segunda-feira, 26 de março de 2018

















O INENARRÁVEL
DA EXISTÊNCIA











Helenice Maria Reis Rocha





ENIGMA DE PAZ


Um enigma de paz
indecifrado passeia
o silêncio das coisas.

Entre a voragem e o
estio baila a nudez
das horas vaticinando
imagens de palavras
caladas na gestação

Quem gera o verbo embala
o mundo manso do silêncio
pois que as palavras
são mudas em seu
estado de limbo

Renda fina ataviando
o verso o verbo cala
nas trincheiras dos objetos.

Palavra e mundo
comungam a mesma
solidão estática.










EXCELÊNCIA DO SONO


A excelência do sono me desvela
anelo de um descanço sem
pré adiado
em noites brancas de uma
vigília obstinada
Inalterada face muda do
tempo revela-me o
avesso do cansaço
deve ser o riso calado
dos mansos numa tarde
inalterada de sol














LIRISMO SEM COR


Um Lirismo sem cor me
cinge os sentidos
Vejo, sem muita clareza,
a matemática dos dons
Uns são médicos, outros
professores, e esse lirismo
lavando meu entendimento
sem destino
Lirismo sem profissão ou
rumo, como as pedras nas ladeiras.












AS UVAS

As uvas que batizam o
vinho ferem o ventre dos
desesperados
Os que não têm consolo
não descansam nem no vinho
De toda a maldade o que
sobra é uma grande
mágoa
A mágoa de não ter atrapalhado
aquele grande amor
ou de não ter impedido aquele
desejo no nascedouro.
Esse o consolo dos maus.
Mas a vida explode
como canção estilhaçando
esses cérberos
Exercitando a potência
dura da justiça
A vida escorre entre os
dedos duros dos carrascos





LIÇÕES


A poesia às vezes da
Lições de bonomia
Tiro do boné um verso
e cobro uma prenda
e a tarde permanece
intacta
sem a minha raiva
sem o meu desejo de
refazer o passado
e esse verso sentido
molhando liso as
quinas do tempo.








AVISO DA MEMÓRIA


O aviso da memória é a
triste defloração das veias
que molham o tempo
tempo tempo tempo
esse amigo mudo que abriga
todas as pretensões
Viver vinte anos em um
minuto exige calma, e
uma pontinha de desgosto
Afinal vinte anos não são uma
procissão de acertos
mas passam, como um minuto.







MINHA PROFISSÃO


Exercito a minha profissão
de fé no verbo profanando
o dito.
Duvide das afirmações
Elas carregam a sua própria
falência
Quem vem de lá com palavras
prontas estilhaça o trapézio
que a suspeita engendra
suspeito das palavras com
uma meticulosa engenharia
de dúvidas
e elas prosseguem num
desfile insólito de
non sense






EU VIA

Eu via
quando tudo da calma enfim
se perdia
que o teu não era a síntese
tardia do meu cansaço
E o teu colo que
sempre me foi negado
me parecia agora embarcação
distante levando
os ecos da sua distração
Não venha me dizer amado
amigo, que eu sou o equívoco
Somos apenas o que sobrou
de uma miragem














ASPIRO A UMA CERTA DIAFANEIDADE

Aspiro a uma certa
diafaneidade
Invejo a transparência do ar
que não se vê e que dá vida
a aula da natureza macula
A fina linguagem da delicadeza
mas prossigo
hipótese inverossímel da
uma leveza sem
nome









SOLIDEZ DESNUDA


Era a vida de toda
a solidez desnuda
devastando a quimérica
paciência da espera
Era o improvável grito de
presença emergindo do
túnel de passagem
Nasceu a criança, frágil
como a improbabilidade
presente como uma sentença











INSÔNIA


Reverencio a insônia
entrando na noite
indefesa
As aspas do sonho
balbuciam os revezes
dessa vigília
Nem sempre o desejo
é algo mais do que
uma insônia bem vivida.










LATÊNCIA DE UM MINUTO


A latência de um minuto
assim despido
fere o meu grito calado
na hora do açoite
Sufoquei o meu sexo em
um esgar de mansidão
para ouvir o meu amado
me chamar de anjo
Minha pele clama o afago
Anjo liquefeito em mágoa








MORTE

A morte visita meu desejo
em vestes de nudez lirial
tão clara, tão mansa
proclama o império
do silêncio de depois
vestindo a ausência
Não quero a morte
dos pássaros porque
significa o fim de
um vôo
Vou como quem finge
partida
despetalando permanências
em viés de nada.












