e no terrível expurgo de nossas velhas culpas. Tentei me afastar, através do meu trabalho teórico, desse velho mundo platônico de incomunicabilidade, fissurando a essência, violentando a verdade e apresentando a mácula. Entrando, portanto, no mundo da comunicação entre os homens, a partir de um eros sublimado na reflexão e na esperança. Que a esperança nos fecunde.

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ABSTRACT

In an attempt to capture signs of verbalisation in Cobra Norato, I have sought to establish a connection between indigenous culture (illiterate) and literate culture as a means to putting across the transformations this voice here represented by the indigenous myth went through, while it is the object of this interchange. In order to reach my goal I have collected from structuralism, sociology and anthropology, among other sciences, the tools necessary for the analysis. To bring out the signs of verbalisation in Raul Bopp’s poem; characters of this verbalisation in Raul Bopp’s poem, formal features of verbalisation, among other things. I have also reflected over the cultural hybridism resulting from the interaction that takes place between the experience of verbalisation (indigenouss myth) and the experience of the written text (studied poem) to expose the contemporary reality of the interconnection of such differences.


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