segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Política Salarial

Política Salarial Para praticar a atual política salarial brasileira para professores no Brasil é preciso ser genocidaOs professores aceitam os acordos porque não têm outra opçãoA mesma coisa para aposentados e pensionistas Vivi vinte anos com dois salários mínimos e meio,cuidando de uma mãe com sérios problemas de saúde,tinha artrose na coluna inteiraDepois da morte dela passei a receber a parte que cabia a ela e uma pequena Pensão MilitarO Instituto me retirou a Pensão e está cobrando um retroativo que é todo o patrimônio que eu tenhoOu seja,posso ir parar nas ruas da cidadeA lei que orienta o meu processo é de mil novecentos e cinquenta e um Não tem nenhuma proibição sobre o recebimento deduas pensões A lei que proíbe é de mil novecentos e noventa e umPela lei que deu motivo ao meu benefício eu posso receber duas pensões,já que a lei não retroage para prejudicarPortanto,este retroativo me parece uma pilhagem nos moldes das pilhagens nazifacistasPelo que acabei de escrever,fica claro que eu não poderia saber desta proibiçãoFiz todo o meu trabalho de professora de graça,uma vez que a referida lei me proibia trabalho remuneradoParticipei de vários congressos,publicando meus trabalhos,de graçaComo aliás fazem todos os professoresMuitos professores,aposentados e pensionistas podem ter morrido de fome,de frio e de sede neste percurso A minha boa fé pode me garantir um perdão deste retroativo mas o estranho é que a Lei que garante o meu processo não proíbe duas pensõesPosso estar lidando com genocidas Funcionários ignorantes que praticam o genocídioBanalização do MalPeço a Deus para não ir parar nas ruas de Belo Horizonte Helenice Maria Reis Rocha

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Pensão,Finalização

A Pensão Continuação Finalizando A Lei que informa meu processo de Pensão é de mil novecentos e cinquenta e um Não proíbe a possibilidade do recebimento de duas pensõesA Lei que proíbe o recebimento de duas pensões é de mil novecentos e noventa e umO Instituto cancelou a Pensão e está cobrando um retroativo de setecentos e onze mil e oitenta e cincoÉ todo o pequeno patrimônio que tenho Ficaria na rua Isto me lembra as pilhagens nazistas Rezo todo dia,fervorosamente para que estes funcionários tenham o mesmo julgamento que os criminosos nazistas

A Pensão

A Pensão Capítulo I Acordo no meio da noite com uma angústia seca Posso perder a Pensão Me fizeram acreditar que teria a Pensão a vida inteira Prá isto não podia casar,e consequentemente ser mãe e nem trabalharO interrogatório na forma de um questionárioSe tenho comércio,se já trabalhei com carteira assinada,se tenho família....não tenho nada....Minha mãe me falava que se trabalhasse atrapalhava prá ela no Imposto de RendaSe alguém quiser me dar um tiro,ninguém resgata a minha existência Não deixei sinal de presença Me identifico com o personagem da metamorfose,de KafkaCom a morte de minha mãe entrou agora uma Pensão Militar de meu pai,que era tenente e deu baixa do exército com vinte e um anos,tuberculosoEncolhida na cama,imagino a funcionária do Instituto entrando quarto adentro para detectar alguma presença masculina No último questionário foram duas no lugar onde eu moravaFiquei gelada Para o Estado não tenho direito a nenhum calor humano Oito horas da manhã.Minha mãe acorda varada de dor Artrose na coluna inteira.Passo um creme no corpo dela inteiro.Vou fazer o café prá nós Levo prá ela na camaPasso as noites sem dormir e vivo este ritual com ela de manhã.Depois vou dormir.Fiz todo o Mestrado assim.Estudando de noite e dormindo de manhãNós combinávamos Ela chorava muito de manhãDe dor Tinha que dar conta do mestradoFicaria muito impactada com o choro delaDe tarde íamos para os hospitais para fazer os tratamentos para a coluna delaCaminhávamos também lentamente nos shoopings,para aliviar aquele nível de tensãoUm suor gelado me invade o corpo Imagino a funcionária do Instituto entrando no meu quarto,para detectar alguma presença masculina Minha mãe morreu ha quatro anosO Instituto controla Direitos da Pessoa Humana Estes direitos estão na Constituição Portanto esta lei é inconstitucionalMeu Deus!Uma lei que diz que a pessoa não pode constituir família,não pode trabalhar.....!!!!!Como dizer a um ser humano que ele não pode trabalhar!!!!Se ficar sem a Pensão não tenho trabalho,não tenho como sobreviverSinto um vazio angustiado me invadindoNão sinto amor,não sinto ódio,não sinto alegria nem tristeza....Um vazio Não pude construir as emoções da humanidade inteiraA Pensão proíbe de construir família e de trabalhar Muitas vezes imaginei como seria a alegria de pôr a mesa para um filho,de ver a filha chegando com o namorado....A carícia do amado....A Pensão interdita tudoVou à um Jardim de Infância.Me ofereço para ensinar música para as crianças Tenho formaçõao musicalSaio de lá em êxtase,vou conseguir trabalho Fico livre da PensãoNenhuma resposta.Deixei meu currículo em quarenta colégios Salto de trampolim no risco total Faço o Mestrado,participo e publico em vários Congressos InternacionaisSem receber nada Me imagino num coleginho de interior As crianças fazendo um barulho de passarada Um sol brilhante batendo nas janelas A Pensão não deixaNão tenho aposentadoria,plano de carreira,nada....Imaginei o cheiro de cera na sala,crianças correndo nela....Minha mãe sentadinha,vendo televisão,nada....Minha mãe me deixou claro que se arrumasse um companheiro não moraria comigo Meu pai me esbofeteia o rosto "A minha vontade tem que prevalecer"!!!!!!!!A vontade do pai,a vontade da mãe,a vontade do EstadoEs tou buscando a minha alma Onde está a minha identidadeA minha alma E as funcionárias do Instituto perguntam tudo no questionárioSe tenho representação na Junta Comercial,se recebo mais de um benefício no INSSTalvez desejassem perguntar se transo bem,se transo mal,me sinto como o personagem de 1984Se não posso fazer nada como me libertar de um recurso que me impede de dar os passos para esta libertação!!!!! Imagino uma sopa fumegando no centro da mesaMeu companheiro chega e retinimos os pratosMacarrão de parafuso e paioComemos em silêncio O silêncio dos pacificados por um sexo bomMeu companheiro imaginário E as moças do Instituto fazendo o feio papel de controlar orgasmos,controlar vidas....A vontade do Pai a vontade do Estado....Muitas vezes me imaginei andando nas ruas e vendendo meus desenhos nas praçasÀs vezes um desenho é vendido na mesa de um bar Nunca aconteceu comigoGostaria de ter tido sorte A sorte é um mecanismo através do qual as coisas dão certo até por acasoE a vontade do Pai me martirizando a alma,contrária a todos os meus desejosE meu espírito aflito,pedindo socorro a Deus Encolhida na cama fico me recordando de todas as vezes em que procurei trabalho Vários concursos públicos.Fui aprovada em quatro mas fora da classificaçãoQuarenta e oito mil candidatosNão sabia o feminino de cupimMuitas vezes me imaginei pegando carona num caminhão e atravessando o país com caminhoneiros,comendo feijão tropeiro com linguiça,mas sem saber como mostrar serviço Sou professora,Mestre em Letras,com várias publicações e não encontro empregoVivi da referida Pensão(quatro salários mínimos) cuidando da minha mãe enferma e apresentando meu trabalho teórico em congressos,publicando,sem receber nada,como todos os professores que participam destes congressos São três horas da manhãMeu pai está tocando Villa Lobos Me diz que aquela frase exige um tom grandioso e lentoMe pergunta se conseguiu fazer istoCom treze anos já trabalhava a noite inteira com ele Foram vinte anos Morreu com cinquenta e oito anos Enfarte Conheço todo o contraponto de Bach e não sei como alcançar a graça de um salário dignoTenho medo de terminar como o jardineiro de Muito Além dos Jardins que trabalhou para uma família a vida inteira e terminou andando nas ruas,sem tetoMas trabalhar por um prato de comida é escravidãoTive cursos de violão clássico e pintura impressionistaIsto as funcionárias do instituto não puderam controlar Produzi textos,fiz um trabalho de poesia,mas acordo assustada no meio da noite com a funcionária ameaçando...."O Instituto vai cortar A Pensão'Talvez o Instituto quisesse perguntar se vendi uma galinha para o vizinhoNa realidade tenho mesmo é que fazer um exame de sangue de três em três meses Tive câncer no seio Mastectomia,quimioterapia,radioterapia....controle hospitalar de três em três mesesTalvez as funcionárias do Instituto tenham mais sorte Tenho a impressão que vou me deliquescer na cama O Questionário me deu a exata noção do nada que eu souTive um certo orgulho de pagar minhas contas em dia Sem a Pensão e se ninguém me der emprego não sei o que será de mimMinha garganta começou a secar de novoMinhas tias me falavam que para dar aula em colégio não adiantava currículo Tinha que ter indicaçãoNão tenho indicação Tenho treze anos e estou tocando Bach.Partita número três.Do que me adianta agora. Daqui a dois meses minhas reservas de dinheiro se esgotamNão sei o que o Instituto vai decidir.Começo a virar águaA dor que a minha alma carrega não tem traduçãoUma sensação indefinível de dor na alma E as funcionárias do Instituto me interrogam pelo comércio que eu não tenho,pelo marido que eu não tenho,pelos filhos que eu não tive,pelo emprego que ninguém me deuCom os seus altos salários Minha mãe e eu estamos no ArapiaraSeções de fisioterapia por vinte diasQuatro horas de fisioterapia Fico sentada nos bancos de cimento esperando por elaMe lembro que ela usou uma cinta que parecia um espartilho de granadas Certa vez fomos à um médico que tinha o corpo todo deformado Tinha um consultório na parte dos fundos da casaMinha mãe adorava este médico Dizia ser uma pessoa muito boa A funcionária do Instituto viajou.Não existe definição sobre o meu processo.Me lembro de minha mãe.Me dizia:Estou com as pernas bambinhas mas não precisa vir comigo não.Lá ia eu com elaA vida foi passando Ela morreu,acabei sozinha. Estou me preparando para dar uma aula no Pitágoras.Universidade.Uma Universidade de Publicidade.Dou uma aula de Análise do Discurso.Me reprovam. Alegam que teria que dar este curso num doutorado de Linguística.Uma sensação de tragédia me sufoca.Não consigo sobreviver.Tenho medo.Meu processo na mão da funcionária do InstitutoUniversidade de Sabará.Em cima da cama um bilhete me chamando com urgência para uma entrevista.Me dizem que meu currículo é brilhanteAguardo.Um mês,dois meses,nada Telefono prá universidade.Colocaram outro profissional no lugarComo vou sobreviver meu Deus Minha mãe acorda de madrugada.Vai ao banheiroMe pede para ampará-la Sente tonteira Vamos juntas para a cama A artrose tem desses efeitos O que é viver sem sentir angústia,medo......a funcionária do Instituto com meu processo.Trabalhei vinte anos com meu pai,madrugadas inteiras,criança ainda Meu pai pagou este benefício.Não pertence ao Estado. Os remédios da quimioterapia deixam minha garganta seca.Acordo de madrugada com esta sensação.Minha mãe já não está mais aquiA salinha da quimioterapia é impessoal e leve.Simoni,a enfermeira,me acalmaNão dói Num dos tubos de remédio está escrito,Irritante. Me imagino com minha irmã na Inglaterra. Gostaria,como ela ,de já estar perto de uma aposentadoria mas não consegui emprego formalTenho medo de perder a Pensão e ficar passando fome dentro da minha própria casa Sem conseguir empregoAté prá faxina já me candidatei e não tinha mais vagaPeço a Deus socorro.AguardoA dor que tortura a minha alma não tem tradução verbal Me imagino voltando do trabalho de tardinha,passando no Mercado Central e comprando sardinhas Um companheiro me espera com uma garrafa de cerveja pretaMeus filhos imaginários estão na escola Passo um batom grená,visto uma saia lápis e uma camiseta e vou dar aula de português no meu colégio imaginário A quimioterapia deixa vergões na minha peleAinda tenho marcas das queimaduras da radioterapia E as funcionárias do Instituto confabulamO comércio que eu não tenho,o marido que eu não tenho,o emprego que eu não consegui e o benefício que meu pai realmente pagou.Meu Deus,socorro. A noite está úmida.Estamos,meu pai,minha mãe e meus dois irmãos na frente da fonte luminosa na Praça Sete Toda colorida Uma doce sensação de pertencimento me invade agoraPertenço à cidade,aos meus pais....nada me atinge Doce ilusão As funcionárias do Instituto confabulamO fruto do trabalho de um homem em leilão Posso terminar na rua,como mendigaSocorro,Meu DeusQuando esbarro com as falhas que me deixam indefesa uma sensação de vazio me imobiliza.Vazio total. Ao entrar na sala onde vou apresentar meu trabalho sobre Lobo Antunes tenho uma sensação de estar numa comunidade,ao mesmo tempo,undergroud e pobre Nunca imaginei na vida que fosse publicar trabalhos teóricos algum diaFui apresentando meus trabalhos feito uma cigana,indo de um estado a outro,muito mágico Quando vi meu resumo e meu nome pela primeira vez no caderninho de apresentações,não acreditei Os médicos me acordam Acabou a operação Quatrocentos e cinquenta pontos para fechar a barriga que estava toda abertaSeptcemia grave Estou cansada E as funcionárias do Instituto confabulam sobre vidas alheias São capazes de tirar um salário mínimo de alguém que vendeu galinhas para o vizinhoMeu Deus,Socorro!!! Vislumbro um bosque na minha imaginaçãoFlores lilases,pequeninas introduzem o caminho para uma cidade lá embaixoEm frente ao bosque,num vale Tive um sonho com esta cidadeAs edificações eram de cristal e batia luz nos vidros A cidade parecia um brilhanteMeu psiquiatra,espírita,me disse ser uma cidade espiritualGostaria de ir para um lugar assimUma briza leve invade o meu quarto Balança as cortinas No sonho voltei para o bosque e acordei no meu quarto Estou lendo os textos de KoeulllreuterÉtica e Educação Musical Minha monografia foi sobre o caráter positivista no ensino musical dos séculos deznove e vinteNinguém me visitou ainda.Nem na casa ,nem no apartamento Aliás,minto,Tia Otília,Ove e Dadate vieram me visitarE Adriana e Jorge Lili me prestou serviços de enfermagem Yolanda também Estou com a barriga toda aberta na cama do hospital As enfermeiras me fazem debridagem Já melhorou muitoAs carnes enegrecidas pela septcemia já se avermelharam Estou com medo de voltar lá em casa Não sei que tipo de correspondência do Instituto vou encontrar láAnos e anos cuidando de minha mãe me transformaram num servidor doméstico Destes que moram com a família Não