FIBRAS DO VERBO


As fibras do verbo
tatuam altissonantes
ritos de sombra e
luz
O verbo proclama os
exponsais, os batismos,
as exéquias
corre desnudo nas praças
e batiza os senões
da memória
O claro e o escuro
ritualizado em vida
e morte dançam nas
vértebras do tempo






BATO O PÉ


Bato o pé no portal
das estradas
amasso o pergaminho
velho das minhas respostas
inúteis.
Não quero nada além
de um alarido de
vozes na sala
ou de algum recato
trespassado de calma
A vala dos aflitos permanece
nua sentenciando
o naufrágio da nau
dos sensatos.






VIBRAÇÃO DE VERBO


Uma vibração de verbo
trespassa o limbo de
palavras mutantes
Em cada quarto um
substantivo descansa
em calma solene de
realeza.
Não sei dos verbos e
das falas
Grito esculpindo no
silêncio um esboço
de incertezas.
Como cataventos as
palavras voam, significantes
e belas.





MÓ QUE MOE O TEMPO


A mó que moe o
tempo não dá avisos
de chegada e cada
minuto é nada em suas
mãos.
Vivi vinte anos como quem
cruza esquinas, entre o
cheiro da carne crua
e a nua viração das horas
Mais perto do fim,
preanuncio um novo enredo
O que poderia ter
sido e não fui.
O enlevo da minha
própria ausência.



SUPERFÍCIE DO MEU CANTO

A superfície lisa
do meu canto se derrama
sobre o meu fim
Por quem os sinos
dobram?
Pelo pranto que ninguém
ouviu
Por quem os hinos choram?
por nada
Um segundo vale um hino
e nada é segredo nos
abajures dos quartos
Precária intuição do
fim inaugura minhas
preces desnudas
agradeço meu canto
meu catre
minhas roupas
e minha alma
nua




SAPATO BREGA


Um sapato brega me
esfola os pés
uma roupa nova me aumenta
a fé
sonho com quem sonha um
sonho bem sonhado
junto, junto
abraço o mundo
Os justos hão de sambar um
samba de reunião
em noite clara de luar
Os puros hão de sambar
um samba de união
em dia limpo de sol.










ENIGMÁTICA PRECAUÇÃO

Enigmática precaução anuncia
o desenredo dos fins
Afinal o samba de roda
invadiu os corações e
faço tudo por um pouco
de café e pastel
Enfática premonição avisa o fim.











AS HORAS


As horas desfilam em
procissão desaguando
em mar de desenredo
Meu olhar atira uma
linha reta sobre a
vastidão da espera
Não são os olhos agudos
da urgência que balizam
a tecitura do grito
mas a dolência fria
do canto mudo do silêncio










VÁRZEAS

Não vejo várzeas
na solicitude clara
dos risos nem abismos
no teorema da amargura
A cada coisa o seu cuidado,
a cada coisa o seu
juízo modulando
cismas.












IRONIA DE ATREVIMENTO

Faceira ironia de atrevimento
fatal
Hoje, desmancho as pétalas
do meu riso
vendo rendas em gritos
despetalando alvíssaras
em sombras













EXERCÍCIO DO GRITO


O exercício do grito tem gradações
o grito seco sempre pára como estaca
Um grito rouco emudece
as manhãs
fechando o riso louco
das esperas
Com as vísceras abertas
os obstinados
celebram o devir








MEU PAI, MEU AGUILHÃO


Meu pai, meu aguilhão
Não vá por aí,
não vá!
A linha reta das esquinas desafiando
minha coragem
Arrisco as procelas na
barca da incerteza
e vejo.
Nem o grito do meu
pai me tirou o Juízo
vocação indelével para
a mansidão
Mas grito,
o grito manso dos abandonados.










PSALMO DAS ESPÉCIES


Psalmo das espécies
a respiração de ânimo
psalmânica regurgita
nas avenidas, grita nas
esquinas e se acalma
nos campos, onde o silêncio
arfa tertúlias de
gramínias roucas de orvalho









AMO A VIDA


Amo a vida como quem
murmura o balbucio
de um beijo.
Espero o amado o amigo
o confidente,
nas entrelinhas da manhã
nas fímbrias da noite
sempre no avesso das
travessias.
Calma ardente de
viagem com volta.









