sábado, 16 de fevereiro de 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE MÚSICA A DIMENSÃO PERCURSSIVA DO CHORINHO BRASILEIRO HELENICE MARIA REIS ROCHA Trabalho apresentado à Disciplina Práticas Musicais Afro-brasileiras do Curso de Mestrado em Educação Musical da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte Dezembro 2006 Pretendo, neste estudo, estabelecer uma interface entre o Chorinho brasileiro e os rítmos africanos,demonstrando a semelhança entre a métrica imanente a alguns destes chorinhos e os rítmos em questão Começo por ponderar que, se pensamos nos rítmos africanos como uma infinidade de possibilidades mais ou menos aleatórias,há quem diga que este corpus é bem menos fruto da diversidade do que se imagina Assim sendo, trata-se de delimitar aqui os chorinhos nos quais a imanência do caráter percursivo é recorrente e mostrar que tipo de rítmos padrão se lhes assemelha Para reforçar minhas reflexões valho-me de Arom, “Whem one speaks of African music, “one often refers to the” infinite variety of its rhythmic and its”improvisational” aspect. But, a deep examination of the musical practice of a traditional society reveals that the rhythmic system,far from being infinite, is, quite to the contrary,perfectly finite.It constitutes, in fact, a closed corpus of polyrhythmics formulas-that is,the combination of several superimposed rhythmic figures-adapted to diverse social circunstances” (AROM, 1984, s.d. 51). A imersão da poliritmia africana na chancela da diversidade, a meu ver, obscurece a objetividade dos estudos etnomusicológicos, transformando este repertório rítmo em algo sem rosto, impessoal, como as canções populares ditas de domínio público E esta é, a meu ver, uma das formas mais eficientes de alijar uma cultura do seu lugar de sujeito da sua enunciação É lugar comum aceitar que a base da compreensão da música africana está no rítmo mas quero advertir também para o risco de se incorrer numa atitude totalitária ao se eleger uma única matriz métrica. Para tal valho-me das palavras de Kofi, “That the distintive quality os African music lies in the rhytmicic estructure is a notion so persistently thematized that it has by now assumed the status os a commonplace,a topos.And so it is with related ideas that African rhythms are complex,that Africans possess a unique rhythmic sensibility and that this rhythmic disposition marks them as ultimately diferent forms” (KOFI,2003,s.d..55). Por isto estou delimitando o meu corpus ao chorinho, sobretudo o carioca, sem pretender esgotar a minha análise sobre o caráter percursivo das suas possibilidades rítmicas mas fixando com clareza o corpus observado,seja através das time lines ou da linguagem musical convencional Gostaria de evidenciar a imagem métrica que sempre assume a dianteira quando pensamos em rítmos afrobrasileiros A síncope Também no chorinho a síncope encabeça o elenco de rítmos que jogam o chorinho no terreno da dimensão percurssiva Em torno da síncope articulam-se variações que se afastam ou retornam a este modelo dependendo do balanço, da ginga, do espírito de movimento que este chorinho evoca Trata-se portanto da delimitação de um corpus mas flexibilizada por possibilidades mais ou menos diferenciadas de valor comparativo Vou começar pelo chorinho de Altamiro Carrilho, Caco de Vidro Logo na primeira frase temos:Semi colcheia,colcheia,semi colcheia,pausa de semi colcheia,três semicolcheias,isto nos dois primeiros tempos Vamos aos próximos: oito semicolcheias, repetição da anterior, idem. Trabalhando esta possibilidade percursiva, reproduzindo nos tambores vamos ouvir claramente algo da ordem do Candomblé, por exemplo, ou da Umbanda Vejamos agora Heitor dos Prazeres em A Coisa Melhorou Logo nos dois primeiros compassos temos, num 2/4 uma pausa de semínima,pausa de semicolcheia seguida de três semicolcheias nos dois primeiros tempos,seguidos de quatro semocolcheias,semicolcheia colcheia semicolcheia, ligadura, colcheia, semicolcheia, ligadura semicolcheia colcheia, semicolcheia ligadura semínima Reconduzidos à percussão estes rítmos mostram claramente a sua matriz africana Vejamos aqui a recorrência à sincope Logo no primeiro exemplo: semicolheia colcheia semi colchaia, repetição sistemática do mesmo rítmo no exemplo seguinte Vamos prosseguir agora no nosso esforço de flagrar esta recorrência ao percurssivo no chorinho brasileiro Vejamos o chorinho Garoto de Ernesto Nazaré Começa com uma colcheia em fermata e uma semicolcheia Trata-se de uma anacrus num compasso 2/4 Segue uma semicolcheia, colcheia semicolcheia(síncope) Duas colcheias Próximo compasso, colcheia pontuada semicolcheia pausa de semicolcheia três semicolcheias, próximo compasso, oito semicolcheias Seguinte, colcheia pontuada, pausa de semicolcheia colcheia semicolcheia (síncope) Próximo compasso semicolcheia colcheia semicolcheia duas colcheias Fim de período musical Jogando isto na percussão podemos ver com clareza a dialética da africanidade neste ritmo No chorinho Marilene de Pixinguinha/Benedito Lacerda, seqüências inteiras de semicolcheia colcheia semicolcheia Há que se lembrar também que, por razão de ser música, o chorinho enfeixa entre outras coisas a possibilidade da dança Originalmente, o rítmo é também compreendido na cultura africana como possibilidade de marcar movimento corporal atrvés da dança Assim, de acordo com Kubrik “According to Luís da Câmara Cascudo(1954:114),the term “batuque” was used in