compreendo o mundoNão tanto quanto as funcionárias do InstitutoFiz tudo que dava conta Agora,só Deus Onde está este DeusNão sei se dou conta da vida mais Quase morri antes de minha mãe,com derrame e tudoSerá que um recomeço é possível prá mim....Meu Deus.... Um papagaio distante me transporta além.Bate a luz do sol e ilumina o pequeno objetoMe transporto Meu irmão,pequeno,brincava de papagaio com os amigos Santa Tereza era cheia de pandorgas Uma bairro solar,com suas padarias,suas pequenas vendasTinha uma loja que vendia linhas coloridas,agulhas,vestidos,tecidos,....a loja da Glória A primeira vez que dei aula de Português estava com um vestido vermelhinho,todo abotoado na frente,muito magrinha,me senti A Professora O cheiro de café rescendendo na casa e eu indo para o colégio dar aulaEstava substituindo a Maria Augusta Depois ela voltou para o posto delaFiz meu curso a prestação porque trabalhava com meu pai a noite inteira com músicaTranquei matrícula várias vezesMuitas vezes me perguntei sobre o que é sorte Uma pessoa busca um objetivo e todas as forças confluem a seu favorPenso que deve ser istoLutei arduamente por alguns objetivos legítimos e não alcancei resultadoPortanto,a minha saída é me esforçar muito Independente do resultadoPubliquei vários trabalhos em congressos internacionais de associações de base de professores mas sempre ouvi:_se não tiver doutorado não vale nadaEntão,sempre tive a sensação de não valer nadaMuitas vezes,pessoas que conseguem tudo com muita facilidade,se julgam certas em tudo,o tempo todo.Aqueles que lutam com mais dificuldade já não têm tanta certeza,nem de estarem no caminho certoDei aula antes de ganhar A Pensão Disciplina. A orientadora do colégio me disse que estava com problema de disciplinaÉ que colocava as meninas em círculo,sentadas no chão Isto nos aproximava mais.Passava uma garrafinha de água prá todo mundo que estivesse com sede Tinha vinte e um anos.Tive que discutir o assunto com a diretoria.Expliquei que isto nos relaxava,que conseguíamos fazer análise de texto melhor.Nada.Questão de hierarquia.Voltei ao velho formato de sala de aula. Com o interrogatório do Instituto,me imaginei passando fome na velhiceA morte de meu pai interrompeu todos os meus sonhos de trabalho.Minha mãe adoeceu gravemente .Artrose na coluna inteira.Podia cair na rua.Ia com ela em todos os lugares onde ia.Existe um mundo do trabalho que é institucional,com direitos trabalhistas,plano de carreira mas há pessoas que trabalham o tempo todo sem nenhum direito As funcionárias do Instituto invadiram meu apartamentoEstava escovando os dentes Me informaram que estavam trabalhando e me perguntaram se eu não trabalhava Trabalhei a vida inteira com a Universidade,apresentando meus trabalhos em congressos sem receber nada e cuidando de minha mãe.Apresentei meus trabalhos em Congressos para ter alguma chance de trabalhar na Universidade Nada.Nenhuma chance.As funcionárias do Instituto agiam como se só elas fossem trabalhadoras. A orientadora do colégio me chama.Reclama da tal da disciplina.A sala volta ao silêncio anterior .Com todas as alunas caladas e eu falando sem parar. No dia da defesa de minha dissertação fiz chapinha no cabelo Três horas e meia de argumentação e contraargumentaçãoDepois da dissertação produzi vários textos para Congressos Meus textos fluiam como bolhas de sabão,com vários aportes teóricos se interpenetrando uns nos outrosVivia com quatro salários mínimos e não sentia o tempo passarJá tinha desistido do amor e prosseguia na doce ilusão de que algum dia teria uma chance de trabalho junto com a Universidade Doce ilusão Chegam as funcionárias do InstitutoSó faltam perguntar quantas vezes cabulei aula,pratiquei o onanismo,desisti de um emprego.Perguntei prá Cassinha se ela estudou demais prá trabalhar no Tribunal.Uma hora por dia Meu Deus Não me deixe passar fome na velhice nem morrer ao relentoNo meio do caminho teria um cadáver que as funcionárias do Instituto empurrariam para o lado Sempre investi na esperançaMe lembro do Professor Claudionor dizendo:defina este cantinho de olho com dois traçosComecei assim meus exercícios de percepção visual Definindo com poucos traços o objeto percebido Trabalhei muito rosto humanoFui considerada uma pessoa com oito anos a mais da minha idade cronológica em percepção visual por psicólogos da guestaltConsegui encontrar a minha linguagem mas não consegui vender quadrosÉ como se um anjo mau rondasse a minha porta e fechasse todas as minhas possibilidades de sobrevivênciaImploro socorroNão é honesta uma lei que impede a realização de direitos da pessoa humana e nem quem é instrumento de uma tal lei Enfrentei tudo com um ser humano seriamente debilitado e não tenho segurança nenhuma E as funcionárias do Instituto me informam que se virem roupa masculina no meu guardaroupa,me denunciam Minha mãe cantava lindamente Tinha uma voz de cristalTanto para falar quanto para cantar Me embalava cantando Ave Verum,de Mozart,quando eu era criança Uma voz indefinível,argêntea,um instrumento de PAZ Fazíamos tudo juntas Tinha medo que minha mãe caísse na rua e fosse atropeladaEla caiu duas vezes e em uma delas quebrou o nariz A artrose em toda a coluna Posso pensar numa relação de profissional de saúde também na minha relação com minha mãe Isto não exclue o carinho de filhaConversávamos horas Ela era uma mulher meio menina e ficou muito magoada com meu pai Não julgo nenhum dos doisAlgumas vezes começava as suas falas assim......-De primeiro era tudo tão diferente.....Vovô,pai de minha mãe começou a vida vendendo galinhas nas ruas de Belo Horizonte.....E ficou rico....Juntou um bom pecúlio Tenho muito medo de terminar minha vida mendigando nas ruas Fiz várias tentativas de trabalho fora de casaUma vez fiz um teste num importante colégio de Belo Horizonte Passei na entrevista,na prova de conhecimento e não passei no psicotécnico Na prova do psicotécnico as orientadoras do colégio jogaram várias revistas no chão e nos mandaram catarA nossa tarefa consistia em discutir algum assunto das revistas Mamãe e eu entramos na casa Pérola,no bairro florestaAndávamos muito no bairro Floresta Andávamos muito Como os mendigos A descida da rampa da Casa Pérola tinha uma curvatura no canto que podia jogar qualquer um no chão Tinha que mostrar prá elaAliás,avisava tudo Pedrinhas,buracos,tudo Este era o meu trabalhoSem plano de aposentadoria,sem plano de carreira,nada Apenas quatro salários mínimosSem poder me casar,sem poder trabalhar,nada Muitas vezes pensei em dar aulas à noite para poder acompanhar minha mãe durante o diaNão tive chance Imagino novamente a cidade de cristal com a qual sonheiParecia um brilhante perdido no céu As paredes de cristal faiscavam contra o céu azul Queria estar láSem nenhuma ansiedade,medo ou angústiaSomente o Sol batendo nos cristais Minha mãe não tinha lugarOcupávamos a casa todaUma vez eu a vi murmurar.....Eu só queria ficar aqui,entre vocês......Muita humildadeÀs cinco horas da manhã já estava de pé para botar a mesa do caféMuitas vezes eu ia sem dormir prá escola Trabalhava com música a noite inteira com meu pai Minha mãe cantava.......Amar é um holocausto de palpitações.....envolto num mistério de venturas mis..... Meu orientador de Mestrado me disse que era melhor escrever quinze minutos todo dia do que dez horas por dia um mês e largar o trabalho Segui à riscaTrabalhei com as tradições da oralidade,com os mitos amazonenses,com os mitos indígenas,mitos africanos....Já conhecia a maior parte das cantigas,desde o século dezenove ao século vinte.Minha mãe cantava todasEntão era assim,a cada dia o seu cuidado,como dizia Marques,meu orientadorComo no Eclesiastes Capítulo II Entro em sobressaltoMedo Estou na casa de meu irmão e temo que o Instituto tenha mandado mais correspondênciaQuando meu pai morreu minha mãe me levou ao banco para buscar A PensãoFiquei desesperada No meu entendimento estava trocando um cadáver por quatro salários mínimosLutei junto com o médico até os últimos minutos fazendo respiração artificial EnfarteMeu pai morreu aos cinquenta e oito anosNa minha frente Minha mãe vai me passando as batatas e eu vou descascando lentamente Depois as cenouras Estamos fazendo a maionese para o almoço de domingo Meus irmãos vêem com as famíliasFrango assado na cerveja,arroz,feijão tropeiro e maioneseComemos muito no domingo Me lembro de minha mãe sempre silenciosa ao lado de meu pai Sempre atendendo a todos Só ele falava Estou na casa de meu irmão e fico me lembrando das vozes da minha antiga casa Minhas primas que moravam na casa ao ladoIvânia gritava.....Tia Ondina!!!!Mamãe fez bolinho de batata prá senhora!Meu pai me dava tantas ordens em poucos segundos que eu não tinha tempo nem prá pensarTinha o jeito padrão de atender o telefoneMinhas posições sobre teoria da literatura eram uma chatice prá ele As famílias criam umas lendas pessoais que nem sempre correspondem à realidade Muitas vezes uma determinada pessoa é adorada no seio familiar e nem sequer é conhecida no meio onde viveIsto acontece também no mundo da pesquisa .Determinados pesquisadores viram lendas em determinadas comunidades acadêmicas e não são conhecidos no resto do paísCulto à personalidade,talvez..... Sempre fiquei no meu cantinho Obedecendo às ordens de meu pai e estudando teoria da literatura Sou formada em Letras Mestre em PoesiaSubia e descia as escadas da sala para o escritório o tempo todo prá levar café,recados de telefone.....Meu pai e eu ficávamos uma média de dez horas no escritório fazendo música Música sinfônicaA noite toda Ele pagou ao Instituto cada centavo do que eu recebo Enfim veio o aceite para a participação no CongressoRiobaldo Tatarana entre o Ser e o Nada Uma comparação entre O Ser e o Nada do Sartre e o personagem Riobaldo de Grande Sertão:VeredasComo a Pensão impede de trabalhar por um salário apresentei vários trabalhos em Congressos sem receber nada Como todos os professores,aliás.A proposta é:não trabalhe,não case Sem nenhuma forma de socialização o sujeito perde a vida psicológicaComo explicar seres humanos que são levados a adquirir medo de trabalhar e de se casar....Passei anos participando de Congressos assim,para não perder a vida mental,intelectualEstou escrevendo para não entrar em morte psicológica O mistério de uma rua silenciosa no meio da noite pacifica Depois de trabalhar Villa Lobos algumas horas,ficávamos na varanda do segundo andar,olhando a rua silenciosa Três horas da manhãA vizinhança gostava da música dele Muita gente falava istoVilla Lobos com suas longas mínimas e suas frases grandiosasMeu pai dizia:agora vou aumentar o número de harmônicos e tirar uma nota de dentro da outraNa partitura a nota está em cima ou ao lado de outra Entendia isto como uma mudança de paradigma Minha mãe me dizia:-Vou à cidade Não precisa vir comigo Tinha medo que ela caisse Ela me respondia-Não precisa Eu caio,eu levanto,eu caio ,eu levantoUma vez caiu e quebrou o nariz Tivemos muita dificuldade de explicar para a médica que se colocasse o tampão não iria entender como respirar pela boca Surge uma nova medicação mas com o risco de parada cardíaca da noite para o dia Ficamos horas discutindo se não valia a pena arriscar Por fim ,descartamos Estou perdendo a vontade de tudo A resposta do Instituto ainda não veioVolto no tempo Adorava ir aos Congressos Escolher modelitos novos para apresentar meus trabalhosEntrar nas Universidades com a maior dignidade e apresentar trabalhos resultantes de dois a três anos de estudo e reflexãoVer novas cidades,novas comunidades acadêmicas,muito mágico Tio Waldir chegava entre três e quatro horas da tardeE gritava-:É o Dio!!!Trazia pães frescos,pão de queijo ,vegetarianoNos explicou minuciosamente as razões éticas para não se comer carnePequenino,sempre com um terno impecável,aposentou-se como Fiscal da FazendaFicou solteiro por ser vegetarianoAdvogadoEu colocava a mesa e fazíamos o lanche Em seguida minha mãe me pedia prá ficar lá prá dentro porque tinha que conversar com eleTio Waldir tomou conta de vovó Maria a vida inteira Conversava muito com vovó Maria depois que ela teve o câncerUma vez ela me descreveu uma estranha experiência Me disse que,olhando para a parede,via pessoas elegantérrimas,com vestidos longos,em grandes salõesMe contou que o pai bebia muito e que uma vez,chegou em casa perguntando se ela tinha visto as pessoas que o estavam acompanhando Ela não tinha visto nada Minha mãe gemia de madrugada Dor Aquele gemido aumentava minha angústiaIa no quarto,abraçava e beijava minha mãe Depois que meu pai morreu estudava noites inteiras para o Mestrado Li muita coisa das tradições orais Adorava ler Cordel E o Instituto adiando a resposta E eu sem ganhar nenhum dinheiro Perguntam tudo Se a pessoa trabalha em casa,quanto ganha,se tem dependentes....tudoUm pensionista economisa ao Estado direitos trabalhistas Tia Edith grita:-Aluísio!!!Corre aqui!!! Sua filha morreu!!!! Eu estava deitada na cama com os olhos desmesuradamente abertosPodia contar as costelinhas Onze meses GastroenteriteMeu pai veste uma calça por cima da calça da pijama e corre comigo a pé para o bairro FlorestaChegamos na casa do tio Jair Irmão de meu paiEle me coloca no carro e seguimos direto para o hospitalO médico estava descendo do elevador e meu pai grita-Socorro! Minha filha está morrendo!O médico começa a tirar sangue Minha mãe me diz que demorou alguns minutos Aparece uma gota de sangue,começa a transfusão e eu começo a inchar como uma boneca de plásticoSalva Com um ano pesava seis quilos Até doze anos tinha anemia profunda com risco de virar leucemiaMeus pais me deram muito antibiótico e fiquei com os dentes amarelinhos por causa disto Acordo todos os dias ouvindo a Área na Quarta Corda de Bach É a primeira música que meu pai toca de manhãTenho a impressão que numa outra vida ouvi um grande amor tocar isto para mimAssobiaba tudo que meu pai tocava Tio Lúcio e eu observávamos todo o jardim da casa de vovó Joaninhas,tufinhos de algodão voando....tudoUm raio de sol bate nos cabelos quase brancos do tio Lúcio Os olhos muito azuis Magrinho Observávamos as pequeninas aranhas,os exércitos de formigas.... O jardim,um arsenal de pequenas vidasO mundo não existia prá nós Uma agonia surda me invade o peito Tenho medo da resposta do Instituto Avalio as posições que assumi ao longo da vidaNão queria a Pensão Quando meu pai morreu implorei que não queria Preferia dar aulas Me coagiramEstaria aposentando em um ano com um benefício seguro