AS MARGENS DO GRITO


As margens do grito
mapeando rios de avisos
avisos de riscos
passados, presentes
e de riscos porvindouros
Sou presságio e
profecia em
dias de esperança
dimensão trágica
em cotidiano morno
espasmo em águas de
calmaria.






CANTO REPENTINO


O canto repentino do
bem-te-vi acende
as manhãs
acredito no bem-te-vi
com quem crê a
alegria em doses
homeopáticas
para cada amargura
uma alegria batizando
a neutralidade das
coisas
e paz
vencendo muralhas de
incerteza.
e a cor do dia nem
tem a baliza de um matiz.



VOCAÇÃO DE ESQUECIMENTO

Uma vocação de esquecimento
deságua em filigramas
de fala
Aonde, minha amiga,
o crime de tomar
calmantes?
Na anestesia dos sentidos
que deve ser vivida,
Penso em Cecília e
na sua paz,
desaqueço essa tristeza
aguda que me consome
e me entrego a um
pacto fatal com a vida.
E as tulipas,
as damas da
noite na praça?
Abissais quimeras de
prazer.






RISO DA MANSIDÃO


É simples o riso
da mansidão
As vezes custa o vômito
engolido mas traduz
a paz da consciência
Traduzo o meu escárnio
nesse riso
Aos muito brutos o
meu ofertório de silêncio










PAZ DA AUSÊNCIA


Adormeço a paz da
ausência
aliciando incógnitas
os jardins do entendimento
perfumam tardes
silenciosas em bocejos
nus
A ausência é um longo
sono sem nome
Sereno como papagaios
ao vento.









INVENTO VÁRZEAS


Invento várzeas no
instante do grito
Um passeio solitário
pelas veias do absurdo
me renova
Quem vê quimeras
em grãos de ervilhas
merece o reino dos
céus.
Eterna monja da incógnita
que sempre serei






RUMOR DOS ACONTECIMENTOS

Não vivo o rumor
dos acontecimentos e nem
pastorinhas me comovem
Sacrifico meu sorriso
no altar dos deuses
se eles me disserem
prá quê existo senão
prá louvar qualquer grito
e prefigurar a indefinição
dos rumos
Rios ásperos de uma
indefinida consumação
banham o coração selvagem
dos meus dias
Rios plácidos de uma
consumação sem batismo
consomem o olhar feroz
dos meus ritos




AMANHECE O CLAMOR


Amanhece o clamor do
meu grito num dia
de calma
sutil circunstância de
tensão e drama, ação
e prolongada viagem sobre
a voragem do amor
Mas não é do meu
grito que se faz
matérica concreção
dos rumos da alma
e nem do meu drama
o messiânico olor
das calmas águas dos
rios e assim, não
grito, canto, os passos
geométricos dos passantes
nas ruas, dançando vidas
em paralelepípedos nus.


PAZ FLUTUA


A paz flutua entre ninhos
de pássaros sem plumagem
abençoando a fragilidade
O canhão e a flor se
equivalem num momento
de silêncio
Penso a paz como
quem constrói ninhos
e sei, esse enigma
será decifrado.
A paz adormece em
um menino nu, nas ruas,
pedindo esmola.
A humildade do gesto
clama a mansidão do pedido
Gemido terno de eterna
fuga pedindo passagem.






TOM DE UM VERSO



Não é só o tom de
um verso o que me
acalenta
Também o som das
manhãs me beijam os
cernes
leves marcas de
iluminada presença chegando
céleres no grito dos pássaros,
nos passos dos meninos.
Não é só o gemido manso
da noite o que me adormece,
mas também as velhas
litanias das avós,
refazendo memórias em
falas brandas




AMANHÃ

Amanhã cumprirei o desígnio
de cortejar exéquias
Hoje não
Hoje quero a manhã intacta
sem fuligens industriais
ou o beijo sujo da fumaça
dos ônibus
Hoje, quero o dia inteiro,
sem o gemido dos mendigos
ou o grito dos camelôs
Hoje, quero a inocência da
alegria
uma litania nordestina
um fado
Amanhã, somente amanhã,
cumprirei o destino de
me lembrar que tenho fim
Hoje, só o sol me cumprimenta.