the nineteenth century by Luso-Brasilians as a generic designation for dance gathering by Africans in Brasil”(Kubik,1990,pág.115) Então, como já havia assinalado np projeto inicial,a rigor não estou separando a idéia de rítmo no chorinho da sua possível relação com a dança,religiosa ou não,aqui possivelmente representada pelo samba,pelo Candomblé, pelo jongo, enfim, tudo que puder recuperar no espaço deste estudo que sirva de interface com os rítmos inventariados No chorinho Marilene, de Pixinguinha começamos com quatro semicolcheias, pausa de semicolcheia colcheia semicolcheia São sete notas ao todo no compasso com os tempos forte e fraco recaindo nos mesmos pontos dos sete tempos represntados pela maraca simbolisada em time lines no texto de Gehard Kubik,na página 139 do livro Drum Patterns of Benedito Caxias Acredito poder afirmar que todo o trato da cultura africana com a música não precinde de certos padrões rítmicos que remetem á percussao, bem com à relação entre estes padrões e a dança, rituaística ou não Comparando alguns cantos de Moçambique do Congo com os referidos chorinhos pude também preceder a algumas interessantes ilações O cantinho ô Sinhá ô Sinhá é uma repetição cadenciada de semicolcheia colcheia semicolcheia Nos cantos Ô Mané Calunga, Ô Dindinlelê, ambos do Congo, observa-se a recorrência à síncope construída sobre pausa de semicolcheia,colcheia semicolcheia recorrente em vários dos chorinhos observados Cito aqui Evocação a Nazareth de Canhotinho,entre outros Vou tentar estabelecer aqui alguns padrões rítmicos bastante comuns a estes chorinhos que talvez possam ser cotejados com resultados clássicos de etnomusicólogos Séries cadenciadas de semicolcheias colcheias semicolcheias, Convencionando um x ou um traço para cada semicolcheia poderíamos representá-lo por x, traço, traço x, Outro padrão rítmico freqüente tem sido colcheia pontuada semicolcheia ligadura com semicolcheia semicolcheia Usando a mesma convenção teríamostraço, traço, traço, xctraço, traço, x Quaisquer que sejam as variações, a síncope enfeixa todas as possibilidade definindo o estilo do cada formato percurssivo Assim, em Sonhando de K. Ximbinho, temos no segundo compasso 2/4 semicolcheia colcheia semicolcheia, ligadura, semínimaa versão invertida do mesmo desenho métrico no segundo compasso de Ô Sinhá, Ô Sinhá. No primeiro caso teríamos x, traço, traço, x, xxx Não estou usando a minha convenção métrica como os etnomusicólogos procedem com as time lines mas espero ter conseguido me comunicar Em todo o caso é bom considerar que algo da linguagem musical flutua entre as possibilidades da convenção e o indizível já que não existe nenhuma convenção que dê conta de todas as possibilidades linguageiras, muito em especial a linguagem da música Acho até que a fragilidade dos pesquisadores diante da imponderabilidade que circunstancia o evento musical antes de ser representado numa convenção nos permite um passeio no devaneio já que não existe uma verdade absoluta que testemunhe a possibilidade total de acerto na delimitação em uma convenção de algo que é efêmero, a experiência vivida como práxis da linguagem musical Então, quer na experiência do batuque, quer no concerto sinfônico, algo se torna partícipe da perda, da indizibilidade, herança de uma memória que não se traduz sobrevivendo como nostalgia, lembrança incerta de uma fuga barroca meio profana insistindo em perpassar a cadência hipnótica de um rítmo africano Os pesquisadores erram, dormem sobre os pergaminhos, dormem sobre os atabaques e isto é bom, precede a invenção de linguagens que não seriam possíveis na vigília senão na sombra, no entre lugar de um devaneio sem método, na falência dos recursos da compreenção Talvez por isto as escalas temperadas não tenham sons para expressar gemido de um açoite Meu pai era concertista de experiência internacional e fazia exercícios de voz com sons guturais de madrugada Isto lhe permitia tocar Bach com a técnica do Spirituals Bem, voltando ao chorinho, mesma que compare com o máximo que puder do trabalho da etnomusicologia espero, para além disto, poder captar algo desta africanidade que não tenha sido possível de se ver através deste trabalho É claro prá mim que estas tentativas de aproximação de entre padrões semelhantes e experiências diferentes só pode ser compreendida como possibilidade recriadora do que é em si irredutível, já que não me atreveria jamais a dizer que poderia igualar os rítmos do ritual de Nossa Senhora do Rosário com o Samba,ou do Candomblé com os rítmos do Choro ou vice versa sem cair nun reducionismo estéril Mas assim como no caso da tradução de poesia,posso recriar repertórios,fazer inferências lançar hipóteses Isto eu espero Com a esperança de quem passa a noite em claro para não perder a manhã Assim sendo, gostaria de estar aberta para uma percepção rítmica que compreenda o conhecimento de rítmos africanos para além da pesquisa sistemática Com isto quero dizer que em determinados momentos vou esbarrar com experiências rítmicas que até contrariem esta pesquisa e que vão ser percebidas como rítmos da África A idéia de uma pureza original que se perpetua,de rítmos que se transformam em cânons é toda recolocada por uma perspectiva que pensa uma tradição móvel, em permanente transformação através da socialização dos seus signos Com isto quero dizer que o chorinho cantado hoje nos morros cariocas, com certeza mantém alguma coisa do chorinho de Pixinguinha mas