respaldado pela Lei Agora,com cinquenta e nove anos não sei como começar tudo de novo Minha mãe me chama baixinho Está com o corpo todo coçando Reação alérgica aos remédios que toma Sugiro irmos prá um hospital Me diz que não é necessário Um cachorro late ao longe Íamos com papai na casa dos operários amigos dele em casas com varandões,cachorros latindo no quintal em bairros distantes Serviam café fresco com roscas prá nósMuitos deles tinham mulheres professoras,como euMe imaginava com o cabelo branquinho em alguma universidade do interior O cachorro parou de latir Só vejo meu irmão de noite Fico no quarto que me foi destinado,lindo por sinal,e depois de ter feito um Mestrado,apresentado meu trabalho em vários Congressos ninguém me oferece nenhum trabalhoTenho trabalhos sendo lidos em Portugal,Alemanha,França e Brasil Marquei um encontro com o Celsinho,dramaturgo premiado pelo Serviço Nacional de TeatroEm frente à uma lanchonete ao lado do antigo Cine AcaiacaEis que vejo aquele homem lindo no meio da multidão Lindo Parecendo um indianoEle não me viu Eu chamei Ele passava algumas tardes lá em casa,no bairro Santa Tereza Comíamos Pão de Queijo o dia inteiroEle me olhava intensamente e não falava quase nada Tenho medo de parar de pensar,de não conseguir articular pensamento mais Minha sobrinha uma vez me perguntou porque ganhava dinheiro e não trabalhava Só o tempo que ficava à disposição de minha mãe configurariam o trabalho de um profissional de saúdeNão tinha como explicar isto para minha sobrinhaQuatro salários mínimis Uma vez fiz concurso para professor substituto na Universidade para ganhar trezentos e cinquenta reaisQueria trabalhar fora de qualquer jeito mas passei em terceiro lugar e só entrou o primeiro lugarQuando comecei a dar aula no colégio Piedade e recebi o meu primeiro salário,exulteiTinha vinte e um anos Resolvi comprar alguma coisa com o salárioEntrei numa loja de roupas e me encantei com uma blusa O preço era duas vezes o meu salárioTive uma sensação de ingenuidade e malogro de minha parteNo último dia da minha substituição no colégio Piedade as meninas foram se levantando uma a uma e me dando uma rosa,até formar um bouquet de rosas vermelhas Chorei muito O Instituto pergunta porque não trabalho.Resposta:porque não consegui emprego Prossegue.-Se não trabalha como se sustenta,interrogaCom o dinheiro da Pensão pago com o suor e as lágrimas de meu paiE parte do meu suor e minhas lágrimas também porque,como já disse,trabalhei vinte anos com meu pai,uma média de dez horas por dia No jardim da casa da vovó as formigas passavam em filas ,algumas com pequenas folhas na cabeça Ficava horas e horas observandoVovó me chamava para o lanche Chá mate Leão bem açucarado,pão de sal e manteiga ItambéA manteiga desmanchava na bocaAdorava o bairro Barroca A rua TurquesaAcordava de madrugada e ficava horas olhando a rua pelos janelões do prédio Fico me perguntando como superar relações patriarcais,opressão cultural,espiritual e humana com salário de professora Estou em pânico Não consigo acreditar no que está acontecendo Sinto a pesada mão masculina de John no meu rosto me esbofeteandoE gritando que não me ama,que eu não sou uma mulher bonitaNunca me propuz a ser uma mulher bonita e não tinha certeza se ia viver o tal do grande amor mas toda esta violência veio de uma vez sóTenho pedido a Deus sorte. Depois de ver a cidade cristal acordo com meu pai me chamando É um contraste brutal,aqueles cristais rebrilhando ao sol e o escuro do meu quartoQuero voltar prá lá e não posso Tinha passado uma semana viajando com o Movimento Estudantil para participar do ENEL e voltei exaustaA cidade cristal,será que existe.... Fizemos a reforma de currículo em toda a LetrasJunto com os professores colocamos o Básico,com Ciências Políticas,Economia,Filosofia,Sociologia,História......e várias outras matériasTodo estudante de ciências humanas teria que passar pelo básicoFui me jogando na vida,sem pensar numa programação.Hoje tenho medo O Instituto não me deu uma resposta Sinto uma agonia surda quando penso nistoNão tenho reserva alguma de dinheiroMuita gente perde emprego,moradia e chega à mendigância Meu estômago embrulha Isto é fruto do trabalho de meu pai E meu também Capítulo III Sinto um vazio na minha mente.Como se tivesse perdido as memórias O conflito ético entre trabalhar ou não para cumprir esta estranha Lei me colocou em duas vidasUma mental,constituída por meus pensamentos e uma real,construída sobre a socialisação que não sei se posso ter uma vez que a Lei me impede de trabalhar Verinha vem à minha menteChega arquejante perto de mim e me pede que,se alguém telefonar não diga que está trabalhando Teve que responder o mesmo questionário que euSe assusta toda vez que o telefone toca Não pode confessar que está trabalhando Como se trabalhar fosse crimeMe pergunto se é ético perder um direito adquirido com trabalho ,por trabalharO esvaziamento da minha vida mental,emocional,se deve à falta de socialisaçãoFico buscando alguma memória perdida no tempo Sinal da minha história E vem Fátima,minha prima ,e eu,estávamos brincando em frente o Edifício Ivone,na Avenida Francisco Sá Chega um senhor,muito bem vestido,e nos oferece doces se nos dispusermos a acompanhá-loFui com a Fátima até a rua Coral implorando a ela para voltarmos E ela acompanhando o homem Por fim,consegui,voltamos Estamos jantando num restaurante classe A,todo mundo meio sem jeito Vamos conhecer o pai da Cassinha,ministroMuito cavalheiro,sempre muito sério Pedi pato à Califórnia prá mim Quando voltamos,dormi e no meio da noite acordei rezando Vi uma luz vermelha,como luz de sacrário,que rebrilhava de forma geométrica em ângulos retosA família de Cassinha teve um problema na estrada mas terminou bem A mão de John bate em meu rosto duramente,de um lado a outro Segundo ele não sirvo prá nada Não sou boa de cama,não sou boa parideira,não sei arrumar uma casa,não sou uma mulher bíblica E ainda sou artista plástica como ele,o que só piora as coisas Minha mãe foi uma mulher bíblica e não agradouO ponto de vista masculino nos transforma em estrangeiras mesmo em situações familiares Ninguém nunca me perguntou o que eu pensava das coisas Atendi a meus pais,cada um nas suas solicitações e eles nunca me pediram opinião de nadaEstou lutando prá não perder a minha vida psicológica,mental,prá ter a chance de encontrar a minha própria alma -O povo! Unido! Jamais será vencido!Gritávamos em coro na Avenida Afonso Pena Os policiais a mil atrás de nós,com máscaras de vidro até o peito e cavalariços no meio da rua Apoiávamos a Quarta Internacional que era clandestina e se fosse encontrado algum texto na nossa gráfica poderíamos ir todos presosReivindicávamos a volta aos doze por cento para a Educação e Ensino Público e Gratuito em todos os niveisPassei de um salto só do materialismo dialético ao espiritismo kardecista A sala está em semi obscuridade O Doutrinador nos diz:Falem a primeira coisa que vier à cabeçaSem racionalizar Se fizerem assim será a interferência de uma outra inteligênciaAutomatismo psicológico Como no surrealismo de André BretonOuve-se uma voz forte no lado esquerdo da mesa-Já corri!Corri! E os soldados continuam atrás de mim! Querem pegar um tal de Jesus e pensam que sou ele!O Doutrinador fala calmamente.....-Olha para o chão.....Quem está aí....O espírito responde-Sou eu....E o Doutrinador explica:Pois é.....O senhor já morreu a três mil anos E não é JesusOlha aí ao seu lado os amigos que vieram buscá-loPode ir.... O Uniforme das freiras do colégio Assunção era fortemente lilás Uma vez,parece,meu pai me esqueceu lá Meu tio Waldir foi me buscar tarde da noiteFiquei sozinha numa sala enorme com um crucifixo no meio Tínhamos três,oito e doze anos Adriana,Claudio e eu Estamos num ambiente austero com chão de pedra batida Ouço vozes de extrema delicadeza cantandoEsperamos umas duas horas e chega uma freirinha Papai voltou da Espanha com um recado secreto de Dom Helder Câmara para transmitir para as CarmelitasNão contou prá nenhum de nós Minha mãe também estava conosco Meu pai,algumas vezes tão brutal comigo,ia ao extremo da doçura quando me ensinava música Trabalhamos vinte anos,todas as madrugadas,durante a Ditadura Militar,no escritório,com músicaA música foi salvífica prá eleEstudei violão clássico por causa deleElee me dizia:abraça o seu violãozinho como se fosse seu namorado E completava:a tendência em um instrumento de cordas é o som decrescer mas,se você acreditar,pode fazê-lo crescer mentalmente nas síncopes Nunca esqueci istoMe explicava que,em linguagem musical,o que faz a pessoa compreender a regra é guardar o princípio norteador da regraFiz alguns trabalhos de Composição Sinfônica Minha primeira professora de jardim juntava meus cabelos nas mãos e gritava:Plasta! Ignorante! Retardada!Tinha então,quatro anos Tive que fazer teste de QI e deu alguns pontinhos a maisUma angústia indefinível me invadeMe pergunto:como alguém diz a outrem que não deve trabalhar e depois de a pessoa ficar completamente indefesa,retira todos os recursos Aluísio,meu pai me conta Se atravessasse o pátio do quartel era brutalmente espancado.Não davam comida aos cadetes pobresTinha que ficar nu,debaixo de um chuveiro com uma gota só,pingandoSaiu de lá tuberculoso,condenado a seis meses de vidaTocou harmônica a vida inteira Vinte anos,durante toda a Ditadura Militar,no escritório lá de casaTrabalhávamos de madrugada De dez,onze horas da noite às nove,dez horas da manhãTrabalhou também com a Quarta Região Militar,já como engenheiro civil,calculando e projetando estradas de defesa do território nacionalProjetadas exclusivamente para impedir invasão norte americana Me explicou que trabalhava com Soberania Nacional Jamais com segurança nacionalE disse a vida inteira Eu sou um soldado Foi reformado como tenente Me causa horror todo e qualquer crime contra a pessoa humanaMe causam horror tando os crimes de direita quanto os crimes de esquerda contra a pessoa humana Os relatos da Ditadura Militar são tenebrosos mas os do Kmer Vermelho também Depois de algumas horas de trabalho papai e eu resolvíamos passear de carro Lá prás duas horas da manhã íamos lá para o alto da Afonso Pena olhar o céu estrelado,a cidade toda iluminadaA polícia vinha atrás de nós Achava que éramos namorados e éramos pai e filha Minha mãe foi uma mulher admirável Quando fiz o primeiro teste de QI estava com febre e gripadaAs professoras foram me buscar assim mesmo Deu um pouquinho prá menos Minha mãe,uma mulher simples,sem nunca ter entrado numa Universidade,questionou o testeFizeram outro Deu um pouquinho prá maisEste relato pode questionar as condições em que são feitos estes textesNós duas temos alguma coisa dos mendigos porque ela também não tinha inscrição na Junta Comercial,Carteira de trabalho,nenhuma forma de registro,nadaAndamos por Belo Horizonte inteira Entramos em restaurantes típicos,populares,lojas de tecidos .....Íamos muito na antiga casa SlooperDepois que a artrose começou a entrar no corpo dela passamos a andar devagarinho Uma vez a coluna dela travou,no meio do trânsito,e eu tive que explicar a situação aos motoristas para podermos atravessar Quando criança.ficava observando os raios de sol baterem na poeiraA poeira ficava iluminada,eram vários pontinhos de luz Tinham uma forma geométricaDavam a impressão de serem a passagem para uma outra dimensão Imaginava meu pai tocando Debussy e a poeira passando,silenciosa Subimos a rampa da Galeria Ouvidor,subimos um andar e vamos dar numa loginha cheia de anéis,pulseiras,colares,esparramados sobre a mesaMinha mãe tem uma pequena jóia dentro da mão e dá o preçoO dono da loja dá um preço menor Muito baixo Não fazemos negócio e vamos emboraNo primeiro andar a loja de pastéis Carne,queijo e palmito Escolhemos o de queijoTinha curiosidade de saber:o ser humano come para ter forças para trabalhar ou já tem que ter a força para trabalhar prá comer,eu me pergunto Artrose dá aposentadoria por invalidez mas,eu me pergunto,o que são as pessoas que não tiveram direitos trabalhistas!Que não tiveram acesso ao trabalho normalizado por lei! Estamos andando devagarinho no Diamon Mall Entramos numa loja de roupasMinha mãe fica meia hora escolhendo uma camisa para o Hudson Sinto angústia Não entendo como alguém pode ficar este tempo todo escolhendo uma camisa mas tenho que acompanha-laJá aconteceu dela cair dentro do shoopingSe tivesse ficado quietinha dando aula talvez tivesse um plano de aposentadoria mas não podia deixa-la cair na ruaAcreditava que a pensão era vitalíciaQuando não estava acompanhando minha mãe,estava estudando para os congressosNo último congresso,lá em São José do Rio Preto,apresentei um trabalho sobre Fernando Sabino,O Homem Nu Tentei demonstrar como ele,de uma forma indireta,metafórica,tentou mostrar situações de opressão típicas da Ditadura MilitarUm homem se esgueirando nu pelos cantos,como se estivesse sendo seguido,nu....Me lembrei muito de Kafka Tinha vontade de fazer um estudo comparativo entre este texto e O Processo,de Kafka Estramos num corredor escuro e comprido,minha mãe e eu.No final do corredor uma loginha com pijamas,camisolas,calças com tamanho maiorA dona da loja,com um rosto um pouco macilento,um pouco corcunda,nos mostra tudoMeias também Ela acaricia o tecido,mostra um,compara com outro e nos ajuda a escolher Talvez esteja lá até hojeQueria entoar um Salmo,um cântico dos cânticos às maravilhas do cotidianoImagine,uma loja de roupas no fundo de um corredor escuroChegamos em casa,vestimos nossos pijamões e tomamos café frescoPercebi toda a nossa fragilidade diante do questionário do InstitutoMeu pai não deixou minha mãe trabalhar fora Ela fez trabalho de despachante prá ele,a vida todaSinto muita angústia quando penso no InstitutoTalvez pareça simples responder que um ser humano possa abrir mão de um benefício que foi pago com suor e lágrimas para não cumprir as suas regras mas é mais sério questionar se estas regras estão dentro da Lei de Direitos HumanosFiquei sozinha,meu pai se foi,minha mãe se foi,vivo com meu irmãoQueria ter um companheiro e filhos apesar de sentir muita Paz na casa de meu irmão O banco me informa que clonaram meu cartão Cancelei o cartãoMesmo assim o banco me mandava uma fatura mensal de três mil reais e eu pagava Repetia a mesma operação Fiz vários empréstimos à setenta reais por mês e pagava a fatura Uma espécie de guerra psicológicaDevo ter pagado uns trinta mil reais a esse banco até liquidar tudo e