DEVER DA GENTILEZA

Descumprirei o dever da
gentileza em nome do
meu grito
grito o clamor da fome
o desmaio de mendigo
a nudez dos meninos
nas praças
toda a graça reside no
legítimo gemido dos
velhos, no choro da
criança nas ruas
Descumprirei o dever da
paz em nome das vísceras
expostas, em nome
do que não tem nome,
do corpo nu na estrada.
De quantas cruzes sairão
a minha voz não sei,
mas hoje, não, não cumprirei
o protocolo, nem
as exigências da minha
mansidão.






CONSTRUÍ UMA FALA


Construí uma fala enfeitada
de siso
e em cada tijolo bordei
avisos de manhã
brindei meus inimigos
com o sopro de um
beijo










FALO BAIXO


Eu falo baixo porque meu
grito é longo e não tem voz
Não me basta um som
no ar
quero crestar a trama dos ímpios
e banhar a mudez dos
aflitos
Meu grito vem de longe
onde as vísceras têm cicatriz
e o dia corre horrorizado
nas avenidas nuas
Meu grito fugiu à mordaça
dos sábios
sempre empunhada em punhal
emudecendo os inocentes






VAZIO DE VÉSPERAS


Um vazio de vésperas
me inunda
Ontem, nem o mendigo
de sempre me visitou
A manhã enalteceu a inalterada
face muda do silêncio
Ontem, nem o pio do bem-te-vi
batizou minha
pele
Ontem, o endereço do passado
banhou minha medula
Beijou minha face nua








DOCES RUAS NUAS


Doces ruas nuas da
minha infância,
o louco das esquinas
o bêbado
o homem do algodão doce
o beiju.
Que pode o ódio contra
as ruas da infância?
Pouco ou nada que o tempo
tem nome e o passado
brinca no limbo
da memória







BEIJO DO LIMBO


O beijo do limbo extravia
a face limpa do tempo
Tempo de entre-lugar
entre-tempo
onde nenhuma designação
das horas anuncia a
manhã
O sol, desornada
face da luz não
banha o limbo
das manhãs
inacreditáveis manhãs
silenciosas do domingo






ESCRITA NUA

Escolhi a minha escrita
nua porque me
desvesti de uma nudez
limpa, banhada de
silêncio
Escondi a minha fala
crua para
não escandalizar
na assembléia dos
sábios.
Hoje, estrangeira entre
iguais, atesto meu grito
de mansidão na corte
dos bobos, declarada
face de uma desculpa
sem nome.
Não vi o bonde mas
canto a
passagem




RISCANDO O AR


Riscando o ar da água
a chuva desafina a
vocação de sol
Boa, dadivosa como uma
pausa
cristal de água filtrando
a luz
Tomara fosse de todas
as chuvas a passagem
para o spleen da
paz
Cai, deflorando o
ofertório de secura
que o calor inaugura
cai, oferecendo flor
e semente no olor
da tarde.



SEDA GELATINOSA


Seda gelatinosa
tua permanência
no meu verso
Não desmascara tua
presença auguriando
o fim de um amor
vão
vou, por aí
em doces e ásperos
caminhos
sem ti
sem mim
sem nenhuma intuição
de alguém na minha
orgia de nada.








AUGÚRIO DOS COMEÇOS


Batizo o augúrio dos
começos
alisando as arestas do
fim pré-anunciado
Percorro o silêncio das
salas como quem proclama
sentenças
Nada me demove da minha
vocação para o fim
Nem beijo
Nem cheiro do mato
só o matiz do tempo desenfibrando
o meu sim.







BATISMO DAS VÍSCERAS

Proclamo o batismo das
vísceras desentranhando
o grito nu das crianças
nas ruas
O avesso da bem aventurança
declama o anúncio dos
fins nesse grito
O avesso desencova os
mortos nas avenidas.
Um dedo sangra em cima
do balcão dos tecidos
bem nascidos, os que vão morrer
vos saúdam.

















ARQUITETURA DE AVISOS


Fiz dos meus dias uma
arquitetura de avisos
Bailei sobre os meus
presságios
ágeis mensagens sobre o
olor dos acontecimentos
Momentos de alegria e
de dor batizaram meus
risos
Sou o eco de uma espera.









VERBO SECO


Um verbo seco desentranha
minha fala
Vi a bela mensagem dos
avessos maculando a
limpidez das salas
fecundo grito de esquecidas
valas
O resto do esquecimento
me visitou a memória
Sonho, canto e acaricio
o delírio que não
entrou na história.