contém esta outridade que nos leva a reclassificações quando vamos sistematizar um corpus ou definir velhos cânons É claro que o chorinho de Chiquinha Gonzaga não é o mesmo de Ernesto Nazareth, um chorinho de Pixinguinha não é o mesmo de Altamiro Carrilho... E assim por diante O que eu gostaria de flagrar aqui são algumas semelhanças estruturais que nos permitem religar a experiência do choro com sua matriz africana sobretudo através do rítmo Como então colocar a questão da unidade e da diversidade que leva à percepção de determinado rítmo como africano,qualquer que seja a experiência rítmica percebida O que me faz perceber como África algo que eu ouço nos cantares, na dança, nos rituais, no sagrado, no profano, no choro ou na festa O africano, quando une numa operação dialética a festa e a dor,a alegria e o sofrimento, já que toda a sua experiência de sentir vem marcada pela experiência da música une linguagens aparentemente inconciliáveis que no contexto deste universo nos parece absolutamente natural Portanto parece paradoxal que algo tão festivo como o choro tenha o nome de algo que designa dor No entanto a designação da dor não impede que esta experiência musical seja contextualizada em ambientes de muita alegria e até de festa É interessante observar que, assim como na religiosidade, o chorinho é a expressão de necessidades mais que humanas, uma crônica mesmo deste nosso estar no mundo marcado no mais das vezes por contrastes de toda ordem Seja a incompreensão no amor, seja a falta de dinheiro, seja o cansaço do trabalho, enfim, todas as situações que levam as pessoas ao aconselhamento nos terreiros, aos rogos a Nossa Senhora, à aflição o à glória Pensar o chorinho como metáfora da existência na realidade é tarefa maior do que pretendo Mas posso desde já esboçar uma compreensão que indique o que há de permanente nas manifestações da cultura afrobrasileira que nos aponte para algo identificável como tradição que se perpetue ou modelos mais ou menos estáveis. Não há duvida que quem transforma um choro em festa está protagonizando uma resistência que ludibria a dor Será o choro uma expressão da dor realmente sentida ou a máscara poética esta Dor? Algo parecido com Fernando Pessoa em “O poeta é um fingidor, finge tão completamente que pensa fingir que é dor, a dor que deveras sente” Assim as canções do amor trágico, tanto quanto as canções do carnaval, são marcadas pela cadência sincopada, com desenhos métricos que nos situam em algo da ordem do hipnótico Assim na capoeira, no samba, nos cantos rituais... Com isto não quero dizer que não existem diferenças no bojo destas percepções Os choros que tenho observado têm batidas diferentes, com desenhos métricos diferentes entre si Como perceber então algo da ordem da diferença na permanência ou do permanece no que é diverso? Os atores de um percurso religioso dão explicações muito precisas dos significados dos seus rítmos neste ou naquele ritual e, como observei logo no início do meu estudo, não estamos lidando com uma diversidade aleatória compreendida como uma generalização totálitária do que sejam rítmos africanos Há que se perceber diferenças, especificidades, contextos No entanto acredito que algo que permanece pode ser compreendido como possibilidade canônica possível de ser inscrita como tradição nos anais da pesquisa A meu ver, um choro que canta a dor de um amor de traição, ou alegria de um filho pródigo que volta está perpetuando a saga humana em seus momentos de afirmação de vida, de sobrevivência e de construção da sua história Está construindo também um saber sobre esta humanidade que não está escrito na historia oficial e que permanece apesar dela Mas voltando às hipóteses comparativas que estamos abordando para comparar o chorinho com as experiências musicais nas quais ocorre a recorrência ao percurssivo retomo aqui alguns chorinhos nos quais isto é possível Em Serenata no Joá de Radamés Gnatalli temos, logo no primeiro compasso, colcheia pontuada semicolcheia, no compasso seguinte, semínima, ligadura, semicolcheia colcheia semicolcheia(síncope canônica) Uma variação freqüente em padrões rítmicos percebidos como africanos consiste na mesma colcheia pontuada, seguidade semicolcheia seguida de duas colcheias Uma representação disto está em Kofi, página 88, 2003 no livro Representing African Music: poscolonial notes geeries, positions. London: Routlege, 2003 É muito recorrente o padrão semicolcheia, colcheia semicolcheia seguido de quatro semicolcheias, enfim, todas as variações possíveis em torno deste padrãozinho canônico, que, ao que parece, não é só brasileiro Acho que podemos chamar a atenção, sem risco de reducionismo para dois desenhos métricos básicos Semicolcheia colcheia semicolcheia e colcheia pontuada e semicolcheia Acredito que os grupos métricos organizados em torno destas duas fórmulas de pendem do grupo em questão (comunidade étnica) e muda de um grupo a outro No caso do chorinho, por não ser uma linguagem sistematizada em torno de algum ritual estas ocorrências não são previsíveis nos termos de uma repetição de uma mesma forma Por isto não me proponho a uma morfologia rítmica para fazer uma leitura da realidade percursiva no chorinho No entanto muitas aproximações são possíveis Vou elencar aqui mais alguns padrões da pesquisa etnomusicológica e proceder a algumas comparações Escolho aqui o trabalho de Sandroni, Feitiço Decente e tomo de empréstimo alguns padrões rítmicos compilados