fechar a contaPrá completar a água do filtro do apartamento começou a sair marronAdoeci Fui parar no hospital com pedra na vesícula Já tinha hérnia de incisão,evoluiu para risco de septcemia A barriga toda aberta Resultado Cinco operações em quatro mesesDurante a guerra psicológica do banco fiz um pós graduação em caráter de excelência na UFMGEducação Musical Foi considerado um trabalho de primeira linhaMinha mãe delirando em casa e já sem conseguir andar ,auxiliada por três prestadoras de serviço Tinha tido um derrameE o Instituto me tortura me interrogando sobre uma riqueza que eu não tenhoOs clonadores do meu cartão fizeram um empreendimento numa tal de Aliança Sul Empreendimentos e compraram um canal pago da Sky Quando ouvia meu pai tocando Debussy,tinha uma impressão de que a casa ficava inundada de mistério e silêncioEle emitia um som delicadíssimo com uns vibratos que eram resultado de uma movimentação de ventreTinha a impressão que falava a voz dos anjosNão sei mais se vou sobreviver Aliás,nunca soube porque não tenho explicação para o fato de,com dois pós graduações,não conseguir trabalho digno mas a música dele me dava uma impressão de eternidadeNós fazíamos exercícios de solfejo polifônicos às vezes o dia inteiro Cantávamos junto Eu ouvia filigranas de som Se fosse um coma,eu ouvia Meu pai afinava umas duzentas gaitas em um mêsBatia o diapazon e tocava o lá Eu sabia por uma diferença de comas se estava afinado ou nãoOs comas são os sons entre os sustenidos e os bemóisPassávamos algumas noites acordados fazendo istoEm determinados momentos parecia um operário brutalmente conservador,em outros ,um revolucionárioMe lembro dele dizer que as pessoas estigmatizavam a condição feminina com termos como,a santa,a prostituta,a mulher da vida,a mulher do lar e esqueciam da mulher como pessoa humana Falava exatamente como as feministas mas tinha verdadeira obsessão pela obediência,como qualquer pai autoritárioTento até hoje encontrar o meu desejo,a minha identidade,para além da autoridade do Pai Um ser humano,quando obedece,delega para outrem a responsabilidade de seus atosEsse outro pode agir bem ou mal Conversei muito com meu pai sobre a crítica que São Paulo fez a ter sido obediente ao EstadoPor ter sido obediente ao Estado São Paulo toturou e matou vários cristãos Torturou e matou várias pessoas sob as ordens do Estado Passou o resto da vida criticando a obediençiaNão é a toa que um dos movimentos pacifistas mais importantes do século vinte,liderado por Ghandi,tinha por palavra de ordem o conceito de Desobediência Civil Estamos na estrada de Venda Nova ,minha irmã e eu Uma lua cheia clarinha invade a noite Vamos na casa de Miguel,pai de santo recomendado pelo Gil,nosso amigo de infânciaChegando lá,entramos numa sala de terra batida e Miguel estava sentado num canto,em silêncio Minha irmã foi primeiro Jogou várias vezes os búzios na gamela e veio a respostaFilha de Oxum Maré,orixá mensageiro Fui,Miguel jogou os búzios Depois de muito jogar disse que havia uma guerra de santos,até que veio a resposta Filha de Ogum e Oxum Voltamos pela mesma noite de lua cheia ,pela mesma estrada Capítulo IV Tinha treze anos quando Rogério me deu meu primeiro abraço Vi estrelas Estávamos na esquina da rua lá de casaRogério era um pré-vestibulando de Engenharia,com os olhos rasgadinhos,cabelo preto e um metro e oitenta de alturaEu não sabia muito bem o que era ser mulher,só sei que gostei do abraçoTerminamos Meu pai me achava muito nova prá qualquer compromisso Tive vários namorados depois mas nunca mais senti nada parecido com aquele abraço Acordo gelada Passo a mão na testa e um pouquinho de suor fica em meus dedos O Instituto ainda não respondeuEstou dentro da Lei que gerou meu benefício mas a funcionária me informa que pode haver variações na interpretaçãoEste benefício foi pago com suor e lágrimas meus também porque trabalhei vinte anos com meu pai,mais de dez horas pelas madrugadas,durante a Ditadura Militar,com músicaMe deixei envolver pelas paixões à minha volta e perdi de vista a contrução da minha própria vida Depois que meu pai morreu me proibiram de trabalhar e me informaram que tinha direito à PensãoVestida nos pijamões de flanela que comprávamos na Floresta, minha mãe e eu,achava que o mundo era só aquela casinha em Santa TerezaEscrevi todo o meu trabalho teórico lá Permaneço na cama e o sono não vem Duas e dezessete Pego o pequeno cristal com a imagem de Nossa Senhora da Aparecida e o sono vem Começo a sonharUma adolescente me pede para trançar os cabelos delaFico sem saber por onde começo e de repente entra na sala um homem vestido com uma beca preta e me diz:-nós pagamos quarenta mil reais a você se fizer uma palestra explicando para os adolescentes "a real"Fico sem saber o que ele considera "a real"Quando penso que posso perder a Pensão e não tenho emprego,que por uma interpretação da Lei posso me aproximar da mendigância,penso nos milhares de seres humanos que perdem empregos,moradias e chegam de fato à mendigânciaPediria às populações mais jovens que encontrassem formas de se defender distoO trabalho é um caminho quando se tem saúde e juventude Mas quando falta uma das duas coisas a realidade mudaO homem com a beca preta me falou uma coisa estranha Disse que colocaria os piores elementos na minha frente para me defender mas pensei:eu poderia ser vítima destes elementosE acordei A cidade cristal me chama com seu brilho forte contra o céu azul Lá,talvez,não precise de carteira de trabalho ou fazer parte da Junta Comercial,nada Não é uma cidade administrativa,comercial ou residencial e emite um forte brilhoÀ direita várias florezinhas cor de rosa cobriam o chão até a entrada da cidade Repentinamente meu pai me chama e me vejo em meu quarto outra vez Esta noite consegui dormir e me vi na minha casa em Santa Tereza Minha mãe estava láDe repente entra uma senhora falando repetidamene:_Eu preciso de um coração! Eu preciso de um coração!Minha mãe se mantém tranquila e eu dou algumas nozes para elaVários espíritos frequentam uma casa Espíritos com necessidades diferentes ,histórias diferentes Na primeira noite em que estive lá e voltei da casa de Claudio sonhei com uma mulher muito magra,com uma camisola fininha que me disse muito aflita que o marido dela tinha sido assassinado e que os assassinos tinham se escondido no andar de cimaLogo a seguir me vejo gorda,em trajes de mulher indígena andando numa taba Uma criança indígena diz:-Eu posso ve-la mas nem todos podem Só algunsAcordei com o corpo todo vermelho e coçando por causa do remédio da quimioterapiaQuando éramos jovens e morávamos na casa de Santa Tereza,acordávamos de manhã e relatávamos os sonhos que tinhamos tido na noite anteriorMeu pai e eu,quando dormíamos porque algumas vezes,dormíamos O escritório todo vedado,com janelas de ferro,teto com isolamento acústico,meu pai toca as primeiras notas do concerto de Villa Lobos para Harmônica e OrquestraTínhamos o play back da orquestra Trabalho denso Decorei trechos inteiros do Concerto de Villa Lobos Tarde da noite Soldados da Polícia Militar tocam Prokofiev com meu pai lá no escritório Vêem fardados,depois do trabalho Soldados Músicos Tocando ProkofievFascinante Um vazio me toma a mente agora de manhã Não consigo acionar minhas memóriasO vazio de quem não viveuMeu pai costumava dizer que eu vivia através dele Mas é claro,ele me chamava sem parar Eu não tinha tempo nem prá pensarE o Instituto não respondeu nem sim nem não Me sinto como um operário que pudesse ser despedido de repente e ficasse sem o sustento da família Muitas pessoas fazem empréstimos em situações assimDepois não conseguem pagar os juros ou ficam anos pagando O sistema bancário sobrevive desta servidão São José do Rio Preto Vou apresentar um trabalho de literatura lá A cidade me lembra muito Belo Horizonte Fernando Sabino O Homem NuNa volta,no avião,encontrei uma professora da Faculdade de Educação do Paraná que me disse que estes congressos não adiantam nada para currículoSenti até falta de ar mas me refugio em lembranças doces de infância Ao lado da minha casa morava uma família chinesaNa porta que levava aos quartos tinha uma gangorra feita com retalhos coloridos Eu achava fascinante aquela gangorra com retalhos coloridos O apartamento de Vanita tem dois quartos e um banheiro Saímos do Diretório Acadêmico e fomos prá la,conversar e dormir Ela me conta que na cidadezinha onde morava não tinha luzEntão,quando viajou dormindo prá cidade vizinha,quando abriu os olhos e viu a luz elétrica,achou que as estrelas tinham caído do céu Apesar das dificuldades de percurso já assinaladas,meu pai e eu ficávamos juntos quase o tempo todoComo indígenas que estão sempre perto Ele estudou no colégio Estadual e era de uma família muito pobre Então,me contou,numa determinada ocasião não tinha dinheiro para visitar vovó,em Nova Lima Foi a pé Me contou que viu uma moça esvoaçante,com um vestido branco,durante todo o percurso Na entrada da Faculdade de Letras do Espírito Santo passava uma rodovia Já estávamos lá à uns cinco dias para o ENEL(Encontro Nacional dos Estudantes de Letras)Eis que acordo de madrugada e as meninas do Rio Grande do Sul estavam tomando chimarrão,no meio da noite Parecia um ritual Na noite seguinte meu grupo de meninas me chamou prá fumar um baseadoUma estudante de Jornalismo.poetisa.duas estudantes de Letras,Vanita e eu,poetisas,uma menina com um chapéu e o cabelinho todo ouriçado em baixoFomos para o lugar mais discreto da Universidade e fizemos um círculo O cigarrinho passava de mão em mão Me lambrei de Lívia,minha primaQuando voltou dos Estados Unidos falou para o meu pai ler Castanheda,um sociólogo que psicografava um índio chamado Juan Rulfo Minha voz sai rouca e rasgada A primeira coisa que falo é:isso aqui tá parecendo um acampamento militar Lívia vivia fugindo dos fiscais A Imigração era duraEla e os companheiros dela pegavam roupa no Exército da SalvaçãoMuito corajosa Aprendeu do in e sobrevive até hoje com este ofícioColoquei meus cartazes no bairro inteiro Aula de Língua Portuguesa e Literatura Ninguém me procurouMeus níveis de exigência salarial são compatíveis com o que é oferecido no mercadoSempre pensei na Educação como um modo de vida e não como um meio de vida mas as pessoas precisam comer,vestir,ir ao médico e até se divertirTrabalhei um pouco com educação especial Dislexia Tinha um aluno com dislexiaEste problema é uma competição entre fundo e foco Se a pessoa está com um texto na mão o texto é o focoO fundo são todas as solicitações ambientes de atenção Barulhos,imagens O fundo entra em competição com o focoNo caso da dislexia o fundo vence e a pessoa larga a leituraCriava letras artesanais para chamar a atenção do meu aluno para o foco Consegui alfabetiza-lo mas se num determinado momento ele lia o texto,no momento seguinte ele não lia Eu ficava muito aflitaFico me perguntando porque Lívia conseguiu viver do ofício dela e eu não consegui viver do meu Sempre tive fé na vida Acreditava que podia achar uma forma de trabalho decente e não precisar mais da Pensão mas os salários dos professores não são decentes e no meu caso,às vezes um centavo a mais era e é dinheiroMe lembro,no pequeno apartamento onde morei cinco anos,às vezes,por falta de um centavo,não podia pagar uma condução Capítulo V Falei com Janete que não aguentava mais ter que me sentar na frente das funcionárias do Instituto e explicar que não tinha empregoMeu orientador de Mestrado me explicou que o que eu estava fazendo era trabalho Trabalho teóricoSentia uma profunda humilhação de ter que confirmar que não tinha emprego formal Janete me disse:vá lá e afirme que você não tem empregoNão deixe este dinheiro para o Estado de jeito nenhumO Instituto cheio de gente humilde,pobre,repetindo as mesmas afirmações Minha mãe parecia um bichinho sendo degolado pela vida Sem imaginar maldade alguma ao primeiro corte não entendia aindaJamais conseguirei esquecer os soluços de dor de minha mãe por causa da artroseEla dizendo:eu só queria ficar entre vocês.....Abraço meu violãoSoam as primeiras notas da suíte de um autor anônimo Anton LogiÉ noitinha Minha irmã fala que meu violão está parecendo a linguagem dos anjosToco mais um pouquinho e vou dormir Algumas vezes dormia de noite Quando entrei no Colégio Piedade tive o encantamento que se tem diante do que se esforça para ser institucional A porta de vidro,enfeitada por arabescos de ferro,o ladrilho quadriculado,a janelinha da secretaria logo à esquerda,adolescentes indo e vindoComecei a minha primeira aula desestruturando o período e pedindo aos alunos para colocar na ordemExiste um conhecimento da língua que é anterior ao conhecimento formal Vem do inconscienteSe conseguissem colocar na ordem estariam demonstrando este conhecimento Minha mãe tinha verdadeira obsessão pela ordem Ordem doméstica,seguir regrasMuitas vezes me perguntei se seguir regras era se comunicar verdadeiramente com a vidaMe sentia muito regrada e incomunicavel Me sinto assim até hojeUm pouco autista Vanita e eu conversávamos muito andando pelas madrugadas nas ruas de Belo HorizonteEntrávamos nos bares e pedíamos pingado,às vezes pão com manteiga.Morava num apartamento pequenininho na rua Paraná No elevador cabiam duas pessoas,certinhoA avenida Paraná tinha moradias dantescas Fui no lugar onde estava temporáriamente meu namorado Camas de cimento se projetando da parede para fora Gente do Brasil todo,vários no mesmo quartoMesas de cimento Uma pobreza desesperada John me disse que no quarto onde ele estava tinha um nordestino que chorava a noite inteira Saudade da família Hoje tomei o café com a Wanda Vamos tirar o tapete que está no meu quarto Pedido de Claudio,meu irmãoEle faz um trabalho primoroso como engenheiro de segurança do trabalhoEste é um trabalho civilizatório Não existe nenhum modo de produção que sobreviva sem segurança no trabalhoA casa de Claudio parece uma nave espacial Toda aberta em vidros e a campainha emite sons musicais Ficávamos,meu pai e eu,de madrugada,no meu quartinho ao lado da copa,olhando da janela,para ver se víamos algum disco voador Pesquisávamos ufologiaVirgínia,com quem estudei Composição,me ensinou um jeito de entrar em contato telepático com as navesNão sei como contar prá ela que uma luz dourada atravessou em vários pontos a sala da casa de meu irmão e não era a luz do solFalei prá ela que queria compor dentro da morfologia dos mantrans Ele me disse serenamente:tem que ter a egrégora Doze anos Minha