ERRÂNCIA SEM COR


Uma errância sem cor
encanece meus dias
Lia os jornais como
quem devora ruas de
um sono letárgico
Batizava luas de lugares
sem nome
Hoje, ignoro os gritos do
passado
Bailo crua sobre o branco
dos cabelos
eu, nua








AMANHEÇO ABSORTA


Amanheço absorta
pura definição
e meio morta
Clareza e indecisão soltam
fagulhas em minha matéria
inerte
Inerme, beijo minha solidão
Os carros passam na rua,
crianças gritam
E eu, clareza e indecisão
na minha alma sem porta









ENTRE UM POEMA E O SILÊNCIO


O instante entre um
poema e o silêncio é
a nudez das feras
Um tigre baila solto entre
os meus versos e sangra
a beleza toda neste instante
de dor
O verso e o escárnio se equivalem
quando a dor fere os seus cernes
Como pluma, o tigre
como sangue, a palavra.










ECOS DE MIM

Quero enganar os ecos
de mim
Ir aonde eu não vou
separar-me do que sou
Quero ir prá longe de mim
aonde não alcançam os vôos da
minha insensatez
Adejar a memória do que fui
e dizer adeus
Quero ir prá longe do que eu
amei
beijando a sombra do que fui.








INENARRÁVEL AUSÊNCIA

A inenarrável ausência
do fim
consome meus dias
Não tenho presença nos
términos da existência
nem voz nas salas
Estou, sem fim, balbuciando
beijos à minha passagem
e ninguém vê
Babujo a vida com a minha
espera sem nome.










INCÓGNITAS


Sempre enganei as incógnitas
aspergindo pó na incerteza
Vejo o ângulo torto dos
espelhos
onde ninguém vê nada
Cada palavra um batismo
Cada vírgula uma sentença
ferindo exatamente
essa minha sede abissal
de nada









LEDOS DIAS


Ledos dias enganando
feras
Mansos dias exercitando
o vão ofício de ludibriar
meus carrascos
todos, em fila diante do
meu horror
escondidos nas quinas
do vento, na viragem
das esquinas
Faço com eles um trato:
entrego-lhes o meu fim
e realizo minhas delícias








CORRE DESNUDO


O dia corre desnudo
como quem batiza travessias
alisando o silêncio
A tarde, tecendo os sons da
rua, parece uma trama
de ruídos nus.
Vejo a tarde como quem
vê as rendas de um enxoval,
com seus pregões
seus mendigos
suas crianças
enxoval de homens
adernando minha indecisão.









O DIA NU


O dia nu
escorre cru
sobre o lençol da tarde
A noite nua
baila, escoa
sob o céu liso
A tarde dança
sob o sol








TEMPO


O tempo visceja em dias
de prodigalidade
A cidade, mortal combatente
de dias infindos, de noites
viscerais, soluça um gemido
de leoa ferida.
Não vejo o fim, vejo
o grito, o clamor do pregão
soterrando homens, e danço,
faceira sob o olor das tardes
O fim não vale o meu preço.











O VIÉS DO NADA


O viés do nada e a fluência
das horas balança os cernes
da incerteza
Tudo flui nas entrelinhas
do tempo
Entre o tempo e o nada
a civilização dança seus gritos.
soluço de lasciva demonstração
de um clamor difuso
Prossigo, indefinido
teorema de silêncio.










O AR

O ar soluça o balanço
das chuvas
gritos, tumbas vivas de
homens e crianças, os poderes
públicos imberbes
intempérie e água
Os poderes públicos feéricos,
anunciam os salários dos
deputados e a cidade
morre.










AS PORTAS CLAMAM


As portas clamam o destino
de permanecerem fechadas, pétrea
simulação de um mundo-mudo.
Busco o portal do silêncio
encontro gritos atrás dos muros.
A cidadela intocada e os gritos
em volta.
A inércia tece musgos dentro
dela. E os homens morrem, nas
portas dos hospitais, fechadas.














FACE MUDA

Enredei o dia em minha
face muda, trancei os pingos
da chuva e percorri incógnita
as estradas.
Hoje, me delicio nas esquinas
onde se descortinam todos os
ângulos, espero, simulo, teço
a tessitura do meu grito e
me banho de sol.











TANGO ARGENTINO

Não posso dançar um tango
argentino
Não tenho pés dançantes
Meu corpo pisa o chão como
quem sabe do solo as asperezas
Desvirgino a delicadeza com
rudes maquinações
beijo a face do pó como
quem desmascara quimeras
Sou barro e olor de terra
em tempo de viragem
Quem ri o suor das horas
tem as garras do tempo
na mão.