Para começar uma sequência do padrão mais comum, semicolcheia colcheia semicolcheia numa seqüência que começa com uma pausa de semicolcheia muito encontradiça no material que estou analisando Cédulas do tipo semicolcheia colcheia semicolcheia seguida de duas colcheias, também muito encontradiça no Choro Seqüências tipo colcheia pontuada semicolcheia também muito comuns no chorinhoIndependente das denominações classificatórias podemos definir o repertório métrico os chorinhos como variações deste repertório basilar O afastamento ou o retorno a estas matrizes servindo como colorido da experiência musical em questão no sentido da ruptura com a rigidez de uma linguagem exclusivamente ritualística, por exemplo Este ir e vir dentro das possibilidades oferecidas pelo modelo confere a esta experiência musical uma graça toda própria uma vez que se aproxima e se afasta do território conhecido brincando com o familiar e o estranho de uma linguagem, garantia de originalidade e independência na experiência criativa Bem,como já havia assinalado no pré projeto, a operação dialética que a cultura africana faz,unificando dança,ritual, religião, jogo, luta, gustativo e espiritual, enfim, reunindo as afinidades e as aporias me despertou este interesse pela dimensão percurssiva do choro É a permanência de uma manifestação (rítmo) que une os diversos universos das manifestações culturais africanas nos mais diversos lugares onde esta cultura se manifesta Segundo Frigero: “A unidade assim como a diversidade de carcterísticas que podem ser encontradas nas culturas afro-americanas têm preocupado muitos estudiosos do tema, desde Herskovits (1945), com sua escala de retenção de africanismos,até os últimos esforços de Thompson (1983)em identificar as influências africanas na arte e na filosofia dos povos negros das Américas Para compreender este fenômeno os estudos mais recentes parecem coincidir na necessidade de uma perspectiva afrocêntrica (Uya,1989 e 1990) que neste trabalho entenderei como a importância de reconhecer características comuns das culturas africanas para explicar as semelhanças em determinados aspetos das manifestações culturais afro-americanas (FRIGERO,s.d..pág175). Em síntese, estou tentando sistematizar a diversidade da experiência do choro nas suas possibilidades rítmicas e também o repertório comum que explica as ocorrências verificadas ressalvando algumas coisas comuns às manifestações culturais dos africanos sob qualquer forma que ocorram Por isto penso que na experiência do choro, podemos postular a idéia de algo que brinque com o repertório de padrões rítmicos sem se fixar em nenhum deles Por esta razão falo em semelhanças, recorrências e não em identidade, repetição Não se trata de uma perspectiva mimética mas sim de um jogo que desvela e camufla possibilidades familiares para retornar com a face renovada, ressignificando paradigmas já conhecidos Já dá para perceber que, o que estou evidenciando é o caráter percursivo das linhas melódicas Não se trata aqui de uma manifestação externa ao fato musical evidenciada por um procedimento arbitrário, no caso, a marcação de um rítmo Nos casos abordados, observo esta unificação entre o que é melódico e o que é percursivo nesta operação reconhecível em todas as manifestações culturais africanas, qual seja, a unidade na diversidade Então, o chorinho, como manifestação artística e cultural me parece um fato híbrido perpassado estruturalmente por toda a gama de rítmos africanos ao mesmo tempo que os reelabora de uma forma muito sua Por isto considero o chorinho algo da africanidade e muito em especial, algo do Rio de Janeiro, da realidade carioca Algo como um modo de ser, uma filosofia, uma autoridade moral que o carioca tem ao falar de amor, ao bater o seu pandeiro, ao cantar debaixo da lua cheia nas favelas Eu sinto o chorinho como um sentimento de família, como uma religião à parte, como a benção das tias das velhas guardas das escolas de samba Enfim, algo de bom e familiar O que os pesquisadores chamam de polirritmia pode ser usado aqui num outro sentido Não se trata aqui da verticalidade do mesmo fenômeno observado quando vários instrumentos de percussão tocam juntos mas podemos falar numa espécie de polirritimia linear, frásica, uma vez que acontece numa mesma frase, uma grande profusão de rítmos percurssivos, alinhavados por alguns padrões que centralizam a nossa atenção para o que seria uma definição estilística Gostaria de postular também uma leitura polirítimica para a possibilidade de ouvir gravações com instrumentos e voz A possibilidade de ler o chorinho como algo perpassado pelo que estou chamando de uma poliritimia linear me enseja a pedir passagem entre os trabalhos que versam sobre rítmos africanos como alguém que busca adequar métodos de pesquisa a diferentes realidades e acredito até que existam tantas noções de africanidade quantas forem as realidades observadas,dependendo do contexto político ,histórico e social e do lugar de enunciação de quem define Não quero com isto dizer que se possa diluir a noção do que é percebido como tal no universo do desejo de cada um, como soe a acontecer no universo dos apelos mercadológicos que colocam no lugar do exotismo que dá lucro tudo o que não tem uma perspectiva eurocêntrica Quero seguir as pegadas de um Frigero quando diz que há algo que pode ser percebido como africanidade em contextos diferentes, territórios diferentes e realidades sócio culturais