mãe faz barulho na copa e chamo várias vezes por ela pedindo para parar Noto que não ouço o som da minha vozQuando olho prá cama vejo meu corpo lá Deito-me sobre ele e acordo batendo os braços e as pernas e rezando uma Ave Maria Sou pobre Os baixos salários,a alta de juros faz com que os pobres sejam permanentemente endividados Isto me lembra o costume do interior de comprar fiado Os pobres acabam ficando reféns dos poderosos do localQualquer presidente neste país ficaria refém da economia clássica,da regulação de preços e custos pelo mercado Não há controle disto A economia de mercado visa a preservar as grandes fortunas Qualquer presidente corre risco de vida numa estrutura desta Eu,de minha parte,tenho medo de virar mendiga Olhava a janela do Edifício Ivone através do fundo de um vidrinho de remédioVia as imagens da rua todas transformadas,os coloridos da rua se misturavam...Tinha o hábito de,junto com meu pai,observar as pedras ou a madeira das portas e identificar formas humanas Tocava astúrias leyenda no meu violão,escolhido pelo Sérgio Abreu,e ficava impressionada com a melancolia moura de alguns trechos desta músicaMeu pai me ensinou música Tem um sentido de resistência uma família pobre como a nossa transitar em altos estudosCheguei à umas setenta Sinfonias no ano passado e devo a capacidade de compor ao meu paiEm três momentos estranhei a personalidade de meu paiMorávamos num apartamento muito mofado,na Barroca Eu tinha quatro anos e resolvi fugir para o pátioFiquei maravilhada Havia sol .Corri em círculo várias vezes e depois voltei Meu pai estava desesperado Me deu uma surra de cinta e me exigiu obediência eternaQuestionei o sentido da obediência o resto da minha existênciaA segunda vez que estranhei,tinha uns vinte e cinco anos Discordei do que ele disse e bati a cabeça várias vezes no tampo da mesa Ele esbofeteou o meu rosto várias vezesNum terceiro momento tinha uma viagem marcada com o Movimento Estudantil e combinei com meus companheiros de ficar esperando os atrasados na Universidade Meu pai achou o local escuro e proibiuJogou minha mochila no chão Fiquei uma fúria e arranhei o rosto dele Me esbofeteou de novoEu era muito selvagem e parecia um rapazinhoFui o inferno existencial de meu pai.Ele não tinha tempo prá mais ninguém Trabalhou muito,com engenharia e com música Não deu nenhuma bola nem para a esquerda nem para a direita Não tinha tempo E era corretíssimo com dinheiro público Devolvia até as cestas que recebíamos no Natal Os raios de sol batem no olho mágico do portão e vejo toda a difração da luz Me lembro do Celsinho,dramaturgo premiado pelo Serviço Nacional de TeatroEle me dizia que há uma loucura que é sagrada e que esta loucura inspira os escritores e os poetasPassávamos a tarde comendo pão de queijo e conversandoEle me olhava de uma forma intensa e prosseguia falando Quando meu pai era vivo,algumas vezes Gil e Kátia passavam a noite lá em casa,conversandoMeu pai abria as gaitas e colocava os pequenos objetos que ficavam dentro dela,palhetas,pequenos parafusos,no lugar certo para a afinação Trabalhava com uma lupaUma dessas noites,estava sozinha com meu pai no escritório e começamos a discutir kardecismoDe repente,ouvimos uma voz falando num alemão claríssimo A aparelhagem estava toda desligada Papai me disse que era o velho Bach nos reconduzindo ao trabalhoEle transcreveu para a harmônica toda a obra de Bach escrita para violino A primeira vez que procurei emprego foi num coleginho perto da minha casa.Tinha quase o curso todo e levei um documento com as matérias que já tinha feito na Universidade Me informaram que tinha que ter a Graduação mas eu tive vários colegas que davam aula enquanto faziam o cursoDei algumas aulas pela Fundação Universitária Mendes Pimentel mas pouco depois interromperam este serviçoContinuava trabalhando com meu pai pelas madrugadas As vezes já estava dormindo e ele me chamavaMe sugeriu que eu interrompesse o curso de Letras e mandasse uma carta para a Diretoria explicando que estava esgotadaExpliquei prá ele que ficaria com estigma de doença mentalTentou de todas as formas me convencer que não Fui aceita para trabalhar no MEC mas,sem vínculo empregatício e sem salárioA FEBEM me aceitou nas mesmas condições;sem vínculo empregatício e sem salário Diante deste teatro do absurdo comecei a aceitar o absurdo como regra na minha vidaSegundo a lei da Pensão,não poderia constituir família nem ter a felicidade de viver a dignidade do trabalho Novamente me pergunto se as pessoas que têm a Pensão com o formato da minha estão podendo viver Quem foi"beneficiado" com um salário mínimo tem que trabalhar para complementar e não podeMe refugio nas minhas perguntas e tento encontrar um caminho para seguir em frente Não seiSou Mestre em Letras e não encontro nem um coleginho prá dar aulas Sou especialista em Música,idemMe refugio em tempos idos Na infância,brincando com minha mãe Ela segurava minhas duas mãos e eu encurvava o corpo todo prá baixo murmurando:serra serra,serrador,quantas serras já serrouTirávamos a roupa do varal juntas Me lembro do lençol branco voandoO encantamento do cotidiano,das pequenas alegrias Preciso de muito pouco para ser feliz mas não quero chegar à mendigânciaMe lembro,na FEBEM,quando fui lá com meu pai procurar emprego,havia uma criança morrendo no hospital A mãe,uma das internas ,veio perguntar pelo filho A coordenadora pedagógica mentiu,disse que ele estava muito bem e explicou que se falasse a verdade poderia sofrer um linchamento das outras internasDesisti de trabalhar na FEBEM através do testemunho deste fatoO Gil.um amigo meu de infância,trabalhou na FEBEM Ele me contou que,em determinada noite uma das meninas urinou no lençol Uma das funcionárias obrigou a menina a ficar abanando o lençol a noite todaGil achava que devia ficar no emprego para impedir que coisas assim acontecessemQuando penso no Interrogatório do Instituto penso também nos anos inteiros estudando para apresentar meus trabalhos corretamente nos congressos,quase todos publicadosLembro das travessias no trânsito com minha mãe,enfrentando nós duas a artrose dela Não merecia um Interrogatório destes Existe uma idéia difusa de que os trabalhadores aposentados podem ganhar menos do que o último salário porque não produzem mais mercadoriaPressupõe-se que não têm mais interesse como pessoa humanaCuidei da minha mãe a vida inteira Não produzi mercadoria portanto não tinha interesse no modo de produção capitalistaPara o Estado,impessoal e amorfo,resta saber se tenho comércio,vínculo empregatício,para ter certeza de que não tive chance nenhuma porque só um ser humano morto pode receber esta Pensão E matando a pessoa,começando pelos sonhos e chegando à vida prática o Estado não precisa pagar Tive uma vida profundamente afetiva e não mercadológica Mil novecentos e quarenta e poucos Meu pai,cadete Quando saia de licença ,tocava gaita,voltava,era presoEros e thanatos O choque entre a vida e a anti vida Teve uma namorada em Nova Lima e eles se amavam nos bosques da mata do Jambreiro loucamenteMeu tio fazia hapenning Corria nu pelas praças da cidade Nunca entendi o gozo da Igreja diante de um crime horrendo como o que foi perpetrado contra JesusIa na Igreja Cura D'Ars com minha mãe e quando via um homem todo ensanguentado preso por pregos,desmaiava Quando cresci um pouquinho,cheguei à uns sete anos,comecei a passear pelas ruas da barroca Ficava extasiada com as ruas de pedra ,com o formato das casas mas uma vez tomei um susto sério Tinha um punhal apontado prá cima saindo do meio das pedras Ficava olhando as manchas de mofo nas paredes do nosso apartamento Tinha alergia a mofo Tomava injeção Todo dia Íamos de manhã,minha mãe e eu,na farmácia em frente o Edifício IvoneMeu pai,que teve tanta experiência de liberdade sempre berrava:Nãããããããão!!!!!Toda vez que eu ia pedir alguma coisaMeu apelido era matraculina Desde pequenininha falava até cansar Minha mãe me perguntava se tinha engolido farofa de língua de papagaio Acordava de madrugada e ouvia o apito do trem Tinha a impressão que era um coro de vozes gritando melancolicamente:Mooooooorrrrrreeeeeeeeeu!!!É que houve um acidente grave na famíliaMeu tio,irmão de meu pai,morreu atropelado por um trem Estava passando de carro e a cancela não estava abaixada O trem estava passando e ele não conseguiu sair do carroA família fala nisto até hoje Quando menina,andava nos corredores do Colégio Piedade meditando Relaxava e sentia o ambiente dos corredores No final dos corredores tinha uma pequena capelaEntrava lá e ficava sentada nos bancos de madeira compridosTinha uma porta de entrada que dava prá rua Quando Irmã Marcia morreu ,o corpo foi velado nesta capelaO colégio tinha um auditório também,no qual poderia caber uma pequena orquestra de câmaraTinha uma colega chamada Elvira com a qual fazia polifonias Cantávamos juntasFiquei semi interna lá,um tempoFicava com as meninas internas até tarde da noite Ficávamos matutando o que íamos fazer e tirávamos todas as informações escritas nas paredes Horários de aula,reuniões.....tudoNo dia seguinte era o caos Meu pai ia me buscar entre dez,onze horas da noite Sala de Radioterapia Fiquei feliz por ter me libertado da quimioterapia e logo depois tive que fazer a radioTanto os pacientes quanto os funcionários me trataram com extrema gentilezaO ambiente ligado ao câncer é marcado por um grande carinho das pessoas umas com as outras e até por críticas aos parâmetros civilizatórios de amorEntrava por uma larga porta de vidro numa salinha com um carpete verde,descia uma escada e deixava meu cartão num escaninhoQuando me chamavam entrava numa sala ampla,com uma aparelhagem que parecia uma tela de televisão Tirava a blusa,o sutiã e era posicionada na mesa pelas enfermeiras Tudo muito simples O aparelho emitia o raio em très pontosDemorava dez minutos Saia de lá vitoriosa Sobrevivi Capítulo VI Minha mãe tinha uma sabedoria toda delaDizia que nunca devíamos dizer"Desta água eu não bebo" porque a vida poderia dizer outra coisaMuitas vezes o desejo diz uma coisa e a necessidade diz outra o que é muito triste porque o desejo real é o que nos identificaEra bem jovenzinha,tinha vinte e quatro anos quando comecei a fazer visita a enfermos Ia no pavilhão das cancerosas da Santa Casa e conversava muito com elas Tinha lá uma senhora,muito magrinha,já em estado terminal que queria se despedir da filha A filha morava em Sete Lagoas,a poucos quilômetros de Belo Horizonte e não podia vir vê-la porque não tinha dinheiroEu também não tinha Levei prá ela um pijaminha que ganhei da tia Cáritas e um livro do Chico Xavier Ela me disse que só depois de ler o livro conseguiu dormirBebi das águas do câncer mas graças a Deus tive recursos de me tratar,de ficar perto dos entes queridos mas,com relação à Pensão,muitas vezes me perguntei se deveria aceitar um benefício que me tirava tudo,.....família.....a dignidade do trabalho.....a vida,enfimPor outro lado,ninguém me dava trabalho Fiquei refém deste sofrimentoÉ como se alguém me desse um doce que me custasse a alma Contei para a menina no banco da praça como foi meu relacionamento com JohnEla me deu o número de uma lei e disse que eu poderia ter feito uma denúncia na políciaFomos caminhando pelo bairro e ela parou debaixo de uma árvore e fez xixi Me disse que queria ser jornalistaSolta na vida Devia ter uns doze anos Eu tinha nove quando arranjei meu primeiro namorado Fomos a Uberada Meu pai tinha acabado de morrer e estávamos tentando um contato com Chico Xavier Ficamos numa pensão muito pobre ,as três,minha irmã,minha mãe e eu num mesmo quartoA porta do banheiro era de madeira velha e tinha uma fendazinha de modo que do lado de fora se via tudo lá dentro.Enfim chegou o dia em que conseguimos ir à porta da casa de Chico Xavier Tinha uma moça aos prantos no portãoDisse que não tinha conseguido entrar O pai tinha morrido e estava levando a mãe que não queria mais sair da cama e nem comer Não conseguimos falar com o Chico Sonhei com meu pai,lá em Santa Tereza Estávamos numa nave espacial e dentro dela estava uma multidão de seres do tamanho de crianças,dourados,como se estivessem no limboAcordei muito serenaMeu pai tinha um xará Um advogado Como todo advogado tinha poder de polícia e de dar parecer em processos Meu pai era engenheiro civilNão tinha relação nem com as polícias,nem com processosE morreu pobre A pensão que estou perdendo equivale ao salário de um funcionário público de nível médio em início de carreira Semana Santa É dia de procissão À meia noite subo as escadas do escritório,abro a porta que dá prá varanda,enfio o rosto no vão da parede que dá prá rua e olhoAs pessoas passam em silêncio,cada uma com uma vela na mão A rua toda iluminada por pontos de luz O silêncioMinha mãe e eu preparamos a semana inteira uma bacalhoada para meus irmãosAmo a Sexta Feira da Paixão Um dia cheio de mistério e belezaNão brinco com questões de fé Iludir a boa fé alheia é crimeQuando penso que vivi alheia de mim,sem um companheiro,sem filhos,me sinto iludida na minha boa féFui deixando estas coisas passarem porque achava que quatro salários mínimos me ajudariam a olhar minha mãe e a viver o tipo de vida que eu vivia O sol bate em toda rua Gostava desta vivência meio bíblica com minha mãe Fazer juntas as tarefas domésticas,conversar.....A rua está em festa Os vizinhos estão fazendo desenhos com farinhas de todas as coresSão desenhos para a Semana Santa A noite no centro de Belo Horizonte é heterogênea Bares,com gente comendo comidinha barata,mendigos As vezes,no final de uma galeria tem um restaurantezinho chinês Estamos,meu pai,minha mãe,meus dois irmãos no segundo andar de uma dessas galerias,com um senhor magrinho,meio encaveirado,com sua companheira ,uma mulher grandiosaNos informou que era geóloga Linda Eu tinha uns dezessete anos e meu pai perguntou ao senhor magrinho se haviam quebrado a perna dele:disse que não e a companheira geóloga disse que,na cadeia,viu um índio que ficou em pé lá dentro a noite toda;isto lhe tirou o medo Não sei se eram prisioneiros políticos mas pareciam Tinham uma relação extremamente gentil e carinhosa com meu pai Depois que meu pai morreu,a minha rotina junto com minha mãe era das mais simples Saíamos no meio da tarde para ir ao sapateiroUma portinha com um forte cheiro de graxa,meio escuro o ambiente,uma multidão de sapatos dependurados Um senhor com a camisa cheia de graxa,o sol batendo lá fora Parecia algo fora do tempo e do espaço Tinha um