BAILADO DA PAIXÃO


O bailado da paixão me
penetra poros adentro
Penso as horas como quem
tira suor das vértebras
Estranho o verbo
a insólita inexatidão da
palavra
A paixão não cabe nela
consumação da impossível
sutiliza do ser
















RUAS NÃO VALEM O PÓ


As ruas não valem o pó
que me transpira a face
banais
carnais
balançam o vidro dos minutos
em tempo acelerado
As esquinas passam num
segundo, a cada ponto um
novo ângulo de vista
Batizo as ruas com meu sorriso
estrangeiro e bailo, um bailado
mudo de vivente nua.








VIVÊNCIA CRUA


A vivência crua do silêncio
me batiza os cernes.
Sou carne temporã em
festas antigas
Do batismo tiro as regalias
do nome, o que me sobrou
por morada
Não vejo luz no sol sempre
que abro a janela
antes, pressauguro o
grito da noite
e danço um samba rascante








SUOR DA FACE


Vejamos, quem sabe do
suor a face não morre
pagão,
O batismo do suor lava,
declara passagens de
peso e gravidade, o
suor do corpo lavando as
mãos.
Convenhamos, quem já suou
sobre o pão tem a alma
alada dos anjos
mas sem a aragem dos
pássaros, não.






DESCONFORTO


De todo desconforto
quero tirar uma ode
Fazer do odre seco da
amargura um hino
e dançar uma polca
nua no viaduto do chá
De todo o desgosto da
vida quero tirar uma fatia
Fazer tripas do meu coração
cansado e seguir
com um blue etílico nas veias.











GLÂNDULAS DO SILÊNCIO


As glândulas do silêncio
defloram os caminhos da voz
Em tudo há a quietude de
uma mansidão sem nome
Meu coração assinalado pela
loucura acaricia as vagas dos
insensatos com um sorriso calmo
Estou aqui, como antes
pronta e sem ninguém












NOSSA SENHORA


Minha Nossa Senhora, senhora
de todos nós
precisamos do aconchego das
horas e dos filhos ao redor
precisamos do homem amado
do amado amante que em
um momento mudo nos
coloca ao colo
eis tudo







DEUS
Deus, eu não sou nada e
sou tudo
massa em mão de moleiro
anônimo
não sou Juízo ou ausência
em balanço de começo e
de fins.
Sou improviso do acaso
jogada ao chão
Meu silêncio chora mansamente
a síntese do barro
Do nó górdico a quimérica
face
entrego minha carne à
feérica trituração dos
deuses
elegendo o grito estertórico
de Prometeu.
Não renuncio ao meu lugar
de carne, carcaça, ventre
em descanso à espera de vida
e batizo de peito nu a
minha ausência no
dia do meu fim.





SAUDADE DE MINHA IRMÃ


Saudade de minha irmã,
de mim, de tudo que ela
é e que eu não sou
eu que mergulhei no vento
e me absorvi no pó da
terra, que andei embriagada
com ela nas praças
e fui tão árvore quanto
qualquer árvore nos parques
e estou só.





FALAR DE AMOR
Hoje e sempre eu quero
falar de amor
amor timbrado de margens
maculado pela dor do silêncio
amor carne
amor espírito
amor sentença
Hoje eu quero falar do amor
marcado pela sombra de um grito
eviscerado de ternura e prazer
amor condescendência
amor indecente
amor de irmão
amor de filha
e neste momento, humildemente,
digo a você que me lê
que te amo,
como amo meu pai, minha mãe
e meus irmãos,
como amo o sol
a incógnita de tudo o que se chama amor
o impossível de amar
como amo os homens e as mulheres
Meu coração, uma barca abissal de amor.

AMAR

Amar em largos ou mínimos
gestos de paciência o desvelo
da (im) possível convivência,
eis a ponte entre tudo que
ama, gemendo ou sorrindo
a face mesma de sentir.
Amar em passos mínimos
ou largos o caminho do
amor, sentindo na
carne a força de uma escolha
sem retorno.
Amar o que odeia, o que
geme, o que ri, o que sangra
Sangue do amor que se faz
carne e espírito
Difícil equivalência entre
trapézio e sentimento
Amar mesmo quando não se tem o
que amar
A difícil arte apreendida
em semente.