diferentes Posto isto, compreendo o chorinho como algo bem carioquinha, perpassado pelos tambores ancestrais da África mesmo quando estes tambores não estão batendo Este sentimento de singularidade me leva a acreditar que é sempre possível ouvir um atabaque quando alguém canta um choro mas não é possível ouvir um choro quando se houve um atabaque solitário Com isto quero dizer que nossa guestalt, nossas escolhas estão associadas ao condicionamentos que a cultura impõe Ninguém confundiria um canto Á Nossa Senhora com um choro, ou um ponto de candomblé com um chorinho No entanto todas estas manifestações são marcadas fortemente pela experiência percurssiva No caso do choro não se trata de uma marcação externa com os instrumentos adequados mas de algo que coexiste com a linha melódica, que é parte desta linha melódica como opção rítmica Por isto é possível apenas uma aproximação com o trabalho dos etnomusicólogos, uma vez que são universos e procedimentos diferentes Enquanto um etnomusicólogo recupera padrões rítmicos através da convenção simbólica que é o signo estou tentando apenas uma aproximação não muito convencional entre semelhanças e diferenças Ocupo o não lugar utópico que circunstancia a incerteza e a possibilidade A margem de erro que abre caminho a todas as possibilidades de criação Aquele desvio metodológico que permite o encontro de novos caminhos Por isto penso o chorinho neste contexto como hipótese de uma realidade percursiva não abordada,margem de erro mais ou menos prevista uma vez que trato de uma percurssividade imanente e não de tambores batendo Assim como alguém que ouça um gospel às seis horas da tarde sem que ninguém esteja cantando Ou uma batucada invisível no meio de uma missa gótica Homi K. Baba, um pesquisador indiano da área de literatura diz que os pesquisadores deveriam seguir um caminho de bosque ou seja, assumir um pouco o momento da perda, seja de foco ou até de interesse pelo objeto e estudo Rolan Barthes afirma que o melhor ângulo de visão é o da prostitutas, que enxergam todos os pontos de vista por se situarem nas esquinas Prefiro Jean Paul Sartre que demonstra que a possibilidade de liberdade implica em possibilidade de erro Não tenho a pretensão de dar conta de nenhum objeto de estudo Quanto mais de um choro, que é obra de arte Quero apenas conseguir insights que sejam úteis para todos Volto então ao miolinho das minhas reflexões iniciais que me situavam na pretensão de associar alguns chorinhos à experiência etnomusicológica Acho que consegui em parte mas reivindico aquela margem de erro que torne possível uma abordagem menos rígida desta possibilidade de estabelecer a referida relação para não cair em dogmas esterelizantes da minha percepção musical e teórica Assim como os chorinhos nos permitem enlouquecer de paixão ou de ciúme,fugir com o marido da vizinha,ficar velhinha pedindo à benção aos pais,me permito aqui uma espécie de delírio auditivo que me permita em alguns momentos ficar num entre lugar que registre um rítmo um pouco diferente do registro etnomusicológico e do repertório rítmico analisado Digamos assim uma métrica de passagem,como na harmonia, entre o que se observa e o que se ouve Uma métrica alternativa entre a etnomusicologia e o choro analisado Brincando um pouco com esta possibilidade vou elencar aqui alguns rítmos elencados pela pesquisa etmusicológica que percorri Vou reproduzir algumas alternativas propostas ,os chorinhos analisados e uma métrica intermediária Vejamos, Line 1, página 88, Kofi, bibliografia citada Temos colcheia pontuada semicolcheia ligadura colcheia colcheia No chorinho Estamos Aí de Maurício Einhorn, temos no compasso 22, colcheia pontuada, semicolcheia, semínima unida por ligadura à nota anterior O que seria um rítmo intermediário entre estes dois? Vamos repetir nos rítmos intermediários o desenho métrico do primeiro tempo Entre as duas colcheias e a semínima me proponho a encontrar um valor métrico maior ou diferente das duas colcheias mas que não exceda à semínima Proponho uma repetição da colcheia pontuada seguida de semicolcheia Um rítmo intermediário entre a etnomusicologia e o chorinho analisado Vejamos um grade dita assimétrica compilada por Sandroni em Feitiço Decente, pág. 29 construído com semicolcheia colcheia no primeiro tempo, repetição do mesmo desenho rítmico no segundo tempo Vamos a choro Tomemos para tentativa Evocação a Nazareth de Canhotinho Dois tempos da seqüência canônica de semicolcheia colcheia semicolcheia O que seria um rítmo intemediário? Algo intermediário entre a colcheia pontuada, a colcheia e semicolcheia O que sobra entre um colcheia pontuada e uma semicolcheia? O valor de uma semicolcheia Mantenho a colcheia e a semicolcheia, acrescento a semicolcheia que falta Este rítmo flutuante entre os dois rítmos analisados flutua como alternativa que torna possível a aproximação classificatória de duas realidade diferentes e semelhantes além de serem rítmos partícipes do repertório da etnomusicologia Posso proceder desta forma com vários exemplos mas o que desejo realmente considerar é a possibilidade da recriação de um repertório sem prejudicar o rigor da pesquisa Inclusive pensando no fato musical como uma experiência estética muitas vezes não classificável em termos de um territorório conhecido Aí fica a pergunta:por que determinado padrão rítmico é percebido como africano? Por que percebemos desta forma independente de um conhecimento de etnomusicologia? O