certo mistérioGeralmente estas pessoas ficavam vinte anos trabalhando no mesmo lugarAndávamos devagarinho porque a coluna martirizava minha mãe o tempo todo Outro ritual era o do relojoeiro Seu Antônio Relógios de todo tipo dependurados na parede O ambiente em sombra,seu Antônio sentado no meio de ferramentas pequenininhas,para relógios pequenosFicou lá uns vinte anos também A minha função ao lado de minha mãe era não deixá-la cair Quando íamos na casa da tia Áurea,ficávamos traumatizados com um hospital psiquiátrico que tinha em frente o apartamento dela Os internos ficavam atrás de grades,pedindo a todos os passantes que os tirassem de láQualquer inteligência que compactue com isto não merece ser considerada vida inteligente Fui visitar meu padrinho também,na Pinel Conheci lá uma moça com a qual andava abraçada o tempo todo Falava baixinho prá ela.....moça bonita,moça bonita....era uma das internas.Ela me dava banho num banheiro coletivo Vivíamos à margem dos direitos civis e os nossos direitos civis estavam sempre em questão Uma pessoa que ganha um benefício que questiona os direitos civis não tem segurança nenhumaSe os meus gestos de vida,amor,trabalho,colocam em risco um benefício,este benefício se opõe à vida como morte Chegamos ao Rio de Janeiro para o encontro naciinal da UNEA UFRJ nos recebeu Andamos algum tempo por uma estradinha,ficamos meio perdidos,pegamos uma ponte e divisamos o enorme galpão da UniversidadeEstava cheio de palestrantes,Darci Ribeiro,Alfredo Sirkis....entre outros Sentamo-nos no chão e começamos a ouvir as palestras A Rossana me disse que o Darci Ribeiro repetia sempre a mesma palestra Literalmente Chegou a noite Não tínhamos onde dormir e ficamos a noite toda conversandoTínhamos uma perspectiva de luta revolucionária e já nos imaginávamos vencedores Ficamos discutindo ética de luta O respeito aos vencidos,não praticar crime de tortura,riscos imanentes às confrontações de luta Um companheiro nosso disse que estava exausto Tinha passado o ano todo viajando pelo interior de Minas para reorganizar a UNENa noite seguinte fiquei no colégio Benet com um grupo de meninasÍamos juntas para a Universidade ouvir as palestrasFiquei perdida no Flamengo com um companheiro Nós andávamos,andávamos e não conseguíamos voltar prá Universidade A pauta era ensino público e gratuito e a volta aos doze por cento para a EducaçãoPermanecem as mesmas lutasLá,na noite que passamos no galpão da Universidade,o companheiro que viajou o interior de Minas era Karateca Eu sempre tive paixão pela capoeira mas,segundo se diz,o capoeirista precisa de espaço para lutar Sem espaço ele perde a luta Mas que lindo! Um capoeirista jogandoAndava pelas praças com minha irmã,olhando as rodas de capoeira Belinha,quando vinha com a gente,levantava a perninha,gingava o corpinho,com dois anos Num determinado momento,era noite,no galpão da UFRJ vimos todos um objeto alaranjado,sob a forma de um charuto,pairando no arUm colega nosso,no dia seguinte,foi ao Serviço de Metereologia para saber se era um balão metereológico Não era Eis que de repente volto no tempo Irmã Goret,uma freirinha do colégio Nossa Senhora das Dores onde estudei Conversava horas com elaDepois ia prá biblioteca do colégio e ficava o dia inteiro lá Eu era muito magrela e usava batom As meninas me deram uma surra por isto As mães delas não permitiam que usassem batomAs padarias do bairro Santa Tereza eram lindas Tinha uma que ficava ao lado de um depósito de lenha e a gente sentia o cheiro do pão e o da madeiraA que ficava no quarteirão anterior era maior Muito grande mesmo No caixa ficava uma senhora italiana,grandona,muito séria,que morava no bairroNaquele tempo havia dois pães que eu amava Brevidade e Marta Rocha Estas duas padarias doram substituidas por uma padariazinha lindíssima,cheia de doces e salgados ultramodernos Vou conseguir manter uma das pensões mas a minha renda vai para a metadeNuma das minhas tentativas de conseguir trabalho fui fazer um curso de telefonia Fiquei encantada com a salinha,cheia de moças,com o professor descolado,ensinando os segredos da telefoniaUm ambientezinho de metrópole Mas tinha um cara que ficava parado no meio da escada,rindo prá mim de uma forma estranha Não voltei mais Minha avó paterna era costureira Com doze anos já tinha um ateliê com quinze auxiliares Era a modista de Nova LimaCresceu,casou,continuou no mesmo ofício e sustentou toda a família assim Meu pai tinha cinco anos quando ela deixou um vestido de noiva em cima da camaEle achou muito escuro embaixo da cama e resolveu acender uma vela prá iluminarO vestido pegou fogo Ficou cinco dias escondido no porão prá não apanhar Na rua Januária tudo era na hora certa Era uma casa confortável com quarto individual para cada um dos nove irmãos de minha mãeTio Milo me contou uma vez que ,quando acordava de madrugada,do quarto dele,via um homem dando gargalhadas na salaTio Dio dizia que via sempre uma peninha branca se movimentando no ar E ouvia uma mulher que lhe chamava e dizia:Sou eu.....a Hilda.... Eu tinha sete anos quando vi os escravos cantando em volta de minha cama Memórias do espírito O Sérgio,guerrilheiro que foi cobaia de tortura do Dan Mitrione namorava a Cristina,da OSI Encontrou a Cristina no teatro Marília com outro namoradoChorou abraçado comigo no Palácio das Artes No dia seguinte caí de cama e vi a cidade de cristal Apareceram mais dois nódulos no meu seio Estou com muuto medo E o Instituto em silêncio Não diz nem sim,nem não Depois de alguns anos de estudos de lógica e linguagem,percebi que a linguagem ocidental,estruturada sobre o verbo ser,verbo de identidade,é uma tautologiaFiz todo o meu trabalho teórico ancorada nesta percepçãoSe digo Ocarro é azul,significa que carro e azul são idênticos portanto posso dizer O carro é o carro Isto é uma tautologiaEste modelo de linguagem iguala o sublime e o grotesco,a vida e a morte,a lei e a anarquia garantindo a perpetuação de discursos hegemônicosPor isto escrevo sob a forma de pequenas narrativas desconectadas do espaço e do tempoTalvez a memória onírica seja mais importante do que a memória real Minha mãe conversava com a gata de pernas tortinhas a manhã inteiraA gata miava e ela respondiaEra o mesmo ritual,toda manhã Era como se elas tivessem um entendimento tácitoUm dia ,saiu de dentro do guarda roupa de minha mãe,um mico Ele pulou pelo quarto todo e foi prá varandaDepois foi prá debaixo da escada e ficou lá,quietinho,olhando prá minha mãeE minha mãe só conversando com ele,como fazia com a gata Chamamos o IBAMAFiquei assustadíssima com Verinha,que mora numa reserva ecológicaUm macaquinho entrou na cozinha dela e comeu as bananas Ela deu uma surra nelePouco depois apareceu a mãe do macaquinho e deu outra surra neleO pobrezinho varou a janela e sumiu na mata Na Praça de São Marcos,quando foi à Itália dar um concerto,meu pai encontrou uma pombinhaE começou a conversar com ela A pombinha arrulhava,movimentava o corpo como se estivesse respondendo Por fim apareceu uma alemã,que começou a conversar da mesma forma com a pombinhaEla começou a arrulhar,a movimentar o corpo,para os doisOs três ficaram cercados de passantes Nós tínhamos oito gatos E eles transavam uns com os outrosJustamente no dia em que estavam na maior orgia as freiras do colégio Piedade vieram nos visitar Assistiram tudo Uns em cima dos outros,aqueles gemidos orgásticos...Irmã Márcia,diretora do colégio Piedade era irmã de meu pai Benveniste estudou a linguagem dos animais, das abelhas,especificamenteImagino que um gato filhote tem um miado quando quer mamar,outro quando quer carinho e assim por diante Fico tentando organizar memórias,emoções,sentimentos para reconstruir a minha condição humana A ruptura imposta pela Pensão com direitos humanos,direitos de cidadania,me provocou uma confusão de valores O trabalho é ético,o amor é ético Diante da Lei da Pensão ficam antiéticosÉ uma lei que corrompeImagine um médico deixando de atender pessoas porque uma lei o impede de trabalharImagine um professor deixando de prestar o seu serviço porque uma lei o impede de trabalharNão é o Estado que beneficia mas o dinheiro do próprio beneficiado que pagou aquele benefício No caso de um professor ou professora,escolher entre um salário de miséria e uma Pensão de miséria não faz muita diferença Mas eu prefiro ser um miserável que pode amar,que pode pelo menos ter a esperança de dias melhores do que um miserável que é pago para ser prisioneiro de lei Ou melhor,de uma anti lei Não sei o que é pior:se vender a alma por um pedaço de pão ou comprar uma alma por um pedaço de pão Mais importante talvez seja saber em que realidade isto acontece Eis que consigo chegar ao final do meu curso de LetrasTínhamos que dar aulas numa Escola e descrever o trabalho Coube a mim uma Escola que trabalhava com Educação Especial Estavam lá crianças com todo tipo de problema Afasia,dislexia,problemas motores...Fazámos análise de diferentes tipos de linguagem Linguagem política,linguagem da propaganda,linguagem poética....O resultado foi surpreendente Conseguiam entender os parâmetros destas linguagens e ainda usar as categorias da Análise do DiscursoA Diretora da Escola gostou muito do meu trabalho Fiquei lá três meses sem receber nada porque era um estágio de final de curso A noite vem,o sono demora um pouquinho Durmo Começo a sonhar Me vejo num quartinho de hotel e saio andando pelos corredores Vejo numa das esquinas dos corredores uma mulher com o corpo e o rosto iguais a mimNão parece gostar de mim Saimos andando juntas e eu segurando firmemente o braço dela até que uma outra mulher vem e a leva emboraContinuo andando pelos corredores e um casal atrás de mim diz:lá vai Adelie Helene Adalgisa parecia uma Deusa africana Um Orixá Ela trabalhava lá em casa Me colocava no colo e eu me sentia voandoAlta,belíssima,cantava:Sai da frente minha gente,sai da frente que eu quero passarQuero ver Helenice Palito que está se esbaldando do lado de lá Ia sempre no bairro Floresta com minha mãe Numa destas tardes em que estávamos lá passou um mendigo,aos andrajos,gritando:Olhe as feiticeiras! Cuidado! Elas já sabem tudo! Olhe as feiticeiras! Tinha sete anos quando,dormindo,pedi para sonhar com a morteMe vi voando numa ventania velocíssima e eu,um fiapinho de gente,sendo carregada Pedi para parar o sonho e acordeiTenho presságios também Uma vez,lá na sala de minha casa vi emergirem do chão,meu pai,com seu training azul e um homem de ombros muito largos,todo dourado e muito sérioPouco depois,minha prima,que trabalhava comigo,chegou e disse que tinha se sentido mal na rua Capítulo VII Só Gil mesmo para conversar de madrugada sobre criançasGil,meu amigo de infância,trabalhou a vida inteira com crianças em situação de risco Achávamos que,para as crianças que estavam nas ruas gingando,fugindo de agressões,dormindo ao relento,esta escola é uma prisãoUm modelo centrado na escrita exclue a inteligência corporal,espacial,visual.Se entramos na escola prá aprender a sobreviver,temos que levar em conta que estas crianças são mestres da sobrevivência nas ruas,lugar por excelência da polis Tínhamos que reconhecer e compreender a sua bagagem E ficávamos conversando a noite todaUma vez ele me disse que,conversando com as professoras da rede municipal de ensino,elas reclamaram de disciplinaEntão ele deu a seguinte resposta:os meninos precisavam de um zagueiro para o time de futebol Não tinham Apareceu um menino de cinco anosCondicionaram todo o jogo à realidade do menino de cinco anos Perguntou às professoras se isto não era disciplina Meu pai,apesar de ter sido uma personalidade autoritária,tinha um respeito visceral pela vida Uma vez,ele nos contou,voltando de madrugada de Lavras,onde construia um colégio,viu um cavalo no meio da estradaEle tinha três opções Atropelar o cavalo e se salvar,jogar o carro nas rochas ou jogar o carro no abismo à esquerdaJá tinha decidido jogar o carro no abismo à esquerda para poupar a vida do cavalo quando o animal saiu do lugar e pôde passar com o carro Atribuiu a mudança de posição do cavalo à São Judas Tadeu Estava cochilando e me vi na sala com duas tias Irmã Márcia e tia EdithMe lembrei que elas tinham morrido e fiz um esforço sobrehumano para acordarNo meio deste esforço vislumbrei uma pombinha branca,pequena,balançando a cabecinhaQuando acordei ela desapareceu Alguns anos antes deste sonho,estava com um escultor argentino,fumando um baseado e ele era leproso O mais interessante é que nós estávamos na frente de um quartel e nenhum policial veio nos perguntar nada Ninguém me deu um emprego,não apareceu o companheiro,vivi assim,ao sabor das circunstâncias,procurando fruir o que havia de melhor nos momentosAndava com minha mãe,onde quer que ela fosse para não deixá-la cair mas as vezes ela fugia de mim e ia sozinhaNuma dessas vezes ela chegou falando que atravessou um tiroteio no centro da cidade,com direito a policiais armados,cavalos,tudoMe informou que quem a protegeu foi São Gerônimo,um santo que tinha sido tuberculosoA única referência que eu tinha de vida programada eram os Congressos da UniversidadeE os quatro salários mínimos da Pensão Acabei de ver agora uma entrevista de Lobo Antunes que me emocionou muito em Os Cus de Judas e ele diz que,num determinado momento conversou com uma senhora com um sério problema de colunaPerguntou como era a vida nestas condições e ela respondeu:tudo a poder de lágrimas e de ais Exatamente o que minha mãe e eu vivemosAndávamos muito devagarinho e o rosto dela,belíssimo,era um rictus de dor mas nós conseguíamos nos divertir,apesar disto e ela ria muito de mimComo diria Lobo Antunes .....percebe..... Dinheiro tem sido a causa da maioria das tragédiasA humanidade cria indústrias de guerra,morre de fome por causa dele.....Seria perfeitamente possível uma civilização sem dinheiro Só com o trabalhoA distribuição da comida seria sem a intermediação do dinheiro,a pesquisa medicamentosa seria sem a intermediação do dinheiro,mercadorias,vestuário.....As coisas valeriam pela sua qualidade em si,não pelo valor em papelPorque penso no valor em si das coisas é que agradeço a Deus ter privilegiado cuidar de minha mãePorque é o trabalho,prestar o serviço que mantém a humanidade e só se trabalha por amorPara se constituir família,para sustentar um filho.... Eu tive paixão por Lobo Antunes porque a primeira vez que conversei com ele ,me disse:não vamos falar de literatura,vamos falar de amor....num sentido geralNão só amor homem e mulher,mas