quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

os sentidos da nudez na crônica de fernando sabino

Os Sentidos da Nudez em Fernando Sabino Helenice Maria Reis Rocha Pretendo, neste estudo, mostrar os sentidos produzidos por Fernando Sabino entre nudez, estado, identidade e filosofia, partindo da crônica: “O Homem Nu” e das relações que esta crônica estabelece entre nudez, totalitarismo de estado e non sense uma vez que referencia Kafka e a sua metáfora de autoritarismo de Estado através do absurdo (O Processo), de uma ameaça policial de uma senhora idosa e da própria referência verbal ao autoritarismo de Estado e à nudez. A partir de uma porta que se fecha casualmente, num incidente do cotidiano, o homem nu se vê diante da própria nudez quando toda a noção de cidadania se recoloca nos seguintes termos: a partir de que ponto de vista a nudez pode ser considerada crime passível de punição .Se o estado pune a nudez por uma questão de "costumes" não puniu, à época em que esta crônica foi escrita, julgamentos kafkianos, sumários, pela simples emissão de uma opinião. Com a identidade fragmentada entre o espaço privado da propriedade e a lei que regulamenta a relação do corpo humano com a polis estabelece-se uma confrontação entre nudez privada e pública, como se a responsabilidade do cidadão com a própria exposição cessasse intramuros. Talvez seja imanente a noção de que a responsabilidade do Estado com o cidadão seja menor diante da propriedade privada. Tentarei explicitar uma alegoria da clandestinidade que me parece imanente ao texto nos momentos em que o personagem tenta se eximir da à própria nudez escondendo-se. A oposição - olhar do vizinho, portanto, proprietário, territorializado, homem nu, fora de casa... - me remete às situações de exílio nas décadas de sessenta e setenta, ao olhar que se dirige aos expatriados, desterritorializados, ou seja, fora de solo pátrio (casa), estranho, bárbaro, fora da lei. Ocorre-me aqui, agora, o texto de Júlia Kristewa, “Estrangeiros para Nós Mesmos” e o slogan recorrente na época, “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. Segundo o costume às portas fechadas tudo é possível. Intramuros podemos nos arguir se a recíproca não é verdadeira. Nesta crônica o estranho está nu, expatriado e a descoberto da Lei. Resta-lhe esconder o corpo, clandestinar-se porque está nu, desarmado e sem defesas, como os mendigos, as populações de rua, exposto à qualquer coisa. De um ponto de vista policial, fere os bons costumes, de um ponto de vista societário, não paga a própria territorialidade pelo imposto, uma vez que está fora dela. Resta-lhe esconder ou camuflar a nudez deixando de existir como corporeidade. E portando como certidão de nascimento, casamento, carteira de trabalho... Um morto em efígie. Este o estratagema da cultura que opõe - nu igual _a fora da Lei, feridor dos bons costumes, vestido, coberto pelos direitos constitucionais, pelos direitos inerentes à territorialidade... Faz-me lembrar a seguinte colocação filosófica de Homi K.Bnabna: “Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do outro que reforça sua própria equação conhecimento-poder!”. (BHABHA, 1998, p. 41) A nudez nos aproxima de todos os despossuídos que estão à margem das garantias das leis de propriedade, de poder político, de poder econômico. O hapenning de Francisco de Assis se confronta com a propriedade e com a desigualdade dentro dela. Intramuros tudo é possível... Quando o homem nu se esconde embaixo da escada, no desvão, significa tudo o que é clandestino, marginalizado, uma vez que este é o lugar da escada que não tem o sentido que a cidadania dá ao uso. Está nu. Debaixo da escada e é um brasileiro. Um brasileiro nu. Quando Canclini nos diz: “Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país. uma cidade ou um bairro,em que tudo é compartilhado pelos que habitam este lugar se tornasse idêntico ou intercambiável.Nestes territórios a identidade é posta em cena,celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos”. (CANCLINI, 1997, p.160) Podemos nos perguntar: porque a nudez não é compartilhada? Porque o lugar dos desnudados é um não lugar. É o lugar dos mendigos, daqueles que estão à deriva, dos que deixam os pertences na porta de entrada. Se, mesmo sem ter cometido crime algum, estou nu na polis, posso ser preso por atentado ao pudor, eu, nós que nascemos nus. Perdem-se todos os direitos de cidadania carteira de identidade, título de eleitor, mas se estiver muito bem vestido e com uma dívida enorme, esta dívida é negociável. Este o território da nudez na polis. Este sentido de ruptura com todas as formas de compartilhamento e identificação se dá, mesmo que o individuo nu tenha pagado o seu imposto e cumprido com seus deveres eleitorais se dá porque a nudez está associada a toda uma gama de significações negativas já facilmente demarcáveis pelo caldo de cultura da aldeia global. O Homem Nu tenta se esconder no desvão da escada,tenta subir no elevado num momento em que não haja ninguém, se esgueira de todas as formas para não ser percebido. Mesmo tendo pagado o imposto e estando em dia com as obrigações eleitorais a crônica descreve este evento, um homem que, por acaso, tem uma porta de casa batida e fica do lado de fora, por acidente só que está nu. A aparente banalidade da narração foi um recurso muito usado por escritores das décadas de sessenta e setenta para camuflar alegorias das ditaduras latinas americanas e ibéricas. Esta aparente banalidade tem como imanência o fato de que esta nudez não foi buscada, mas imposta por um acidente do destino, exatamente como a nudez de toda a sorte de despossuídos. No momento em que a porta se fecha o personagem assim se expressa: “Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor.Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito,mas ninguém veio abrir.Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão.Bateu com o nó dos dedos: -Maria! Abre aí Maria, Sou eu - chamou em voz baixa. Quanto mais batia,mais silêncio fazia lá dentro.(SABINO,1960, p. 65) Podemos observar aí os signos do terror... Ansiedade... Em contraste com a súbita interrupção dos ruídos familiares, intramuros, desterritorialização, expatriamento. Agia quase como um refugiado político. Vejamos: “Refugiado no lanço da escada entre dois andares, esperou que o elevador passasse...” (SABINO, 1960, p. 65). Exatamente o entre lugar daqueles que, não sendo expulsos, não são propriamente aceitos, os refugiados políticos. A aparente banalidade desta situação assim narrada, na década de sessenta, num contexto de ditaduras, guerra fria, aproxima esta crônica da linguagem metafórica da poesia, no mais das vezes usada como forma camuflada de dizer verdades duras em momentos perigosos. Segundo Otavio Paz: “La poesia moderna ha sido e es una pasión revolucionária, pero esta pasión ha sido desdichada. Afinidad y ruptura...” (PAZ, 1974, p. 69). O personagem fica neste lugar de afinidade e ruptura, entrelugar de territorialidade (casa) passada e de desterro presente, mesmo que momentâneo à antiga familiaridade: “Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho....” (SABINO, 1960, p. 65), Sobrevém o pânico, a perda de referências, a incerteza, a identidade fragmentada, nos dizeres de Stuart Hall, entre o antes e o depois. O Narrador sai de si, da sua própria experiência e une numa operação dialética vários sentidos que não se dão à superfície da linguagem e que são resgatáveis a partir de uma leitura mais acurada. Segundo Benjamin... o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, mas para muitos casos, como o sábio, pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). Com isto quero dizer que Sabino expressou, para além da banalidade de uma crônica do cotidiano, a experiência de uma geração e possivelmente de todo um processo civilizatório. No momento em que a porta se fecha o autor, através do personagem, nos diz... “Começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror”. (SABINO, 1960, p. 65) A pergunta que não quer calar é: por que razão um relato banal de um incidente cotidiano, que poderia ser considerado até engraçado, no remete a Regime de Terror e a Kafka senão para nos provocar um deslizamento a uma outra dimensão da linguagem, a um subentendido? O personagem de Kafka é submetido e condenado, sem crime algum, por juízes que não se identificam. Toda uma problemática política e civilizatória é imanente a esta crônica sem que isto seja dito diretamente. Ocorre-me neste momento até uma semelhança estrutural com a poesia de Manuel Bandeira que, dentro do arcabouço da linguagem coloquial chega a relatos dramáticos de circunstâncias existenciais de extremos. É interessante registrar aqui também que a situação dentro da casa, da propriedade, é de paz e segurança o que me parece der uma velada ironia que se faz entre o sentido que o mundo contemporâneo dá à propriedade ou à ausência dela. O autor contrapõe claramente, nudez, mundo de fora dos muros da propriedade à segurança, interior, lar aos expropriados o rigor da nudez, aos apropriados o calor da intimidade. Para chegar a estas conclusões vali-me de um "recuo nadificador" nos dizeres de Sartre, através do qual transformei em nada o relato imediato e comecei a estabelecer as correlações possíveis com o contexto político das décadas de sessenta e setenta. Segundo Stuart Hall: "o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. (HALL, 1997, p.13) A identidade do personagem é fragmentada entre, dentro, fora, nu, vestido, seguro, em risco, enfim, vários pares de sentidos que se contrapõem mostrando toda a ambiguidade espiritual e ética das décadas de sessenta e setenta. Segundo Julia Kristeva: "os fundamentalistas são mais fundamentais quando perdem toda a ligação material, inventando para si próprios um nós puramente simbólico que, enraiza-se num rito até atingir a sua essência, que é o sacrifício”. (KRISTEVA, 1994, p.30) Partindo da falsa noção de participar de um agrupamento humano em segurança por possuir uma propriedade e a chave desta propriedade, o personagem quase protagoniza uma tragédia por razão de um simples incidente. Cabe a singela pergunta. Quem somos nós?

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