que percebemos como linguagem vem antes do que chamamos de universo da cultura? Entre o que se percebe e o que é percebido passa um rio que coloca em suspensão todas as nossas hipóteses de classificação, por maior que seja o rigor A aula do professor Angelo Natale (A Linguagem dos Tambores) foi muito esclarecedora para mim no que diz respeito à estas últimos reflexões Esclareço:no momento em que ele cochila em cima dos tambores, na Casa Branca, a filha de santo muda o gestual e isto altera, ressignifica a batida destes tambores Esta oscilação entre o território do já sabido e a hipótese pertinente é que quero incoporar aos meus procedimentos de análise Lançar hipóteses combinatórias de rítmo, brincar com o repertório existente, criar repertórios possíveis, voltar às bases epistemológicas com circulação nova de significados e uma compreensão mais generosa dos antigos Eu sei que um chorinho é um chorinho é um chorinho é um chorinho Mas alguma coisa flutua entre os terreiros, entre as rezas, entre os cantares, que ainda assim é capturável como áfrica negra e Brasil Mesmo que os pesquisadores não se afastem da delimitação dos seus corpus Se eu pudesse criava uma matemática do choro Certamente ficaria viciada em batuque em tampo de mesa, nas palavras de ordem desta filosofia de vida, nas relações que esta filosofia engendra entre os brasileiros Mas sempre aparecerá alguém prá esculhambar com esta matemática Etnomusicólogos, boêmios,pais de santo, toda a sorte de atores deste percurso que erguem a experiência cultural para além do previsível Ao questionar a perspectiva logocêntrica, Derrida nos fez o favor de nos libertar das inteligências da escrita para nos colocar no terreno de uma outridade que me permite postular o campo, por exemplo, das inteligências do rítmo No entanto, mesmo que eu crie as minha hipóteses rítmicas e que elas sobrepairem sobre as possibilidades conhecidas,não poderei criar eventos musicais que me afastem da idéia de choro ou de africanidade Se agir assim estarei saindo de um terreno no qual minhas hipóteses tornam possível um aprofundamento na compreensão do meu objeto de estudo para uma outridade estéril com relação a estes fins Portanto as minhas hipóteses métricas têm um poder viabilizador de uma compreensão maior do choro Não posso compreender o choro transformando-o num rítmo de valsa Assim como diria: vou cair no samba E não: vou cair no choro No entanto as afinidades métricas são evidentes Finalizando, esta crônica ao mesmo tempo trágica e poética da vida nos morros cariocas, enfeixa nos seus dialetos percurssivos, afroaméricas de pelo menos cinco dos pesquisadores aqui elencados Ora direis, são muitas américas ou muitos chorões? Muitos chorões, sem nenhuma inscrição no exótico, no maravilhoso, no mercadológico que tem marcado a compreensão da linguagem cultural da África,ou das Américas O chorinho brasileiro me parece uma coisa bem familiar,de tias,de primos que se põem a cantar num final de semana Vou terminar este estudo com um samba que diz assim: “a tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim... cantando eu mando a tristeza embora... Este é um legítimo samba chorado Seria o choro um samba um pouco mais melancólico? Uma extensão melancólica do samba? Se condenássemos os chorões à felicidade este gênero musical deixaria de existir Assim como toda a grande literatura Assim o elogio da aflição em Dissimulada de L.Almeida/Bororó, que diz Este modo esquisito: Tão aflito Que tem teu olhar Todo nervoso em desejos Quando os meus beijos Te fazem vibrar” Este choro não seria choro sem esta aflição, e este desejo não teria a mesma força expressiva sem esta dimensão trágica. E que batam os tambores... pam, paaaaam pam pam pampampaaaaampamoam no rítmo cardíaco... taracatacatatatatatacatatatatcatata... nesta linda construção que une palavra, sons, rítmos e tragédia popular sublimada em cultura da melhor qualidade Afinal nenhum amor é em vão nenhum desejo se perde na linguagem do choro REFERÊNCIAS AGAWV, Kofi. Representing African Music: postcolonial notes, geeries, positions. London: Routledge, 2003. CARDOSO, Angelo Natale. A Linguagem dos Tambores. Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2006 (Tese de Doutorado) FRIGERO, Alejandro. Artes Negras: uma perspectiva afrocêntrica. Estudos Afro-Asiáticos, Dezembro 1992 p.175-190. GERHARD Kubik Drum Pattern “Batuque” Of CAXIAS Benedito L.ª M. R. Vol II: nº.2: Fall/w1990 Univ. Of Texas Press. LUCAS, Glaura. Música e tempo nos rituais do congado mineiro dos Arturos e do Jatobá. Tese (Doutorado em Música) Programa de Pós-Graduação em Música, Centro Letras e Artes,Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2005 O melhor do choro brasileiro. Volume III, Irmãos Vitale. A Indústria e Comércio SANDRONI,Carlos. Feitiço decente: transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933) Rio de Janeiro: Zahar: UFRJ, 2001(Premissas Musicais) SINHA, Arom. The contituting features of Cintral African Rhythmic Systems: A tentative Typology

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

cameratas stanzy

A Lírica Feminina Contemporânea