amor à tudo que é vivoEle,que passou por uma guerra como médico A mesma coisa eu senti e sinto por Gil,que passou a vida inteira cuidando de crianças em situação de riscoUm poema em forma de homem Minha mãe e eu entramos novamente num corredor escuro Víamos as paredes do lado No final do corredor,abria-se uma grande loja de balas,bonbons,biscoitos de toda espécie Linda a loja Ficava na rua TamoiosEla comprou prá nós umas balas de amendoin que se quebravam na boca como massa folhada nunca vi nada tão gostosoAchávamos juntas estes lugares assim,surpreendentesNo Rio de Janeiro,no encontro da UNE,fui acompanhada por um estudante de jornalismo que me olhou o tempo todoAlmoçava comigo,me levou prá tomar sorvete,uma belezinhaNão consigo me lembrar do nome deleAnos depois,quando voltei lá para um congresso chamado Literatura de Mulheres fiquei no hotel GlóriaMe perdia naquele hotel enorme,com salas lindas que apareciam de repente depois de longos corredoresO último congresso em que fui,em São José do Rio Preto,me situou num hotel que ficava numa rua chamada Ondina,nome de minha mãe e a Universidade(UNESP) ficava defronte a uma avenida chamada Nossa Senhora da Paz Imagino civilizações onde não seja necessária a circulação de dinheiro Onde todos os serviços sejam garantidos pela necessidade e valor do trabalho em siAlguém procura,correndo o risco de vida,um médico e não é assistido porque não pode pagar a consultaO sistema que garante isto é um sistema criminosoAlguém chega desesperado no SUS,é um caso de urgência e não é atendido por falta de leitosAs grandes fortunas controlam a riqueza e ela não chega às necessidades básicas,as vezes,de quem trabalhou mais de trinta anos prá este sistemaÉ imoral Até cinquenta e quatro anos minha mãe trabalhou sem receber dinheiro algumE o serviço de dona de casa quanto mais se trabalha mais trabalho tem Ela era a graça da casa Trabalhava cantando,uma linda voz de contralto,cristalina,meio metálica,um encantoDe vez em quando ela servia um lanche prá nós que parecia uma cena de Bunuel,no interior da Europa Salaminho,queijo fresco,café preto,leite,pãoO mistério do amor materno na tardeUm réstia de sol saia da porta de vidro incidia sobre a mesa Me lembro de Rossana falando sobre Lênin na mesa de um boteco perto da região hospitalar Me explicou detalhadamente a razão do nome Centelha para a tendência de movimento estudantil que apoiávamosEstávamos almoçando e ela me explicando Se bem me lembro Lênin tinha um jornal chamado CentelhaFoi lá em casa um dia Meu pai estava almoçando Foi ela que fez o arrozPequenina,com jeito de ninfeta,mulher do Aroeira,cartunista mineiro Antonieta Cunha me falou que eu gesticulava muito para falar Estava apresentando meu trabalho sobre Maria Clara Machado Não notava mas gesticulava muitoEstávamos de acordo em que literatura infantil com cunho moral perde a qualidade literáriaAs vezes ia com um turbantesinho prá Faculdade de Letras,como Simone de Beauvoir Me sentia a própria Fui dormir no quarto ao lado do quarto em que minha mãe dormia porque estava carente Me encolhi na cama e dormi logoE comecei a sonhar De repente me aparece um homem negro,magrinho,com um flautim,tocando suavemente Na frente dele um boi negro Ele olhou prá mim e me disse serenamente -Os frutos da carne jamais te serão satisfatórios Meu tio Domingos,toda tarde,bebia exatamente,café com leite adoçado com açucar cristal e pedacinhos de pão com manteiga Itambé,picadosEle foi vítima de um erro médico e ficou com doença de parkinsonNo último ano da Universidade de Direito os amigos apoiavam a mão dele,que tremia muito,para que ele fizesse os trabalhos que a Universidade pediaEra advogado,tinha a barba sempre por fazer e era uma doçura Estávamos num boteco chamado Canto Latino,Solange e eu Ficava perto da Praça da LiberdadeVeio uma mendiga e me fez uma declaração de amor E repentinamente me deu um beijo na boca e eu correspondiBeijo de línguaSaíamos muito Uma vez por mês,Solange ,minha irmâ e eu íamos jantar no Minas Tênis ClubeAchava uma graça,minha irmã,já economista,servidora pública,passando baton na boca e balançando o cabelinho chanel dela Nós víamos vários discos voadores quando éramos pequenas Minhas primas,minha irmã e eu Aparecia algum objeto estranho no céu,todas nós corríamos,gritando,olha o disco voador!,olha o disco voador!Durante a infância,nunca pensei em estudar Ufologia Só em idade adulta percebi que meu pai estudava isto Algumas coisas a gente não explica no plano racional Sonho muito com Aécio Neves sempre numa atitude de muito carinho,muita ternura comigo E não o conheço pessoalmente Uma vez,sonhei que estava com uns músicos que estavam me maltratando Faço música sinfônicaO Aécio me enlaçou e foi me afastando docemente do lugarMe disse,essa gente é muito barra pesada prá vocêAcho fantástica a Dona Ruth Cardoso Uma vez apresentei um trabalho ao lado de uma professora de Paris VII Sobre Safo Tentei demonstrar porque razão a escrita de Safo era uma escrita feminina Quietinha no meu canto,ninguém me perguntou nadaGraças a Deus Se alguém fosse entrar no meu psiquismo seria muito difícil explicar porque acho que o Alfredo Sirkis é reencarnação de Ashtar Sheran Porque acho o Gil um homem cósmico.Porque não procurou poder político,título ou fortuna Passou a vida inteira lutando por crianças em situação de risco Inclusive nós dois mesmo Enquanto,na década de sessenta,tinha gente fazendo guerrilha e gente fazendo tortura,meu pai,de madrugada,nos levava para lugares descampados,pequenas florestas e relvas,para procurar disco voadorMamãe implorava,pelo amor de Deus Aluísio!,nós vamos ficar perdidos aqui! E nós olhando as estrelasEle tinha uma cabeça proeminente,para trás,parecia um ET Tenho três anos e estou,de madrugada,sentadinha na soleira da portaTrês velhinhos,com a cabeça toda branca,discutem com papai se devem cobrar ou não o concerto que iriam dar para operáriosAcabaram de criar a Sociedade Mineira de Concertos Sinfônicos e querem dar música de qualidade para os operáriosBrigam Tem gente que acha que devem cobrar e tem gente que acha que nãoEnfim,decidem cobrar um preço simbólicoAssim os operários não perdem a dignidade Outro dia,aqui na casa do Claudio,meu irmão,vi uma luz dourada atravessar a janela,bater em vários pontos da televisão e se espalhar no chãoO curioso é que esta luz tomava direções diversas,se interrompia repentinamente,sem seguir a lógica de reflexos do solE não era luz do sol Tem mais ou menos um mês isto Entrei num processo de reflexão Minha mente ficou mais tranquila Consegui entender,por exemplo,como vencer as minhas dificuldades para compor para a harmõnicaPosso,por exemplo,seguir uma linha melódica e construir os intervalos e os acordes analisando quais notas são sopradas e quais notas são aspiradasA harmônica é um instrumento delicado Misterioso Conheci dois concertistas de harmônica Estão tocando o concerto de Villa Lobos para harmônica e orquestra pelo mundo todoMandei o concerto de Villa Lobos para um delesMas ainda tenho algumas dúvidas sobre este instrumento que foi o instrumento que meu pai tocou Em mil novecentos e oitenta e dois,conversei muito com a Rosaura então presidente da SIND UTE Ela é formada em Física e em HistóriaPassei uma tarde com ela e ela estava corrigindo provas E dizia....ó,esse aqui não sabe nada mas vou dar nota prá ele porque ele não vai conseguir recuperarEla me disse que não gostava de ver como John me maltratavaIa me relacionando com as pessoas que encontrava nas ruas,na Universidade....Rosaura era uma pessoa boníssima Quando cheguei em Santa Tereza meu projeto de vida era ser uma dondoca Antes morava na Barroca que era um bairro de gente rica e meu paradigma era ser uma mulher de sociedade Mas aí,minhas primas começaram a fazer Vestibular.entraram nas Universidades e acabei fazendo também Entrei no curso de Letras A Ângela e minha irmã,Adriana,são economistas,a Ivânia é contabilista,Fátima.dentistaComecei a fazer Concursos Públicos para trabalhar,passei em quatro,fora da classificação,como já disse,comecei a dar aulas e tudo o maisNa adolescência,viajava com meu pai pelas estradas de Minas ìamos todo final de semana a Lavras,onde ele construia um colégioViajávamos de madrugada,debaixo do céu estrelado,as vezes pelas manhãs,sempre conversando Uma vez o parabriza começou a fazer um barulhinho Perguntei a ele o que era e ele me disse que era a risadinha do ventoO vento batia no parabriza e emitia este som. Sonho com o dia em que toda a riqueza produzida por muitos e nas mãos de poucos,seja administrada por conselhos populares de bairro a bairroImposto sobre as grandes transações bancárias não basta se isto ficar nas mãos de poucos líderes Tem que ir para as mãos do povo representado por conselhos populares de bairro a bairro Meu pai achava que minha mãe não daria conta de trabalhar fora E ela sempre desejou istoQuando ela fez supletivo,com mais de cinquenta anos resolvia problemas de Física e acertava todos Eu vi isto Nesta república,enquanto os líderes movimentam bilhões,vivi,até bem pouco tempo,com quatro salários mínimos fazendo um trabalho correto como professora e um pouco de músicaEstou desarmada e faço parte da grande maioria do povo brasileiroA Composição Sinfônica foi,até certo ponto,um consolo prá mim Tenho a impressão que estes líderes vão terminar atirando contra o povo,desarmado e inocenteAtravés,quando não pessoalmente,dos aparelhos ideológicos do Estado,como,por exemplo as polícias,manipuladas pelos poderosos Este é o papel que lhes cabe Pensei muito na D.Ruth Cardoso porque recebi uma homenagem em Araraquara e ela é de lá Creio que achei meu caminho de pesquisa Os índios xikrin,da nação Kaiapó acreditam que são de origem extraterrestreAcreditam que receberam um extraplanetário que desceu numa canoa dourada e fecundou algumas mulheresHá muito tempo que acho que alguns relatos míticos são retradução destes contatosInclusive a Gesta de AsdiwalLi um estudo desta Gesta dentro desta perspectivaSó poderia fazer este Doutorado na AntropologiaSonhei com D.Ruth com um cristal todo iluminado na mão Lá na rua cobreTeria que pensar no enfoque Alguma coisa entre o Real e o Imaginário só que não acredito que estes contatos sejam imagináriosDigamos que sejam assim,transcendentesPapai estudava ufologia Quando ele morreu tive vários pesadelosSonhei que vários soldados,no centro da cidade,jogavam minha mãe e eu em colchões pretos e atiravamDepois sonhei que mataram minha família inteira e que eu fui para o interiorNão é possível Claudio faz uma pesquisa seríssima em segurança do trabalhoMinhas motivações já estão claras prá todo mundo Tomara que o cristal da D.Ruth Cardoso ilumine tudo Quando comecei a passear pelo bairro Santa tereza já estava meio robótica Circulava as ruas Mármore e Salinas e depois ia para a Rua EuritaTínhamos uma turminha boa lá A Cristina e o Mazza,as filhas de seu Robespierre e o irmãoFomos a uma festinha lá Achava que esta segurança ilusória era eterna Minha família me garantia e,porque não dizer,me impedia também de trabalharTalvez alguém diga:mas seus irmãos conseguiramNão podia deixar minha mãe se arrebentar no chão sem apoioE meus irmãos não questionaram a obediência paterna,por isto foram menos marcadosNo colégio Promove não me deixavam passar pela porta dos professores Achavam que eu era alunaTinha vinte e um anosUma vez,lá no Promove,vi duas crianças de uns dez anos se beijando na boca Lindo! Fiquei caladinha Fui dar a minha aula Penso agora nas pessoas que se aposentaram com salário mínimo e que estão passando fome,nas pessoas de origem humilde que não conseguiram entrar no sistema formal de trabalho e nem têm aposentadoria,no desespero que deve ser Na minha vida,fui sendo afastada das situações institucionalisadas de trabalho porque meu pai me solicitava o tempo todo para trabalhar com ele com músicaDepois que meu pai morreu,minha mãe adoeceu gravemente com artrose na coluna inteira e não podia deixá-la sair sozinha Não tenho aposentadoriaMe concentrei em adquirir uma profissão Sou professora de Língua Portuguesa,Literatura e MúsicaNão sei o que o Instituto vai fazer comigoNão posso trabalhar e não sei se posso ficar sem trabalharAdquiri com minha mãe uma experiência de profissional de enfermagem Acompanhei minha mãe a todos os médicos,todos os hospitais,tudo enfimCombinava os meus horários com os dela Com meu pai,fazia tudo no tempo que sobrava prá mim Em cinco minutos ele me dava ordens umas dez vezesFormalmente ele não era contrário à idéia de eu trabalhar fora mas na prática isto era impossívelMas o que me consola é que a realidade tanto pode ser muito dura quanto mais onírica do que o próprio sonhoEstava no caminho da Universidade quando olhei para o céu e vi vários lenços,voando,com cores entre rosa claro e azul claroFiquei intrigada Não eram pandorgasHá poucos dias a Virgínia me falou que existem naves plasmadasConversei muito com o Húlvio Brant Aleixo e fiz este relato considerado oficial Quando contei do pequeno ser prateado que vi ao lado de minha cama ele me disse:era este relato que você tinha que fazer Vinte por cento da humanidade vive este tipo de experiênciaMe perguntou se a porta estava aberta.Não estava.Se a janela estava aberta.Não estavaMe assegurou:você não tem um discurso psicóticoSou psicólogo clínico O que me salvou com relação ao perfil de meu pai é que ele só me deu ordens sublimesAlém dos tradicionais.....pega um café prá mim,atende o telefone....ligávamos para um centro espírita em Cambuquira e pedíamos ajuda prá pessoas com doenças graves,problemas de relacionamento...os guias resolviam tudo conversando com as pessoas fora do corpoMas eu atendia meu pai sem parar A obediência não é uma virtude É uma forma de se conseguir submissão em regimes ditatoriais,em ditaduras econômicas....