Í N D I C E


ENIGMA DE PAZ .................................................................................................. 1
EXCELÊNCIA DO SONO ..................................................................................... 2
LIRISMO SEM COR ............................................................................................. 3
AS UVAS ............................................................................................................. 4
LIÇÕES ................................................................................................................ 5
AVISO DA MEMÓRIA .......................................................................................... 6
MINHA PROFISSÃO ............................................................................................ 7
EU VIA ................................................................................................................. 8
ASPIRO A UMA CERTA DIAFANEIDADE .......................................................... 9
SOLIDEZ DESNUDA ........................................................................................... 10
INSÔNIA .............................................................................................................. 11
LATÊNCIA DE UM MINUTO ................................................................................ 12
MORTE ................................................................................................................ 13
FIBRAS DO VERBO ............................................................................................ 14
BATO O PÉ ......................................................................................................... 15
VIBRAÇÃO DE VERBO ...................................................................................... 16
MÓ QUE MOE O TEMPO ................................................................................... 17
SUPERFÍCIE DO MEU CANTO ......................................................................... 18
SAPATO BREGA ................................................................................................ 19
ENIGMÁTICA PRECAUÇÃO .............................................................................. 20
AS HORAS .......................................................................................................... 21
VÁRZEAS ........................................................................................................... 22
IRONIA DE ATREVIMENTO .............................................................................. 23
EXERCÍCIO DO GRITO ..................................................................................... 24
MEU PAI, MEU AGUILHÃO ............................................................................... 25
PSALMO DAS ESPÉCIES ................................................................................. 26
AMO A VIDA ...................................................................................................... 27
AS MARGENS DO GRITO ................................................................................ 28
CANTO REPENTINO ........................................................................................ 29
VOCAÇÃO DE ESQUECIMENTO .................................................................... 30
RISO DA MANSIDÃO ....................................................................................... 31
PAZ DA AUSÊNCIA ......................................................................................... 32


INVENTO VÁRZEAS ......................................................................................... 33
RUMOR DOS ACONTECIMENTOS ................................................................. 34
AMANHECE O CLAMOR .................................................................................. 35
PAZ FLUTUA ..................................................................................................... 36
TOM DE UM VERSO ......................................................................................... 37
AMANHÃ ............................................................................................................ 38
DEVER DA GENTILEZA .................................................................................... 39
CONSTRUÍ UMA FALA ...................................................................................... 40
FALO BAIXO ...................................................................................................... 41
VAZIO DE VÉSPERAS ...................................................................................... 42
DOCES RUAS NUAS ......................................................................................... 43
BEIJO DO LIMBO ............................................................................................... 44
ESCRITA NUA .................................................................................................... 45
RISCANDO O AR ............................................................................................... 46
SEDA GELATINOSA .......................................................................................... 47
AUGÚRIO DOS COMEÇOS ............................................................................... 48
BATISMO DAS VÍSCERAS ................................................................................ 49
ARQUITETURA DE AVISOS ............................................................................. 50
VERBO SECO ................................................................................................... 51
ERRÂNCIA SEM COR ...................................................................................... 52
AMANHEÇO ABSORTA .................................................................................... 53
ENTRE UM POEMA E O SILÊNCIO ................................................................. 54
ECOS DE MIM ................................................................................................... 55
INENARRÁVEL AUSÊNCIA .............................................................................. 56
INCÓGNITAS .................................................................................................... 57
LEDOS DIAS ..................................................................................................... 58
CORRE DESNUDO ........................................................................................... 59
O DIA NU ........................................................................................................... 60
TEMPO .............................................................................................................. 61
O VIÉS DO NADA ............................................................................................. 62
O AR ................................................................................................................. 63
AS PORTAS CLAMAM ..................................................................................... 64
FACE MUDA .................................................................................................... 65
TANGO ARGENTINO ....................................................................................... 66


BAILADO DA PAIXÃO ...................................................................................... 67
RUAS NÃO VALEM O PÓ ................................................................................ 68
VIVÊNCIA CRUA .............................................................................................. 69
SUOR DA FACE ............................................................................................... 70
DESCONFORTO .............................................................................................. 71
GLÂNDULAS DO SILÊNCIO ............................................................................ 72
NOSSA SENHORA ........................................................................................... 73
DEUS ................................................................................................................ 74
SAUDADE DE MINHA IRMÃ ............................................................................ 75
FALAR DE AMOR ............................................................................................. 76
AMAR ................................................................................................................ 77

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