A Lírica Feminina Contemporânea Helenice Maria Reis Rocha - Mestre em Letras/UFMG Pensando nas manifestações de poesia veiculadas por meios de comunicação de massas, tais como: sites de poesia, movimentos organizados, discussões midiáticas, tenho me proposto a pensar em que sentido a dicção feminina circulando nestes meios se aproxima ou acrescenta novas linguagens e formas de expressão à lírica grega. Se pensarmos nos trabalhos de Benjamin a respeito da lírica simbolista observaremos que esta lírica acrescenta à uma dicção, uma crítica contundente ao mundo capitalista. Tenho pensado, como Salete Almeida Cara, que a lírica feminina contemporânea que circula entre a internet e a mídia impressa tem incorporado às suas formas de expressão vivências que rediscutem o lugar de enunciação do que define o feminino ou o masculino na poesia. Saindo das metáforas da morte de Henriqueta Lisboa, lindas metáforas de mocinha cristã, às jovenzinhas martirizadas do panteon de santinhas de Cecília Meireles, desaguamos numa dicção lírica que nos remete ao prazer,à psicanálise,à luta política,com a mesma delicadeza imagética de uma dicção lírica. Pretendo analisar aqui algumas poetisas do movimento Poetasdelmundo que, com dicção própria, expressam com a maior delicadeza problemas e sensibilidades possivelmente impossíveis para mulheres poetisas à cinquenta anos atrás. Começo pela jovem Isabela que nos diz: “Titia!!! Titia!!! Eu sou a mãe do vento!!! O vento não morre titia!! E ele é feliz!!!...”. Um jovenzinha de, então, três anos que, à uns cinquenta anos atrás estaria cantando canções religiosas em algum colégio de freiras e, aos três aninhos já estava tentando entender a vida, a morte, o tempo, o gozo... Segundo Mouralis: “A literatura é compromisso. Os escritores, como tais, têm uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade”... (Mouralis, 1982, pág: 36). Assim, poetisas que com uma dicção lírica, nos traduzem como linguagem, formas de discussão que rediscutem as questões de gênero, tanto no que diz respeito à linguagem quanto no que diz respeito ao seu lugar de enunciação, cumprem a responsabilidade apontada por Mouralis começo por Angélica em: BRAÇOS ABERTOS Olha moço, que bela cidade se descortina à frente de nossos passos Parece menina Depois da chuva livre do pó a cidade remoça Veja as pessoas caminhando tranquilas Não é dia de trabalho Alguns trabalham suas mercadorias próximo à rodoviária Não há pressa o dia é longo quase deserta a cidade recebe o visitante e o habitante que regressa à capital Belo Horizonte Recebe de braços abertos (Bernardes, pág:25, 2012 ) O que se evidencia neste poema é que, imanente à serenidade solene que descreve a cidade e o visitante, existe uma anti elegia ao mundo da produção, tão precioso às lógicas de um discurso hegemônico que inclusive, no Futurismo de Marinetti, procura dar uma face de modernidade ao já bem conhecido projeto de desenvolvimentismo capitalista. Esta evidente recusa a um dia produtivo recusa, mesmo que através da magia da arte, a lógica de um discurso hegemônico e suas hierarquias. A beleza da cidade se torna mais importante do que a lógica da produção e suas hierarquias e seus negócios, o que garante à esta dicção uma doce modernidade uma vez que não reproduz a tirania do discurso oficial: Bandeira Branca Um olho uma gota o suspiro Sorriso lacrimejante Um pedido Um apelo a dúvida Mãos desejam Um ai Um ui a dor Dentes rangem Um alívio Um amor a paz Pés almejam (Marques, pág: 29, 2012) Se a utopia nos coloca na plena realização do desejo e diz: o prazer aos bem resolvidos pela psicanálise, esta dicção instaura a dúvida. Cumpre saber quem são os bem resolvidos nesta correlação de forças hodierna. O amor possível em: “Um ai, Um ui, a dor Dentes rangem, Um alívio, Um amor, a paz...” (Marques, pág: 29, 2012). Um amor possível diz respeito ao momento, à efemeridade, longe dos acordos de conveniência à socialização do amor que a perdas das situações paradigmáticas impõem. Os marcados por doze horas de trabalho talvez, apesar das leis trabalhistas, perdem a definição do desejo segundo Benjamim: “... Os gregos só conheciam dois processos para a reprodução de obras de arte: o molde e a cunhagem. As moedas e terracotas eram as únicas obras de arte por eles fabricadas em massa. Todas as demais eram únicas e tecnicamente irreprodutíveis. Por isto, precisavam ser únicas e construídas para a eternidade. Os gregos foram obrigados, pelo estágio de sua técnica,a produzir valores eternos.” (Benjamim, pág:175, 1996). Se pensarmos que a linguagem poética, em si, representa algumas incompatibilidades com esta reprodutibilidade, podemos associá-la permanentemente à lírica grega e a uma certa intemporal idade. Retomemos Delasnieve Daspet em: Mão Humana Uma mão humana. Uma mão com cinco dedos Foi assim que o Criador fez... Cada dedo independente, unidos e separados... Se juntássemos os dedos-a força aumentaria Teríamos mais poder, mais união. Deixemos que a terra se torne esta mão forte e unida assim venceremos as lutas diárias a miséria de milhões de africanos de esquálida figura e doce olhar! Mortes pelo Oriente Médio... Chacina-não é necessário iir tão longe Mandamos soldados para o Haiti, Mas o Haiti é aqui, como diz a canção... ... (Daspet, pág: 68, 2008) Da simples descrição de uma singela mão e seus dedos à associação com a leitura ética, civilizatória, da realidade do mund: a linguagem, coloquial, de massas, a leitura de mundo, complexa, perpassando a condição humana para além da territorialidade aldeã no seu dilema básico: a vida. A coloquialidade da linguagem tendo como imanência uma leitura civilizatória de grande alcance não reprodutível pelos interesses envolvidos na lógica do discurso oficial, hegemônico. A lírica de Camões, partindo da redondilha, da linguagem reprodutível e de massa, disse da complexidade do amor explicitando, através do paradoxo, quase do absurdo, o lugar de enunciação de onde emerge a sua aparente simplicidade. Segundo Bahbha: “... Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do outro que reforça sua própria equação conhecimento-poder!” (Bahbha, pág: 45, 1998). O discurso feminino, marcado pela maternidade, em paramentado para desconstruir relações de poder. Então, em Clevane, temos: A última cavalgada os homens mortos estão: pura nata calda vermelha óleo e sabão, coalhando os campos de batalha... sem preces e sem mortalha nem quem lhes segure a mão ... (Pessoa, pág:35,2005) Enquanto loguz, invenção de homens personificada por Heráclito pressupõe a unidade da confrontação permanente tornando o grotesco tão natural quanto o sublime, a caótica linguagem feminina nos reconduz ao sentido maior de uma singela mão segurando outra mão. Todas estas poetisas, descentradas da máscula linguagem de loguz, da razão iluminadora, de todas as certezas, de todo centro. (Brandão, pág. 34, 1998) trazem a dúvida, a fragmentação que batiza a modernidade com a presença do outro, da alteridade. A lógica da identidade que une através do verbo ser os opostos, o sublime e o grotesco, o perfume e o lodo é perpassada aqui pela dúvida em Brenda Marques, por lindas e insólitas metáforas de homem em Clevane, pela dessacralização das guerras em Delasnieve, pela suave anti elegia do modo de produção capitalista em Angélica. Segundo Heráclito: Se não ouvirem simplesmente a mim mas se tiverem ascultado (obedecendo-lhe,na obediência) o logoz, então é um saber (que consiste em)dizer igual o que diz o logoz.Tudo é um (Heráclito In: HEIDEGGER, pág:256) A metáfora conceitual, como por exemplo: “... aquele rio era como um cão sem plumas...” (João Cabral de Melo Neto) une verbo ser a um predicativo exatamente como na proposta pré socrática de Heráclito, que, sintagmática, une os opostos pelo verbo ser o que é bem confortável para a lógica dos discursos hegemônicos que sobrevivem da boa convivência dos contrários. Une as aporias garantindo a perpetuação de determinado tipo de poder. Em Angélica Bernardes, tanto quanto em Clevane e mesmo em Brenda e Delasnieve observamos uma recorrência permanente a verbos de ação em lugar do verbo ser Neste sentido é recorrente uma gradação de ruptura com a estrutura de linguagem ocidental, aristotélica. A linguagem poética sai do campo conceitual para o campo descritivo da ação, Poetisas saindo da contemplação da realidade, própria daqueles a quem foi negada a práxis e deságuam na junção práxis, ativismo e linguagem, uma vez que são ativistas de Poetasdelmundo. Saem, também através de uma nova estrutura de linguagem, do confortável voyerismo de observar e conceituar o caldo de cultura em que estamos imersos e descrevem ou se expressam através da linguagem da práxis, representada mais por verbos de movimento do que pelo verbo de identidade, conceituador. Partindo deste escopo de reflexões venho desaguar em Neusa Ladeira. Vejamos: Poética das Horas Trinando acordo Tico-tico rei Suave complementa Abrindo surdos As araras do vizinho Estridentes nos golpeiam Sonho breve em fuga luz Como não ver se olhos choram Coração aperta ruge emoção Ansiosa vai à busca No início resoluta no traçado cambiante Em final hilariante Mesmo dito ainda pergunta Dos lençóis amarfanhados Onde está o estonteante Aquele sonho recorrente Ora chega na lembrança Nada mesmo de saudade só terror asfixiante... (Ladeira, 2009) Assim como nos poemas anteriores, toda a estrutura de linguagem é alinhavada por verbos de ação. A lírica contemplativa de uma Cecília Meireles em: “... leve é o pássaro e a sua sombra voante...”, cede lugar à um trinante acordo de pássaros, com direito à criação do verbo trinar usado aqui como verbo e,ao mesmo tempo, adjetivo. Este movimento de uma linguagem contemplativa, conceitual, à uma linguagem que nos aproxima da ação, práxis, nos remete à diferença de possibilidades circunscritas à condição feminina do começo do século vinte,onde só era possível observar a práxis feminina como tabu migrando para a práxis mesma, refletida esta transformação em mudança na estrutura da linguagem sem , contudo, perder o sentido suspenso de toda a linguagem poética, que no mais das vezes nos tira das noções de tempo e espaço. Os gregos não consideravam poesia, literatura rasura esta que nos autoriza ao devaneio. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: - Brasil, Joaquim Fontes. Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo:Ed.Estação da Liberdade,1992. - Brandão, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1993. - Branco, Lucia Castello, Brandão, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Milman, 1989. - Derrida, Jaques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. - Heidegger, Martim. Heráclito. Rio de Janeiro: Dumará, 1998. - Braga, Anderson. Sonata Poética. Belo Horizonte, Anome Livros, 2005. - Bhabha, Homi K. O Local da Cultura. Editora UFMG, 1998. - Benjamin, Walter. Magia e Técnica Arte e Política. Editora brasiliense, 1985. - Poetasdelmundo em Poesias, Volume I, I Congresso Mundial de Poetasdelmundo, Natal, Um Mar de Poesia e Paz. - Salgado, Rogério, Araújo, Virgilene. Poetas Em Cena. Belô Poético Produções Artísticas e Literárias. Belo Horizonte, 2012. - Pena, Brenda Marques. Instituto da Imersão Latina. Nós da Poesia. All Print Editora, 2009.