é uma forma de garantir a lei do mais forteEm uma coisa eu tinha afinidade total com meu pai Fazíamos análise musicalAs madrugadas todas durante a Ditadura Militar Era uma delícia lidar com a linguagem musical Virgínia olha prá gente com aqueles olhos translúcidos,transparentes e orientaVocês vão compor começando no modo frígio na escala de lá maior Por causa da Virgínia tornei conscientes as minhas estratégias de composiçãoUma inteligência como esta a serviço da humanidade enfrentando as vicissitudes da vida de professoraHomens que não produzem nada,só movimentam dinheiro,estão confortavelmente instalados em seus escritórios,em seus palacetesEla é ufologista Meu pai pesquisou ufologia a vida inteiraPapai passava noites a fio me explicando porquê a velocidade do pensamento é maior que a velocidade da luzEu já dou graças a Deus de conseguir estruturar o meu pensamento Na década de sessenta,meu pai fazia um curso com uns amigos que estudavam cada noite na casa de umAcho que era um curso clandestinoVi,lá em casa,apostilas orientadas pelos Fernando Henrique CardosoVejo estes intelectuais mas o que eu acho pungente são pessoas que vivem com dois mil reais,pobres miseráveis que nem conseguiram entrar no sistema legalizado de trabalho e que trabalham e trabalharam a vida inteiraO desespero de faltar dinheiro para uma conta de água,uma conta de luz,para alimentaçãoMuitos anos depois,já no final da década de setenta,as vezes via meu pai aflito,andando a noite inteira Perguntava porquêEle me dizia que tinha uma avaliação do funcionário público que ele tinha que fazerEle achava isto a instituição da deduragem Me falava:não sou dedo duro Dava excelente para todo mundoDepois de ter passado a vida toda cuidando de minha mãe e apresentando meu trabalho em congressos,por causa da Pensão,não tenho aposentadoria,plano de carreira ,nada. Me pergunto por quê um professor da rede municipal de ensino ganha muito menos do que um servidor públicoA ignorância é o alimento de todas as ditaduras,portanto,interessa às ditaduras matar os professores de fomeAs ditaduras de extrema direita são construídas sobre um alto grau de concentração de riqueza e sobre os lacaios do poder que,com seus altos salários servem aos endinheiradosOs funcionários públicos,os professores,são pobres em relação a estes altos salários mas é esta nomenklatura que serve de instrumento à concentração de riquezaEnquanto isto as pessoas morrem nas filas de hospital,nas balas perdidas,nos extermínios......O operariado procura reproduzir valores de grande burguesia e vive uma tragédia pessoalEstamos num populismo de extrema direita Fico me lembrando dos amigos de meu pai,pessoas que pesquisavam ufologia,gente de origem humilde,que vivia com o essencial e sonhava com as estrelas e não consigo me situar diante dos políticos brasileiros,dos endinheirados,porque estes amigos eram gente que,por exemplo,não comia carne,porque consideravam matar qualquer ser vivo,um crime cósmicoMe lembro,por exemplo,do professor Milton,que morava numa montanha cheia de casinhasTínhamos que subir batidas de terra prá chegar láMe lembro do João,que não é o João que me bateu,e que nos dava um delicioso bolo de fubá feito pela dona Lúcia Trabalhou no CICOANI por mais de vinte anosA Virgínia Bernardes não faz a mínima idéia de como eu a compreendo e amo Como irmãMas a vida segue,muitos já morreram e tenho que encontrar novos grupos,novos amigosSe o Instituto deixar uma vez que não posso fazer nada Nem amar e ser amada Nos momentos em que a necessidade é extrema se faz necessária a extrema delicadeza Quando andava com minha mãe nas ruas e sabia que a perna dela falseava,olhava constantemente o chão para avisá-la de buracos,pedaços de passeio faltando e as ruas para controlar o trânsitoEsta artrose de minha mãe foi uma fatalidade porque ela sempre tinha pessoas para ajudá-laNunca fez trabalho pesadoUma vez,vi um político tido e havido como progressista,gritar para um pivete....Sai prá lá,sacana!Estava ao lado do LulaDisposições como essa explicam crimes como o da Candelária O sofrimento de minha mãe me ensinou muito sobre a necessidade da delicadezaSobretudo com crianças,idosos,pessoas com qualquer tipo de problema Ontem,onze horas,estava no quarto,resolvi sair. A casa estava em silêncio e achei que estava todo mundo dormindoOuvi um barulho na varanda e quando fui lá,meu irmão estava em pé,olhando para o céuFalou comigo....olha lá o eclipse Helenice ......Pela primeira vez em minha vida vi um eclipseEle estava com um gorro de lã que o deixa com um jeito de menino,muito alto,sozinho na noite Hoje conversei com Angélica,minha amigaMe disse que a amiga dela conseguiu comprar um apartamento só com dinheiro de aulas particularesNão dou esta sorte Não consigo alunosFico sonhando com a sala da minha casa cheia de crianças e eu dando aula de músicaFiz um trabalho lindo com a Angélica Passei para a partitura a músicalização que um amigo dela fez com um poema que ela havia escritoPosso fazer trabalhos de ofício Passar prá partitura,fazer transposição de um intrumento a outroTenho conhecimento de ofícioSó isto me faz pensar que a vida já valeu a penaQuando fiz este trabalho junto com a Angélica,não tinha radiola Então,ia prá casa de minha mãe e usava a radiola dela Segundo Marx,a cada um segundo a sua capacidade e a sua necessidadeMinha dúvida: Isto talvez justifique a desigualdade de riquezas Conversava horas com ClevaneEla tem formação em Psicologia e eu em Letras ,no entanto vivemos experiências pedagógicas parecidas Tive um aluno que fazia questionamentos tão séros em língua portuguesa que dava a impressão que ele não tinha aprendido a matériaEla trabalhou com crianças que,pelas mesmas razões davam a impressão de deficiênciaEla leu a Claude Mosset,eu tive notícia desta pesquisadora que achou outras poetisas escrevendo na época de SafoTinha muita afinidade com elaDepois que minha mãe morreu,perdi o contato O primeiro emprego de meu pai foi num escritório Tinha onze anos e o trabalho dele consistia em varrer o escritório Me contou que,lá um dia,sentou no sofá de entrada com a vassoura na mão prá descansar um pouco Foi despedido Saíamos de madrugada,meu pai e eu,prá comer macarrão no bar do Bolão,depois de horas a fio fazendo análise musicalO que me impressiona na linguagem musical é a proporcionalidade A mesma quantidade métrica na primeira,na segunda e na terceira vozTenho feito os meus trabalhos em sete por quatro A Virgínia nos aconselhou a evitar os quatro por quatro porque fica muito quadradinhoTenho inventado as minhas próprias escalas Faço harmonia simultânea,harmonia expandida,com minhas próprias escalasDá resultados muito inusitados Gostaria de proteger meus irmãos Meu irmão,só vejo de noite Ele trabalha umas doze horas por dia Minha irmã,converso com ela de dois em dois dias,por telefoneFico na casa de meu irmão,num estradão que vai prá Nova LimaMe sinto perdida no Cosmos Mandei meu currículo para o Pitágoras e para o Promove Um currículo com Mestrado,várias publicações,participação em Congressos.....Não mandaram nenhuma resposta Tenho a impressão que o processo de contratação deles obedece a leis de mercado; não a qualidade de currículoNão tenho parâmetro de nada Não sei se fazer um trabalho qualificado vai me garantir salário ou nãoNão sei se o Instituto vai manter a Pensão,se não vai,e mesmo com um currículo qualificado não encontro possibilidade de trabalhoNão tenho mais referência para saber diante de que valores éticos eu estouSe um currículo qualificado não me garante trabalho não sei o que devo fazerMe lembro do tio Domingos formado em Direito e sem poder exercer a profissão por causa do ParkingsonSinto um peso de chumbo em cima de mim Me ocorrem imagens tristes O povo correndo nas ruas,de médico a médico,sem ser atendidoBuscando aposentadoria sem alcançar os próprios direitosQuando era mais jovem,ouvir Caetano Veloso me tonificava Ficava ouvindo horas e achava a vida mais bonitaGilberto Gil a mesma coisa Fui ouvir os dois cantarem junto com minha irmã e dava saltos quase como se estivesse voando ao som da músicaTinha um pessoal lá passando um baseado,fumei com eles Não senti mais o meu corpoFui uma criança que trabalhou mais de dez horas,de madrugada,com música sinfônica e amava Gil e CaetanoMeu pai,nas viagens que a gente fazia prá Lavras,me aconselhou a seguir o exemplo de vida daquela música que a Gal cantava,....você,precisa saber da piscina,da Carolina....acho que já disse isto Acordamos às cinco horas da manhã A operação seria às sete Mastectomia Retirada de câncer na mamaEstava escuro Senti a angústia de alguém que sabe que pode não voltarO hospital parecia um balcão de entrada de aeroporto Portas de vidro,várias entradas e saídas....inclusive para nunca maisA primeira operação que fiz,a retirada de um apêndice,foi muito dolorosa O câncer não dóiAté gostei de fazer quimioterapia,radioterapia,ver gente....Todo mundo lutando pela vida Sinto mal Uma dor lancinante na boca do estômago Chamo a ambulância Os enfermeiros tiram a pressão,me colocam no carro e vamos Hospital São FranciscoUm enfermeiro me informa que vai injetar um complexo de remédios Fico meio grog Fizeram vários examesTenho pedra na vesícula Operação programadaDuas horas da manhã Amanheço no hospital,fazendo examesVolto para o meu apezinho num taxiSozinha No hospital São Lucas,onde operei do apêndice,o soro passava gelado nas minhas veias Sentia muita dorPedia analgésicos sem parar e as enfermeiras me diziam que não podia ficar viciada em analgésicosEles me davam uma sonolência consoladora A dor diminuiaTenho uma vasta experiência de hospitais e procedimentos médicosA começar pela gastroenterite com onze meses O Instituto me mandou uma carta me informando que os estudos que informam meu processo já estão no PostoJá disse a eles que abro mão tranquilamente de uma das pensões e que nem me importo de perder o processo,uma vez que tenho outra Pequenininha mas tenhoMas não entendo Se todas as duas pensões são sacramentadas em Lei qual a razão da dúvidaEste Instituto me atormenta tanto que tive um pesadelo e caí da cama Quase quebrei o pescoçoSó prá ficar livre deles eu não me importo de perder Para desfrutar desta Pensão fui prejudicada em uma série de direitos da pessoa humana que estão lá,no Código Civil Portanto,esta Lei é Incontitucional porque o Código Civil é anterior a ela Algumas vezes me defrontei com a ternura,com o sonho ,outras,com algo estranho que não posso definirTinha uma amiguinha deveras feroz Ela batia a cabeça do Claudio,meu irmão,então com um aninho,várias vezes na paredeEla ia lá no bercinho do Claudio e arranhava o rosto dele todoMatava todos os meus porquinhos da índia Não sei o que explica uma natureza destas mas talvez,muitas pessoas que lutam violentamente por princípios,sejam de direita ,sejam de esquerda estejam apenas dando vazão a este tipo de personalidade As pessoas falam de conflitos existenciais,problemas emocionais mas se esquecem que sem acesso à alimentação e moradia não é possível nem o conflitoA radicalização entre a pauperização absoluta e os grandes negócios que fazem as grandes fortunas ,que só são possíveis por causa da grande massa de trabalhadores que vivem a nível de subsistência,é uma vergonhaMeu pai me falava sobre Tito,da Yuguslávia,que conseguia,através da auto gestão,distribuir entre os trabalhadores,toda a riqueza que era produzida em escala industrialEle falava prá mim que Tito conseguiu enganar tanto Stalin quanto os Estados UnidosNão é possível,por exemplo,resolver o problema da previdência com o dinheiro de um assalariado cujo dinheiro não dá nem para a própria famíliaIsto é uma farsa cínica dos poderes públicosA CPMF é retirada do salário do trabalhador que vive a nível de subsistência Não vai haver dinheiro circulante para pagar nada Estou cuspindo sangueAcho que estou com algum problema na gargantaO Instituto me mandou todo o meu processo de Pensão menos o estudo sócio econômico que embasou o processo Acho que comecei a cuspir sangue depois que caí da cama,na casa de Claudio,e bati com as costas com uma força brutal no chão A dor que senti é indescritívelEstava sonhando com meu pai e com Claudio No sonho,Claudio estava deitado numa cama com um lençol muito alvo e meu pai estava do lado,olhandoAo lado de meu pai,havia uma figura,mais ou menos do tamanho dele ,que parecia uma alga marinha com vida humana Fui tentando me ajeitar na cama,quando vi,estava no chão Meu pai era do tipo desesperado Entendi as três vezes que ele me bateu por istoQuando fugi,com quatro anos,porque ficou com pavor que eu desaparecesseQuando bati a cabeça no mármore,porque eu podia arrebentar a cabeça na mesaQuando queria esperar meus companheiros,porque era um lugar muito escuroUma tardemquando disse que ia na reitoria com o pessoal do DA,teve uma crise de choro porque achou que eu podia ser torturada e morta por istoMas eu tinha companheiros muito sensatos Quando disse para Luciano,hoje Doutor em Literatura Comparada,que era capaz de entrar em uma luta armada ele me disse que Revolução é mudança de paradigma e não,matar ou morrerQuando meu irmão viajava prá Brasília para visitar a atual esposa dele,meu pai ficava a noite inteira acordado,sentado na sala,até ter notícia de manhã O professor Nelson Piló era um gênio Compositor bissexto Fazia todo o trabalho de ofício nas partituras de Radamés e VillaLobosFui aluna dele Violão clássico Lutava com muita dificuldade Fazia trabalhos de ofício e dava aulas de violãoO filho dele,gênio também Achei entre as coisas que ficaram lá em casa um Divertimento do Alexandre para Harmônica e Violão Ele tinha doze anos O fato de a Lei da Pensão ter me induzido a ficar sem família,me leva a prestar atenção a tudo em mim que está vivoAmo o sonhos com sua falta de lógica surrealistaEsta noite sonhei com uma professora,moreninha,baixinha,e nós estávamos organizando uma festa para crianças da escolaUma escola muito pobre,com o passeio quebrado,matinho entrando pelo portão adentroEstávamos sentadas no chão com as pernas cruzadas De repente eu me levantei e um enxame de baratas,muitas mesmo,subiu pelas minhas pernas e apareceu minha irmã,muito mais alta que o tamanho normal dela,com o corpo coberto de lâmpadasConversamos um pouco Minha mãe e eu éramos como duas formiguinhas presas por uma gota d'águaFicávamos tentando ajudar uma a outra para não afundarmos Quando morávamos lá em Santa Tereza,tive um sonho muito místico com minha mãe Me vi chegando numa pequena escada Duas adolescentes belíssimas,com longos cabelos brancos,estavam descendoMe conduziram para um recinto onde havia um caixão de cristalMinha mãe estava lá dentro,de olhos fechadosLinda,com o rosto muito jovemÁurea Maria,sobrinha dela,minha prima,estava ao ladoÁurea era muito linda tambémAcordei,repentinamente,fui ao quarto de minha mãe,estava tudo bemEsta noite também tive um sonho Vi o retrato de meus pais no móvel preto lá da salaAo lado do móvel,um grande vão esmaltado,branco e ao meu lado,meu paiFui olhar o rosto deles de perto,quando cheguei perto de meu pai de novo,tinha desaparecidoDesci o vão,perguntei para alguns passantes se o tinham visto Nada